Os seus receios iniciais desvaneciam-se de forma cálida. Primeiro, receou a agressividade de um qualquer vendedor, ao ver entrar uma mulher sozinha num stand em busca de um carro, sem sequer ter bem uma ideia do modelo pretendido. Entrou como quem entra na Zara, apenas para ver as novidades da estação e porque sabia que o seu carro necessitava urgentemente de ser substituído. Ou isso, ou teria de gastar uma pequena fortuna em arranjos vários. Ainda que o seu olhar procurasse a mesma descontração de quando se circula por um qualquer centro comercial, vulgo shopping, o certo é que sabia que não poderia afastar o vendedor com a mesma ligeireza com que dizemos aos funcionários das lojas de roupa: “Estou apenas a ver, caso necessite de ajuda, chamá-lo-ei.” Não lhe bastaria ler a ‘etiqueta’ do automóvel, teria de fazer uma compra acertada, em função de níveis de consumo, do tipo de roteiros diários, mais urbanos ou mais de estrada, das verbas de que dispunha para a entrada e posteriores mensalidades… Era, a todos os níveis, uma compra complexa e exigente. Tinha lido artigos acerca de alguns modelos que via passar na rua e que, por questões estéticas ou outras, tinham captado a sua atenção. Logo percebeu que os que agradavam ao seu olho, não eram para a sua carteira. Um pouco como os homens. Aqueles por quem se sentia atraída fisicamente nunca olhavam na sua direção ou, quando olhavam, raramente eram heterossexuais ou estavam disponíveis.

 

Recusava-se, porém, a nivelar-se pela média e jamais por baixo. Uma verdade, quase um lema de vida, que não era alheia ao facto de, percebia-o agora, estar num stand de marcas de luxo, arrastando olhares lânguidos, quase obscenos, a uma espécie de jipe marfim, no qual facilmente se imaginava. Antes de encetar a sua ronda pelo universo automóvel, tinha-se forçado a ler artigos temáticos sobre alguns modelos e críticas comparativas entre outros tantos. Estava consciente, porém, de que por muito que tivesse lido ou viesse ainda a ler sobre o assunto, para não parecer um alvo fácil nas mãos de um vendilhão, nada sabia sobre cilindradas, potências, injeções diretas, consumos médios e mais um rol de aspetos que só de serem enunciados já a aborreciam. A esta sua desvantagem, somava-se agora outra, o calor que sentia dentro do look outonal que elegera para aquela tarde inusitadamente quente. Sentia-se desconfortável e irritada, naquele meio absurdamente masculino. Os homens é que falam de carros entre si, porque as mulheres não querem saber de carros. Estes são apenas máquinas que desejam que as conduzam de A a B, nada mais. Absolutamente, nada mais.

O stand estava minado de casais: ela para escolher o modelo, ele para negociar a transação. Também havia crianças. Tinha a capacidade de não as ver, mas ainda não controlava de igual forma a audição, pelo que ouvia os seus guinchos irritantes a abrir e a fechar portas de carros com força, esperneando de impaciência e deslizando mãos lambuzadas em toda a superfície visível dos automóveis expostos. Precisava de paciência. Ou isso ou um café. Preferencialmente ambos. Dirigia-se à máquina automática quando é interpelada por uma voz masculina, no tom exato de vendedor de automóveis: entre o sedutor e o impositivo. Perguntas de circunstância, se procurava um carro, qual o modelo, se a podia ajudar… Para já, um café, anunciou meio irritada. Acompanhou-a. Longe do eco infernal dos gritos infantis da área principal do stand, voltava a equilibrar os níveis do humor, se bem que ainda não o suficiente.

Continuava demasiado encalorada, mas a descompensação inicial desvanecia-se. Até a voz do vendedor, ou agente comercial, ou embaixador de stand automóvel, que as designações profissionais estão num inconcebível crescendo de ‘insignificados’ numa não menos incompreensível escalada pelos meandros do Português, parecia não perturbá-la tanto. Ela própria já não era hospedeira, era assistente de bordo, os cozinheiros eram chefs, os chefes eram coordenadores, os contínuos, auxiliares de educação… Parecia-lhe que compensavam as pessoas pela falta de aumentos salariais e diminuição do seu nível de vida com títulos mais dignos para as suas profissões de sempre. Também ela tinha sonhado alto, queria ter seguido biologia ou outra ciência médica que tivesse um forte braço de investigação. Mas teve de trabalhar para pagar os estudos e ajudar a sustentar a mãe, que vivia em permanente depressão desde que o pai morrera. Um daqueles casos de casais Albatroz, que acasalam para a vida e não conseguem sobreviver à ausência do parceiro. Carregou ela esse peso. E aquele outro, o de saber que a sua companhia na vida da própria mãe, não era suficiente.

