Peter Pan – Pedro Pancrácio segundo o registo civil – era um nanico de gente. Estava ali entre o seminanismo e o infantiloide, mas nada que lhe retirasse a grandeza de sonhar alto. Tão alto que, jurava ele, voava acima dos outros. Não era assim tão leve quanto isso, e ainda que muitos dele tivessem pena, devido aos seus extraordinários devaneios, não era pena suficiente para lhe dar sustento nas asas. Digamos, a bem da verdade, que não era tolo. Andava bem montado, num daqueles carros que não necessitam de carta de condução, o qual pintara de um vistoso verde-alface com uns toques de verde-seco, e era dono do Capitão Gancho, um simples café de esquina, outrora o Central da Esquina, elevado, segundo os critérios das novas tendências da moda, a elegante Taverna do Largo. Elegante será uma extravagância linguística, e o largo não era, por aí além, amplo ou desafogado, quase mais um pequeno patamar entre ruelas, mas o certo é que o estabelecimento constava em alguns guias turísticos não demasiado rascas, pelo que, volta não volta, lá andava a turistada a tirar fotos e a subtrair bases de copos com o nome da casa.

By Robert Doisneau

O logotipo da taverna tinha, há que confessá-lo, um toque enigmático, já que a par do boné de capitão da marinha somava ao desenho um gancho para o cabelo, daqueles típicos dos anos ’70 e ‘80. Símbolos demasiado equívocos, que acabaram por ser igualmente mal interpretados pelos próprios locais e, sem que disso desse verdadeiramente conta, Peter Pan viu a sua taverna transformada num local gay friendly e o mesmo é dizer que tinha um dos ambientes mais cool das redondezas e arredores. A música era do melhor, e claro que teve de contratar um barman profissional, já que as bebidas solicitadas eram coisas de que jamais tinha ouvido falar no seu passado de mecânico de automóveis especializado em minis – Peter Pan tinha afeto por coisas micro.

No departamento amoroso, Maria Ventoso, a quem, por conta da nova clientela estrangeira, chamavam Windy (não podemos ser sempre híper fiéis ao original, além de que o ‘e’ e o ‘i’ não distam assim tanto um do outro), era o seu pedaço de mau caminho. Sim, ela vivia num bairro social ainda não urbanizado, pelo que estradas e esgotos eram inexistente e visitá-la era uma dor de pés de todo o tamanho, porque o caminho até lá era, de facto, muito mau. Mas o amor não olha a sacrifícios, nem os aceita como tal, e nada que umas boas sapatilhas não contornassem com algum glamour e que o corpo de Windy não fizesse esquecer. Claro que era uma relação de contornos nitidamente platónicos, pois Peter Pan era todo ele muito imberbe e imaturo, inclusive fisicamente. Ela achava graça ao pequeno patrão e ao seu perfil exibicionista agradavam as miradas abusivas daquele quase anão.

– Se fosses maior – dizia-lhe Windy –, bem maior – enfatizava ela – podíamos ser tão mais felizes Peter. Seriamos um casal e peras.

– Não gosto.

– Do quê?

– De peras.

– Vê se cresces e se aprendes. Se ganhas mundo. Eu é que vivo nas barracas e tu é que pareces saído de um buraco escuro. Liga a televisão de vez em quando, lê um livro, ou um panfleto do supermercado, que seja. És pequeno e limitado em tudo. Não entendes como isso é cansativo?

Windy nem sequer entendia como é que o café-quase-taverna-da-moda tinha tanto sucesso. Só podia ser obra do acaso e de uma boa calculadora. Talvez o pequeno tivesse mesmo olho para o negócio, ou fosse bafejado pela sorte.

– Além disso, se crescesses um pouco mais, poderíamos livrar-nos daquele estrado macabro, por detrás do balcão, que tantas dores de costas me provoca no final do dia, já para não enumerar as vezes que lá tropeço.

