Desde que se lembrava de ser gente, o que pode ter tardado, tendo em conta o pouco espaço de armazenamento na sua memória, que Inácio Boaventura Petinga sabia o que queria da vida: lidar touros, ou melhor, toiros, como pelas vastas campinas se dizia. Sonhava entrar numa praça apinhada de gente entusiasta, que gritaria o seu nome e o incentivaria a pegar a besta pelos cornos. No centro da mesma, ele. Ele de peito feito para o destino, olhos nos olhos com o toiro. Fitando a possível morte, a inevitável dor no abdómen resultante do embate, o sangue do bicho na sua boca, um tornozelo dorido, os gritos da praça que se apagavam nos seus ouvidos. Apenas o silêncio da sua solidão em plena praça apinhada de gente entusiasta, que gritaria o seu nome. Um nome que não ouviria. Assim era a concentração. Quando um homem enfrenta o medo puro, não há espaço para ruídos ou glórias.

Esta viria no final, quando o som regressasse, acompanhado dos primeiros sinais de dor que a adrenalina teria calado até então. Chapéus, mantilhas e leques voariam de encontro a si, flores e alguns bilhetes de mulheres sedentas de um encontro com o homem da noite. O forcado da pega exemplar. A pega que faria história e se colaria aos anais da tauromaquia mundial. Sobre ela se falaria para todo o sempre. Mesmo depois de morto, quem sabe numa praça, cheia como aquela do seu recorrente sonho, a sua pega falaria por si e faria soar vezes sem conta o seu nome: Inácio Boaventura Petinga. Um nome demasiado piscatório para aquelas lides, mas a vida tem destas ironias e um nome é apenas isso, um nome. O seu, gastá-lo-iam de tanto o aclamar e glorificar. Ainda assim, mesmo gasto o nome, restaria a pega, aquela em que nenhuma investida da animália, com mais de seiscentos quilos, como anunciariam, o derrubaria. Firme. Fixo na cornadura do toiro ele voava nos céus da praça sem largar o inimigo eleito de bom grado. As suas vestes, com sangue de um e de outro, manter-se-iam intactas nos museus tauromáquicos…

– Ó Inácio! Ináaacio. Tu acordas de uma vez por todas? Leva lá as vacas para o outro lado da cerca, se não for muito incómodo, pá! Raio do miúdo, tu não tens préstimo. Estás aqui para trabalhar. E ainda te dizes campino.

Lá acordaram outra vez Inácio, logo agora que ia ser entrevistado para a televisão. Não o deixavam em paz. Cambada de invejosos, remoía entre dentes Inácio, ruminando como uma vaca impropérios que iam e vinham das suas entranhas, sem que nunca saíssem da sua boca. Eles veriam como elas mordem no dia em que saísse da praça em ombros, aclamado por um país inteiro. Nem sequer tinha a compreensão do pai ou do irmão, mais velho apenas um ano, também eles ligados ao ofício do gado bravo. Apenas gozavam com ele.

– Com essa tua dicção, quando muito chegas a rabejador, mas jamais irás à cara do toiro.

Como se a dicção tivesse relação direta com a coragem e a foiteza que sentia sobrarem-lhe no peito. Rabejador, pois sim. O rabejador é uma espécie de guarda-redes para os forcados, e ele, Inácio Boaventura Petinga seria ponta de lança, o melhor goleador da equipa. Eles veriam, e não tardaria muito. Já fazia parte do grupo de forcados da zona e logo que tivesse tempo veria o que queria dizer dicção, no velho dicionário do avô, que isto mais vale estar-se preparado. Isso, caso não se distraísse e pegasse na lombada do lado, toda ela ocupada com as palavras ‘Toiros Bravos’, para a qual acabava sempre por resvalar a sua mão, comandada à distância por um ímpeto que não controlava. Acabava sempre agarrado às fotos de lides bravas, às histórias daquela classe de homens a que sabia pertencer. Aliás, já pertencia. Já era forcado no grupo da zona.

– Qual zona, Inácio?

A pergunta, repetida à exaustão, percebeu-o depois, servia apenas para o humilhar, para o fazer repetir infinitamente uma palavra que não conseguia pronunciar e fazer rir todos aqueles que se reuniam, vezes sem conta, a ouvir a mesma resposta:

– Co-uche. Forcados de Co-uche.