Entre uma ou outra incursão, nada mal paga, no então mítico Bar 25, onde a troco de ’25 escudos’ por alguns minutos os homens (ou mulheres) podiam espreitar uma mulher nua, dançando ou apenas contorcendo-se de vergonha, tinha acabado numa candidatura de emprego para hospedeira. Mais valia chamar-lhe casting, pois a pré-seleção não passava de ‘tirar’ as medidas aos candidatos: se eram altos, giros e com ‘pinta’. Por isto entenda-se, agradáveis aos sentidos. Tinham achado que era e por lá ficou. Por maioria de razões, às quais os trajetos de longo curso e as forçadas e frequentes ausências não foram alheias, também o curso ficou, mas para trás, já se vê. Voltou a sonhar que enriqueceria em poucos anos e que encontraria um paraíso no mundo para onde levaria a mãe, e onde esta se permitiria sorrir de novo. Antes disso, a mãe morreu, de solidão, de saudade ou apenas porque estava viva e esse era o passo seguinte.

Não abdicou de pensar que algo mais a aguardava, que bem merecia, que algures, um pedaço de mundo e de amor estavam já a ser cunhados com o seu nome, como as taças dos campeões. Na brincadeira, animava-se a si própria dizendo que tinha chegado bem alto na vida, ainda assim. À exceção dos astronautas, ninguém vivia tão alto. Alturas havia, porém, em que se sentia vazia, ainda que cheia de tudo. Conhecia muita gente, conhecia o mundo, mas sentia-se vazia. Desocupada por dentro e uma casa sem inquilinos, é sabido, é dada à decadência dos materiais. Claro que se apaixonou. Claro que por um piloto que elevou ainda mais o plafond dos seus sonhos, o teto dos seus desejos. Iriam para Nova Iorque, abririam uma loja de objetos singulares, apenas de design da década de 50 do século XX. Viveriam na Village, conviveriam com a turma boémia do Soho… Claro que ele era casado, o verme. Claro que a mulher dele descobriu, o idiota. Claro que a mudaram de rota, a estúpida.

Achou, então, que a sua vida estaria em Paris, no coração de um pasteleiro de renome. Claro que ele a amava, mas cedo se tornou claro também que ele era gay, por isso sempre a encorajou a aceitar rotas de longo curso, que implicassem longas ausências e horários desencontrados. Amava-a, sobretudo, pelo sucesso que ela fazia junto da sua família – seguramente grata por uma mulher tolerar as idiossincrasias daquele filho ‘estranho’, do ponto de vista da burguesia rural, bem se vê –, nos fins de semana na campagne, e pelo não menor sucesso que ele próprio fazia nas festas da empresa dela, minada que estava de gays inexplicavelmente encapotados. Gente com família em terra e amantes em cada destino. Ainda assim, não deixou de acreditar, em si, no amor, na felicidade, numa porta aberta, num futuro quente, mas já não acreditava aos gritos. Acreditava apenas de forma audível, nada mais. De forma segura, mas já não histriónica.

Um dia, não se lembra bem qual, ou em que circunstâncias, percebeu uma presença ao seu lado. Qualquer coisa ainda indizível. Ainda sem nome. Menos ainda, rosto. Uma espécie de sensação, apenas. Algo. Era, todavia, cada vez mais palpável, quase visível. Só algum tempo depois percebeu do que se tratava. Era a solidão. A estúpida. Nem sequer tinha sido convidada, ou teria e não se recordava? Tinha vindo matreira. Sorrateira. Pé ante pé. Sem incomodar, mas também sem pedir licença. Sem alvoroço, mas também sem se ocultar. A cínica. Sempre tão séria, tão dona do seu nariz. Ao menos, que fizesse companhia. Que usasse de algum charme. Nada disso. Ocupava já o canto mais confortável do sofá, o lado da janela no avião, uma parcela razoável do seu coração, uma sombra extra no seu corpo… Tinha de a despachar. O plano era simples: aumentar os seus níveis de felicidade. Entre outras coisas, pensou logo num carro novo, sem constantes caprichos de oficina. Um carro poderia levá-la a tantos sítios desconhecidos, por estradas que nunca percorreu, entretida que sempre andou pelos céus do planeta e dos seus projetos. Podia dar-lhe mais autonomia, mais coragem para partir sem ser em trabalho. Um carro obriga a paragens constantes, força o diálogo com estranhos. Um carro podia ser aventura. Claro que já não tinha 18 anos e aquele não era o seu primeiro carro, mas, em certo sentido, era precisamente isso: o seu primeiro bilhete para o desconhecido, para o incerto e pela sua mão. Assim o decidira. Assim seria. Estava farta que a pilotassem, que a conduzissem, os pilotos e o destino. Todos para o raio que os parta, ou que apenas os estale. Tanto lhe fazia.

