Esperava. Mais uma vez, ela esperava por ele. De cada vez que tal acontecia, e acontecia mais do que o desejado, até porque acontecia sempre, a solidão que ela sentia aumentava. Sentia que cada atraso se somava ao seguinte. O tempo que aguardava não era apenas o tempo de atraso dele em relação à hora combinada para aquele encontro. Era a soma desse tempo com todas as horas anteriores passadas à sua espera, em situações idênticas ou ainda mais embaraçosas. Fez um pequeno cálculo e, sem grandes rigores aritméticos, somadas todas as parcelas de que se recordava, já que as que a sua memória não conseguia recuperar eram uma parcela zero naquela adição, ela chegou a um escandaloso somatório, para não dizer obsceno. Naquele dia exato, já fazia seis meses, 14 horas e inúmeros minutos que aguardava por ele. Era mais de meio ano. Um semestre inteiro. Era uma vida.

Enquanto se espera, não se consegue fazer nada mais do que isso, esperar. Olhar em redor com olhos de lince, com astúcias de águia, julgando distinguir o corpo dele em cada blusão preto, a sua forma de andar em cada par de ténis que sai da boca do Metro, achando ouvir a sua voz em cada diálogo próximo. É enlouquecer e ouvir chamar o seu nome, como se, já quase perto, ele a quisesse tranquilizar dizendo que já lá estava. Morre-se muito enquanto se espera. De preocupação, acima de tudo. Principalmente no início da relação. Afinal, ele pensou melhor e não vem. Decidiu que não virá porque… e aí seguem-se todas as razões que a maior ou menor autoestima permite. Ela não é a tal. Não é aquilo que ele julgava. Não se sente bem junto dela. Não se diverte. Ela maça-o de morte com as suas conversas pouco interessantes e ‘desintelectualizadas’ para o gosto dele. Ela não é suficientemente cool para apresentar aos amigos, ou suficientemente qualquer coisa para apresentar à família. Ela não é boa na cama e ele começa a maçar-se e a procurar melhor ou apenas diferente noutro sorriso, noutra existência que não a sua. Nisto, ele. Nisto ele todo sorrisos e ternuras e desculpas idiotas, mas ele. De corpo presente e ela tudo esquece e dá graças a quem quer seque seja porque ele afinal sempre veio. Sempre quis vir, apenas ficou retido, apenas mais uma hora de trabalho incontornável, uma reunião que não fincou à hora prevista, ou o trânsito, amigo fiel de qualquer listagem de desculpas. Tudo fazia sentido. Tudo batia certo. Mesmo quando não fazia. Mesmo quando não batia. Porque ele já lá estava.

By Thomas Billhardt

O braço a rodear-lhe a cintura. A sua voz no ouvido dela. Pegava-lhe na mão e lá iam. Ela apagava o atraso. Calava a preocupação. Mas esta voltava no atraso seguinte. Agora já o medo de que algo lhe tivesse acontecido. Um acidente e já não um simples imprevisto. Uma dor. Um carro. Um familiar a necessitar de auxílio. O telemóvel sem bateria. O telefone esmigalhado, feito em cacos num qualquer acidente. Nisto ele. Ele no meio da multidão, mas ela reconhecê-lo-ia mesmo no escuro, mesmo num estádio de futebol em dia de derby. Mesmo do outro lado do campo. O amor, entre outras coisas, sabe distinguir. Ó, se sabe. Um beijo na boca. Uma brincadeira e ela a desamuar a cada segundo a seu lado. Ela a exigir explicações. A solicitar acalmias. Ao menos um telefonema. E ele com solução para cada enigma. Ela a sentir-se tonta e controladora. Mas o amor também se altera e não apenas em intensidade ou volumetria. Também muda em sageza, em inteligência emocional. O amor a saber agora mais do que ele. A perceber o que não bate certo. A fazer contas às contas dele. A perceber erros de tabuada e faltas de concordância gramaticais. O amor a graduar-se em mentiras. A detetar desonestidade. O amor a perceber a falta de respeito do outro lado. Sim. O amor dela já começava a saber milhares de coisas. Mesmo aquelas que ela desconhecia ou teimava em ignorar. O amor ia-a beliscando. Avisando. Tocando campainhas e acionando luzes vermelhas. Luzes de muitas cores e tamanhos.