A risota não tardava e ele não entendia porque achavam tão estapafúrdios os seus sonhos. Para ele, a mãe pretendia um curso de agronomia, o pai já se satisfazia se ele tivesse cabeça para dar continuidade ao trabalho de campino, que ocupava há já demasiadas gerações para cálculos matemáticos quase todos os homens da família. Todos exceto o irmão. Este vivia desejoso de fazer 18 anos para se pisgar dali e jamais entendeu o fascínio de Inácio por uma atividade em fim de ciclo, bárbara e primitiva que, em seu entender, fascinava apenas os básicos e impiedosos herdeiros de uma atividade criminosa. O irmão estava sempre do lado do toiro. Fosse ele qual fosse. Nem pareciam nascidos dos mesmos pais, do mesmo local.

– O futuro é outra coisa, Inácio. O futuro pode ser o que quiseres menos isto. Além disso, tens esse problema de dicção. Jamais de deixarão pegar um toiro, pá. Vê se atinas!

Sempre a maldita da dicção. Quer o pai, que morria de vergonha das incapacidades do filho mais novo, e da recusa do filho mais velho, que renegava as suas origens e todo o passado dos Petinga, quer o irmão, que se envergonhava pela sua predileção arcaica pelo mundo dos toiros, a verdade é que Inácio não parecia agradar a quem quer que fosse. Talvez a mãe fosse sincera, quando lhe dizia, de quando em quando, que queria apenas o melhor para ele. Mas como pode o melhor ser contrário àquilo que nos vai no peito? Não pode, era a resposta que Inácio repetia para si mesmo, longe de ouvidos moucos e pouco empáticos. Longe de bocas cheias de dicção. Como a do irmão, que esfregava na sua ignorância de simplório, coisas que nem sempre entendia.

– Não sejas ridículo. Além de muitas questões éticas e de outras que respeitam aos direitos dos animais, que não voltarei a discutir contigo, surdo que és a tudo aquilo que não entendes ou não queres compreender, a verdade é que – e este é um lado técnico e prático que não deverias ignorar – não podes entrar numa praça e gritar ‘Toio uindo’. Não percebes que o azar te agraciou em dose dupla? Não apenas não consegues dizer os ‘erres’ como não pronuncias os ‘éles’. É mau demais!

O que interessam consoantes na boca de um homem quando este é capaz de se colocar frente a frente com o destino a cada fim de semana? Para isto não encontravam eles resposta ou dicção à altura. Pois ele lhes provaria que não seriam ‘erres’ e ‘eles’ a impedi-lo de sonhar e de cumprir sonhos de sempre. Calá-los-ia de vez com a pega do século, a pega de uma vida. Uma pega de tal modo gloriosa que calaria a vergonha que o pai tinha da cobardia do filho mais velho e da pouca inteligência do mais novo.

– Nem parecem meus filhos! –Atirava o pai campino à cara da mulher em dias de maior azedume. O pior é que, lá no fundo, julgava Inácio, a mãe poderia achar o mesmo. Que nenhum dos rapazes honrava os nomes Boaventura Petinga.

Por aquelas redondezas, Inácio era o rei da chacota. Dele diziam que não dizia os ‘éles’ da parte do pai, nem os ‘erres’ da parte da mãe. Uma brincadeira de sentido duplo e dúbio, já que a mãe se chamava Luísa e o pai Raimundo e com isto queria o povo dizer que ele gostaria de outra mulher e que a mãe andaria com uma qualquer outra letra do alfabeto. Mas sobre isso, Inácio não se detinha. Eles que se entretecem com as letras, ele enfrentaria o ‘toio’. Com ou sem ‘erre’, seria sempre uma bisarma à sua frente e depois de pegado, quem recordaria o abecedário?

 

A primeira corrida da época chegou e uma providencial lesão de um sénior, colocou Inácio no grupo dos efetivos para essa noite. O cabo, irritado com a situação, mas sem grandes alternativas, lembrou Inácio que se ouvisse a sua voz na praça, ele que escusasse de voltar ao grupo. Entrariam em praça com outros bons grupos e não permitiria que o seu saísse humilhado por ele nunca se ter dado ao trabalho de aprender duas letras do alfabeto.

– Se ouço ‘toio uindo’ atiro-te para as trincheiras, ouviste?