By Bill Brandt

Nisso, Windy tinha razão. Devia ser deveras desconfortável passar tantas horas curvada sobre o balcão, tentando escutar os exóticos pedidos da eclética clientela. Isto porque, para que pelo menos a sua cabeça ultrapassasse o nível do balcão, Peter Pan tinha um altíssimo estrado na parte interior do balcão. Eram os seus tacões altos, por assim dizer. Estavam precisamente a meio de uma destas conversas reivindicativas de Windy quando, certo dia, um estranho evento ocorre e muda por completo as suas vidas. Para sempre. A uma hora em que o estabelecimento comercial primava pelo sossego e se aproveitava para organizar a casa, entra um indivíduo de idade indeterminada, com uma longa e antiquada casaca vermelha e uma macabra prótese no lugar da mão esquerda. Um militar, de regresso de alguma missão no Afeganistão, ou outro paraíso geográfico, determinou, desde logo, o perspicaz Peter Pan. O indivíduo pede um rum bem aviado e, pelo sotaque, era um britânico de licença. Tudo muito óbvio para o delirante Peter Pan que, volta e meia, piscava o olho à sua ventosa Windy, para garantir que ela percebia como ele era perspicaz. Nisto, aquela sinistra figura, que já ia no terceiro rum bem aviado, saca de um pacote do bolso – um saco de plástico transparente com um nó no topo – e Peter Pan, coloca logo os pontos bem assentes nos ‘is’.

By Henri Cartier-Bresson

– Nada de drogas aqui na taverna. Se quer consumir, temos um simpático privado nas traseiras onde se consome de tudo um pouco, se pouco for a quantia desejada, um pouco mais, se a disposição assim o determinar.

– Droga? Não se deixe enganar pela minha extravagante indumentária, ou pela mão ausente. O que aqui lhe trago é mágico, lá isso é, mas 100% natural, bio e ecológico. Pelo que lhe posso dizer, isto pode até salvar as baleias ou mesmo todo o planeta e ainda é antiaderente, como as frigideiras de cobre.

– Ainda não tocou no produto e já a delirar? Nada se compara à performance de uma boa frigideira antiaderente.

– Não sabe o que diz. O que aqui tenho, e coloco à sua disposição, é nada mais do que o Cogumelo do Tempo(ral). Uma simples pitada e o Tempo, todo e qualquer Tempo é seu, tanto aquele das horas como aquele outro da chuva e dos sol. Uma pequena noz desta substância natural e qualquer um se torna mestre do Tempo e, tendo como certo o que disse Einstein, também dominará o Espaço. O sideral e todo o outro.

Um esquisitoide, pensava, de si para si, a estarrecida Windy, já completamente apaixonada por aquele espécime ciber-steampunk, armado em pirata espacial. Nada a deixava mais louca do que gente estranha. Se já achava a sua piada ao diminuto Peter Pan, aquele outro podia fazer dela o que quisesse. Mais ainda com cogumelos temporais e teorias exotéricas à mistura. Já só pensava em alinhar-lhe os chakras. Todos.

– Eu quero. Posso provar?

By Vivian Maier

– Windy, estás louca? Este vendedor de ‘banha-da-sogra’ ainda faz de ti uma simples brisa –, alertou Peter Pan, incrédulo perante a facilidade com que Windy, como que hipnotizada, avançava para a experiência, sem perceber o papel de cobaia em que se colocava.

– Estou farta de ser ventania, não parar no mesmo lugar. Deixa que me fixe no espaço ou viaje no tempo. Não te apetece mudar? Fazer coisas diferentes?

Nisto, virando-se para o estranho, Windy atira:

– Quero provar isso, já, senhor…

– Hook, mas não me chames senhor. Muito embora tenha quase 200 anos, não gosto dessas formalidades.

– Ouviste isto, Windy? Quase 200 anos, o chanfrado. Deixa-me rir, para não deprimir…