Mas nisto, ei-lo de novo. Tão incrível! Tão apaixonado por ela. Todo ele simpatia e romance, outras vezes melindrado com as insinuações dela. Era indisciplinado. Ela teria de viver com isso. Era distraído. Ela teria de aceitar isso também. Ele amava a sua liberdade e isso era sagrado. Ela teria de reverenciar isso com a mesma devoção dele, pois da liberdade dependia a saúde de qualquer relação. Ele tinha razão. Ela exagerava. Nisto, o amor a mostrar-lhe o sinal vermelho e a tinir no cérebro dela um insuportável ruído, minimal e repetitivo. Mas ele apertava-lhe a mão e o coração dela aquecia um pouco e as suas suspeitas amornavam. Depois, ele amava-a e ela esquecia tudo. Ou quase. O amor não. O amor tem boa memória e é exímio em sensibilidades várias. O amor é de uma hipersensibilidade doentia, primária. Fica sentido até com coisas que não chegam a fazer um sentido. Coisas que podiam ser apenas um grão de areia, mas que o amor já entende ter calibragem suficiente para e emperrar uma roda dentada, encalhar uma qualquer alavanca, impedir um movimento.

Ninguém, exceto o amor, sabe aquilo que passa pela mente de uma pessoa apaixonada quando espera eternamente. Cada segundo que passa é um lugar que se vai perdendo. Começa-se no pódio e acaba-se no meio dos últimos, numa maratona que deveria estar ganha à partida. Começa-se com o coração cheio e feliz, com o baralho completo e acaba-se com um único jocker na mão, com os empregados de balcão a pedirem licença, mas têm de preparar a sala para o jantar. Se não pode ir para a esplanada, a fim de se lavar o chão. É o desânimo de mãos dadas com a humilhação. Evitam-se os mesmos locais de espera, para salvar a face perante estranhos sobre quem nem se deveria perder um segundo de pensamento. Mas depois ele aparece, com o cheiro dele, o sorriso dele, as aventuras dele. Ela sente-se parte desse universo e a felicidade começa a voltar. Cada vez demora mais a voltar, mas acaba por, em suaves prestações, regressar. No fim, já não é bem felicidade, apenas alívio, apenas a satisfação de mostrar ao empregado de mesa, a todos os empregados de mesa do mundo, que não é louca nem foi abandonada. A chegada dele é a prova do amor que ela sente.

By Peter Lindbergh

– Pedro, porque me fazes isto? Porque nunca chegas a horas? Não percebes o que isso faz ao meu coração? Ao meu amor por ti? Não entendes a constante falta de respeito?

Ele respondia sempre tão bem a tudo isto. Ela quase ficava embaraçada por ter pensado coisas. Por se ter agarrado a disparates e ficções. Ele passava sempre nos testes. Sempre não. A dada altura, o aproveitamento dele começou, muito tenuemente a baixar. Deixou o 100%, mas ela não se apoquentou, porque ainda estava ao nível do Excelente. O amor bem lhe dizia que apenas 100% servia, mas ela contrapunha que não se pode questionar um aluno de 90%. O amor contra-argumentava, que os sentimentos puros não se contentam com aproximações, com versões caducas ou insuficientes. Ela escusou-se a ouvir. Nisto, quando deu por ela, estava abaixo do suficiente e longe iam já os 50%. O amor nada disse. Não precisava e ele sabia-o bem. Ela perdeu peso. Pedro nem reparou. Um dia, ela achou que sentia um perfume diferente na roupa dele. Era o novo amaciador que a mãe usava. O quê?, perguntou ela? O amor ria. Ela acha que também sorriu um pouco. O amaciador. O novo amaciador de roupa que a mãe dele usava. Aquilo cheirou-lhe a fim de ciclo. Ele abriu o coração. Sim, nem sempre lhe foi fiel. Sim, era um lobo solitário e selvagem. Obedecia ao instinto. Não estava orgulhoso, mas precisava de se sentir livre, sem elos ou grilhões.

– Eu não sou um grilhão, Pedro. Eu sou amor e o amor não prende. Se assim o sentes, então, está tudo errado.