Que disparate pegado, pensava Inácio. Tanta energia gasta em detalhes sem importância. Vamos mas é pegar o bicho. Antes ainda de encher, Inácio inspeciona a imponente praça, sente o cheiro da terra ocre que cobre o chão, agarra com afinco o seu barrete e roda o pé contra a terra, como, em breve o bicho fará naquele mesmo chão. Chão sagrado. Inácio reza aos seus santos. Pede sorte. Pede uma oportunidade. Pede vingança. Pede, se houver espaço para tal, um ‘éle’ e um ‘érre’. Inácio pede. Pedir não custa e se o santo não puder, paciência, ele lá se desenrascará. Nada será pior do que toda a sua vida passada a ser gozado, mesmo em casa. Todos se acham no direito de minimizar os sonhos dos outros. Mais valia que tivessem um sonho a que chamar seu, em vez de perderem tanto tempo com os dos outros. O irmão estava cheio de letras mas não tinha coragem para entrar numa praça. O pai falava muito, mas não passava de campino… Inácio voltou a rezar e a pedir. Agora com mais força, chegando a sentir verdadeira dor nos dedos que apertava uns contra os outros, num rangido de ossos que até aos ouvidos doía, pois assim entendia ser a fé maior, aquela que é ouvida pelos santos. Talvez se soubesse como a noite acabaria, Inácio não tivesse pedido tanto. Talvez apenas um ‘éle’ ou nem isso. Mas Inácio não sabia ainda. Ninguém sabia ainda. Talvez nem mesmo o santo que, acordando com o barulho dos ossos dos dedos de Inácio, lá terá ouvido as suas preces e, ainda ensonado, lhas terá concedido, não todas é certo, não as mais necessárias, é sabido.

A corrida começa. Decide-se quem vai à cabeça, quais os ajudas e o rabejador, em função do peso e temperamento dos bichos que entram na arena. Um rol de contratempos logo na primeira pega, uma perna partida, um ajuda a caminho do hospital, outros três gravemente lesionados, mas não desistentes, um santo a cumprir o prometido e, sem quase se aperceberem, o cabo a dizer que Inácio lá teria de ser o cabeça de lista, sem sequer ter ido a votos. Era o destino. Era a sua vontade maior a abrir caminho, a acontecer. Eram os santinho no altar. Altar, que palavra difícil para Inácio.

Foito, grato e cheio de coragem, Inácio avançou, rodopiou no centro da arena, lembrou-se das suas falhas e dedicou faenas inventando palavras sem as letras que não conseguia pronunciar, tornando sui generis um discurso que a todos divertiu. O presidente da câmara de Co-uche passou a ‘chefe de todos nós’, a tourada apelidou-se de ‘festa’ que não podia ser nem brava nem rija, por conta dos malditos ‘érres’, mas que se aninhou a ‘encantada’ – felizmente sem letras escusas – e o grupo de forcados designou-o como ‘amigos de extensa data’. O jornalista rejubilava, e agendava já entrevista para o final da pega, ‘encantado’ que estava com toda aquela narrativa tão avessa à gíria tauromáquica. O cabo baixava a cabeça, já que a boca e os olhos esbugalhados não conseguia fechar ou disfarçar. Lá se enfiaram os barretes, lá se partiu para a guerra, palavras interditas, também elas na boca de Inácio, o destemido, o ‘desletrado’.

Fez-se silêncio na praça. Alinhou-se o bicho e o homem. Olharam-se olhos nos olhos. Mediram-se bravuras e, a fim de incitar a fera, Inácio grita – não obstante o número de ‘éles’ envolvidos – a plenos pulmões:

– Ó boi bonito. Boi, boi, boi bonito!

As gargalhadas irromperam de tal forma espontâneas e em tão estrondoso uníssono que o ‘boi bonito’ se distraiu, saltou barreiras e se recusou a ser pegado.

Inácio nada ouvia. Benzeu-se mais uma vez. Voltou a incitar o bicho, logo que reposta a ordem no recinto. Voltou ao boi e ao bonito e ainda ao castanho, sim, o bicho, por sorte era castanho. O público exultava e gritava por Inácio. O boi entendeu. Investiu. Inácio pegou. Foi bravo. Não largou. Era a glória.

Vieram os casacos e as flores e veio a entrevista. Livre, solto, exultante e agradecido, Inácio falou sem reservas, mas também sem todas as letras necessárias à compreensão alheia:

– Queo aguadeceu a todos que aqueditauam na minha brauua. Ea um toio difícil, mas com a ajuda dos meus santinhos a noite foi de góia. Maiavilhosa.  Agadeço a Deus e a todos os pesentes.

No dia seguinte, as notícias davam conta do pobre e iletrado forcado, de seu nome Inácio Boaventura Petinga, a quem a vida não tinha ensinado letras suficientes e cuja bravura, mencionada apenas de relance, se verteu ao peso da sua hilariante dicção. Quanto à pega, jamais foi mencionada, mas a sua entrevista ganhou estatuto de estrelato. Ainda que Inácio disso jamais desse conta, ou sequer entendesse do que se tratava, foi criada a ashtag #vamosensinartodasasletrasaoinacio #escolaparaosforcados #toiouindoepetingabrava

 

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