– Pois se Hook domina o tempo e o espaço, claro que facilmente é eterno…

Peter Pan não tinha dúvidas. O estafermo tinha hipnotizado a sua miúda. Numa inesperada e surpreendente jogada, até para si próprio, Peter Pan diz que ela só poderá experimentar depois dele. Caso algo corra mal, ela terá oportunidade de fugir ou apenas evitar cair no mesmo erro. Sem dar tempo a que o impeçam ou argumentem contradições à sua vontade, agarra no saco do cogumelo e ingere uma boa porção. Bem lá no fundo, pensava o minguado humano que, a ser verdade, quem sabe ele não poderia reduzir todo o universo à sua escala ou, ao invés, agigantar-se ao nível dos outros ou mesmo acima deles. Ainda a seca e acre substância não tinha tocado nos seus sucos gástricos e já Peter Pan levantava voo, rasando a ventoinha de teto, uma relíquia que nunca conseguira tirar lá de cima, por falta de força e de vontade, e que quase o triturou nos primeiros segundos de existência alada. Hook e Windy diminuíam de tamanho. Não eram mais do que carochas que o olhavam lá de baixo, de muito longe, enquanto ele subia cada vez mais, atravessando estruturas que se esfumavam à sua passagem, como se fossem feitas de nevoeiro. Após uns minutos em que mal conseguia pensar, apenas sentir, Peter Pan sente-se ridículo por estar a voar na horizontal. Porque não dar uma de superpequeno-homem e endireitar-se? Tentou. Conseguiu. Estava verdadeiramente extasiado. Tudo era possível com o Cogumelo do Tempo(ral). Quando regressou ao bar, quase em queda livre, pois ainda não dominava bem a técnica mental do voo, Windy e Hook garantiram-lhe que a sua ausência não tinha consumido tempo algum. Tudo se tinha passado na ausência de tempo. No intervalo entre um e dois mississipis. Pequeno Pan não queria acreditar. Aquilo era estupidamente mágico! Queria mais. Queria tudo.

By Lee Friedlander

– Calma, pequeno homem. Tudo na vida deve ser doseado.

– Qual quê! Quero tudo e preciso que continue a fornecer-me para todo o sempre. Vou crescer em tamanho e sabedoria, preferencialmente em tamanho, e quero também dominar a chuva, e as notícias, e o envelhecimento, e a mentira, e o sabor e duração das pastilhas elásticas e tudo e tudo…

– Com tanta ambição, ainda se vai dar mal, mas não estou aqui para julgar. Lembre-se apenas de que pode acabar sozinho nesse longo voo. Alto, mas solitário. Dominador, mas sem companhia. Viver assim não faz sentido. Mais vale pequeno e ignorante, mínimo, mas amado. Não acha?

– Não – avançou Peter Pan perentório –, dê-me já mais Cogumelo do Tempo(ral). Vou ver se faço nevar no café da frente.

– Calma, então e eu? Também quero…

– Windy, minha querida. Aguarda aqui que eu regresse, alto e espadaúdo e depois viajaremos os dois para onde quiseres.

By Peter Basch

Sôfrega e egoisticamente, Peter lá ficou com todo o conteúdo do saco. Ingeriu um bom bocado e desapareceu nas horas e no espaço. Dizem que acabou numa ilha qualquer, rodeado de belas e jovens indígenas, que passou a chamar-se Gauguin e que tudo pintava de amarelo e azul fortes. Diz-se ainda que foi sequestrado por membros da Máfia, que queriam reproduzir em laboratório a mágica substância que Peter trazia naquele saco à cintura – o que acabou por se tornar moda nos circuitos do mau gosto –, mas quer uma quer outra versão nunca se confirmaram. Outro mito urbano dá conta de que Peter Pan regressa todas as noites ao bar de Windy, mas tão alto e arrogante que ela não o reconhece.

Aquilo que é verdade e se pode constatar, é que Windy e Hook lá deram o grande golpe do baú: afastaram o dono do estabelecimento com a mais tola das histórias, casaram-se no maior I love you e ainda criaram um mito em torno da taverna, agora, local de paragem obrigatória nos circuitos da pirataria. Só tiveram de substituir o gancho de cabelo do logotipo, por uma mão mecânica – muito embora, com a fortuna que faziam com a taverna, Hook já tivesse substituído o anterior ferro-velho por uma mão biónica, absolutamente sofisticada e futurista (há quem diga que foi Peter Pan quem lha trouxe, daquele outro reino onde agora vivia, numa realidade paralela).

Quanto a Windy, a primeira coisa que fez foi retirar o estrado-palanque que cobria o chão do balcão e a sua vida mudou para muito melhor. De facto, é mesmo verdade: Deus e a saúde espaldar estão mesmo nos detalhes. Resta saber se viverão felizes para sempre, mas a lógica pode responder por nós: como ninguém vive para sempre… É fácil de perceber.

Moral da história:
Há drogas que funcionam melhor do que outras e algumas não funcionam de todo. Outra coisa: não existem frigideiras verdadeiramente antiaderentes. Fica a nota.

By Robert Frank

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