Era chegado o momento. Não estava para aturar mais tudo aquilo. Uma chefe insegura, que se impunha pelo medo, gerido com insultos e humilhações públicas, rebaixando os funcionários a bel-prazer, em frente de toda a equipa, sem motivos substantivos para tal. E mesmo que os houvesse, todos merecem respeito, mesmo quando erram, mesmo quando não prestam. Gritar. Humilhar. Cuspir ódio sobre as pessoas só revelava o espírito mesquinho que habitava o cargo. Quanto mais insultava, menos valor colocava nas ideias e trabalho individual e coletivo, acabando por conseguir chamar a si os louros e ainda descartar responsabilidades. Uma gestão delicada, a bem da verdade, mas tão canalha e mesquinha, que Gustavo sentia náuseas sempre que a grande estúpida puxava dos insultos e carregava nas ofensas pessoais e descabidas, disfarçando-as de incompetência.

– Só um anormal faria isto.

– De que mentecapto saiu esta proposta de jerico?

– Sempre cheios de ideias esquerdistas, mas uma simples exposição em Power Point ou uma folha de Excel já é demasiado opressivo e pidesco. Bando de chulos. Se a empresa fosse vossa ou se tivessem brio…

Gustavo pecava, por seu lado, por uma omnipresente capacidade de se colocar no lugar do outro. Era quase um vício moral. Entendia as suas fraquezas e até as suas retorcidas motivações. Ainda que não as aceitasse e com elas não pactuasse, chegava a compreendê-las. Por um breve momento, era os seus interlocutores, com as suas vicissitudes, bagagem e pontos de vista. Esse era um doce manto que aplainava a ira.

By Antonio Mora

Desta vez, porém, seria diferente. Pegaria o animal selvagem, ainda que de cernelha fosse. Arrastaria os pés no pó da arena até que a besta abrandasse o passo e deixasse de investir selvaticamente. Gustavo acelerou o passo logo que começou a ouvir o som estridente da voz da diretora. Insultava agora uma estagiária, que tinha arriscado defender a colega grávida sobre quem aquela Magda ‘Patológica’ destilava a sua insegurança visceral. Gustavo descia já as escadas de acesso à zona open space do piso térreo. Tinha de falar. De intervir. Tinha de ser já. Deve falar-se quando mais custa, pois é nessa altura que se encontra a coisa certa a dizer. Havia ainda mais um lanço de escadas. A estagiária arrastava a grávida. A grávida chorava. A grande cabra exultava com o sucesso de mais uma miserável campanha de domínio sobre a equipa. Sobre os mais fracos de entre os mais fracos. A estagiária e a grávida. Ninguém se mexia. Não que concordassem, aprovassem ou compreendessem, apenas tinham medo. Medo de que tudo se virasse contra eles e eles nada pudessem dizer ou fazer em sua defesa para que não colocassem o seu lugar em risco. Todos se acobardavam. Fingindo não ver. Um telefonema.

– Já te ligo. Agora, não posso!

Gustavo desligou a chamada, perdendo um precioso segundo na corrida desnorteada que encetara em direção ao gabinete da megera. Alguém se adiantou. Nem viu quem. Antes que recuperasse do fracasso, alguém que não viu, entrou no gabinete da cabra. A porta fechou-se. Esperaria. Esperou. Não havia propósito já. Gustavo sabia. Tinha passado o momento. Aquele em que custa falar e que por isso é o certo.

Partilhar