Ele olhou-a com surpresa. Pois se a amava tanto, como poderia ela dizer tais coisas?! Ele era homem e os homens são idiotas e desleixados e atrasados. Ela concordou. Mas não totalmente. Lá para si pensava que os homens são seres humanos e que estes, independentemente do género, podem e devem ser decentes, respeitadores, dar mostras de bom caráter em cada gesto, mais ainda junto de quem amam. Ele sentiu-se perdido. Ela costumava colocar-se de imediato do seu lado e não simplesmente concordar com ele quando ele, para se defender, se rebaixava um pouco. Apenas um pouco. Não mais do que isso. Ele mudou de estratégia. Foi um pouco mais longe. Comprometeu-se. Não voltaria a atrasar-se se isso a afligia tanto. Jamais permitiria que ela se sentisse sozinha ou abandonada. Amava-a. Ela tinha de compreender e dar-lhe a oportunidade de lhe mostrar que não era falta de respeito, que era apenas a maneira dele amar e se relacionar. O amor já nada dizia. Olhava apenas para ela, para perceber o seu próximo movimento, a sua próxima fala. Apenas a observava. Ela sentia aqueles olhos sobre si. Não se quis deixar intimidar. Queria agir pela sua própria cabeça. Permitiria que ele a compensasse e que a amasse como ela merecia, como ela queria, como ela desejava, como ela sempre sonhara que seria amada. O amor baixou os olhos e meneou ligeiramente a cabeça.

By Margarita Kareva

Agora, enquanto esperava, naquele primeiro minuto de atraso de Pedro, ela compreendeu que o Amor que a contrariava sempre em toda aquela questão, vivia, afinal, no seu próprio coração. Era o único que esperava com ela, que a escutava e acalentava. Era ele quem fazia as vezes do seu amante, quando este faltava e ele faltava muito. O seu amante estava quase chumbado por faltas. Ela percebeu que decidir pela sua própria cabeça implicava que ouvisse o seu coração e o seu amor. O amor que sentia por ele, mas principalmente o amor que tinha de sentir por si própria. Ela entendeu que tinha de seguir a sua intuição e não as palavras de quem sempre mentiu.

Pedro liga-lhe. Tinha uma surpresa para ela. Que fosse ter com ele ao restaurante onde primeiro tinham jantado, naquele que foi o seu primeiro encontro de amantes. Tinha tanto para lhe dizer. Iria dizer-lhe que a amava tudo. Que apesar de ter havido outras, não tinha havido nenhuma. Que ela era tudo para ele. As outras tinham sido nada. Absolutamente nada. Ela que acreditasse e que, por favor, não esperasse por ele ali, onde primeiro tinham combinado, e que fosse para o restaurante que, com ternura, ele apelidou de ‘nosso restaurante’.

Como é possível que não sintamos nada de especial com as palavras dele, quando, há tão pouco tempo, apenas a voz do Pedro já nos dizia tanto?, perguntava-lhe o amor. Ela quis responder, mas não encontrou o que dizer. Era tão verdade, aquilo que o amor lhe sugeria. Nem o entusiasmo dele a contagiou, nem a sugestão de que seria uma noite especial, nem o carinho dele, nem o tom sussurrado, de amante enamorado… Ela nem estremeceu. Nem sabia porque é que as suas pernas continuavam a andar na direção que ele indicou. O que será que se passa connosco?, continuava o coração, também ele perplexo e quase falando para si próprio, sem aguardar, de facto, uma resposta. Estavam perto da morada indicada. Ela desatou a rir. Olhando-a de frente, o amor desatou a rir. Estavam à porta do restaurante e não conseguiam parar de rir. Sentiam-se soltos, livres e… felizes. Ele devia amá-la de verdade e iria fazer algo loucamente apaixonado nessa noite. Riam de felicidade pura, agora. O amor aceitava que tinha perdido a aposta. Afinal, ele gosta de ti. Era isso que desejavas, certo? Riam, agora, de forma convulsiva. Explodiam de sentimentos que nunca tinham experimentado. Ela, o amor e o seu coração. Acha mesmo que também a sua cabeça sorria com tudo aquilo. Mais um segundo e a porta do restaurante estaria à distância de um braço. Do seu braço. Ela não chegou a sentar-se no restaurante. Nem voltaria a esperar. Na verdade, ela nem sequer entrou. Nem sequer se comoveu, ao olhar lá para dentro, ao perceber que ele já lá estava. Que ele tinha um ramo de flores sobre a mesa e que parecia inquieto a olhar em redor. Ela seguiu em frente e não mais voltou.

Lá dentro, Pedro pediu uma bebida – bem forte, avisou ao barman –, porque hoje, anunciava, era o dia mais importante da sua vida. Iria pedir em casamento a mulher da sua vida. Pedro esperou.

Moral da história: Não espere demasiado, apenas o suficiente.

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