À sua frente, o coitado do vendedor continuava a falar. Parece que lhe tinha estado a responder com alguma coerência. O homem parecia entusiasmado. Falava dos extras incluídos naquela versão de luxo de um modelo sofisticado. Estacionava sozinho, ligava as luzes automaticamente logo que o dia adormecia, tinha sensores de chuva e de tudo o mais e a tudo isto somava um sem fim de outros equipamentos e luxos. Bancos de pele aquecidos e com opção de massagem. Teria pedicura incluída? Quase lhe saiu. Mas não saiu. Ainda não tinha perdido o juízo por completo. Mas a ideia de desconcertar aquele homenzinho que, imagine-se, dava pelo nome de Armando Fernando (que um avião com o porão cheio lhe caísse em cima, se não era verdade), era deveras atrativa. Uma sensaboria de conversa. E o seu corpo tão mole, tão incapaz de resistir. Acabaria por comprar, começava a perceber isso. O vendedor, seguramente, já o tinha percebido antes. Já estava num gabinete sem ruídos ou sinal de crianças dos outros, já que suas não as tinha. Já lhe serviam água com e sem gás. Já havia simulações de crédito, amostras de pele genuína para selecionar. Cores e vídeos com demonstrações em estrada e na cidade do modelo. O carro tinha nome de marca, de gama e de modelo. Uma espécie de aristocracia mecânica. O seu teria sangue azul, já não duvidava. A seu lado, uma cadeira vazia. Sim, está sempre tudo preparado para ‘o casal’. Apeteceu-lhe sorrir. A cadeira a seu lado não estava desocupada. De perna cruzada, fumando um havano, Cohiba ou Monte Cristo, não distinguia bem, com o seu ar insolente e indolente também, lá estava a solidão. Devem ter baixado o ar condicionado, ou ali, naquele gabinete, estaria com humores mais ciberianos. Recuperava a sua calma habitual. Voltava à sua boca o paladar adocicado do otimismo. Do seu, pelo menos. Sorriu. Armando Fernando viu cifrões nesse sorriso.

Olhava atenta para a simulação de crédito. Afinal, ser-lhe-ia possível pagar sem grandes sacrifícios a mensalidade daquela sedutora máquina e das suas jantes super, híper especiais, com os seus bancos massajadores e todos os extras a que se achava com direito. Com direito e esquerdo. Os seus olhos esbarram, porém, num daqueles palavrões que necessitam de tradução. Mesmo para uma ex-hospedeira, atual comissária de bordo com funções de chefe de cabine, viajada e cheia de mundividência. Uma diminuta parcela, com a sua ainda mais diminuta letra, somava ao total da mensalidade um acréscimo mínimo, de pouco mais de três míseros euros. A parcela tinha o pomposo nome de Comissão de Processamento de Prestações. Assim mesmo. Tal e qual. Comissão de Processamento de Prestações.

– A que se refere esta comissão? Que valor extra é este? – Perguntou ainda com um certo enfado e alguma distância, como se tudo o que ali estava a fazer fosse para uma amiga e não para si mesma.

– Ah, isso acresce a todas as transações, ou seja, é um valor que paga por cada prestação.

– Certo, mas a que se refere. É pago a quem?

– É o valor cobrado pela cobrança, por assim dizer. É aquilo que a locatária cobra pelo serviço de débito.

– Deixe-me ver se entendi corretamente. Esta comissão é um valor que me é cobrado para que possam ir à minha conta bancária levantar o meu dinheiro para a mensalidade?

– Sim, basicamente.

Sorriu. Agora mais abertamente. A solidão já não fumava. Também ela a olhava de frente.

– Caro Armando Fernando, podemos chamar-lhe imposto de maçada, não acha? É o imposto que me cobram pela maçada de me cobrarem dinheiro, certo?

Tinha descoberto o que sempre tinha corrido mal na sua vida: aquele preciso imposto. Não tinha dado por ele, mas toda a vida tinha pagado aquele preciso imposto. Toda a vida lhe tinham cobrado um preço alto pela cedência do direito de a usarem. A autorização era dada por si, através dela outorgava aos outros a possibilidade de abusarem de si, de a usarem, e cabiam-lhe a ela as despesas burocráticas. Era isso mesmo. Parece que a coisa tinha um nome: Comissão de Processamento de Prestações. Ou seja, abusar de si implicava aos abusadores uma certa maçada, algum trabalho, vá lá, e isso tinha um preço cobrável e previsto por lei, que era cobrado ao abusado. Pareceu-lhe mais revelador e até libertador do que a descoberta de qualquer das anteriores traições que já tinha experimentado na vida. Sem uma palavra, que já estava cansada, levantou-se e deixou a solidão com o coitado do homem. Estava farta de ambos. Sabia que iria demorar algum tempo, já lho haviam dito, mas descarregaria, nesse instante, a aplicação da Uber e não apenas teria direito a carro novo como a motorista. Sairia dali com ambos. Sem preocupações com jantes de ligas leves ou cores metalizadas ou tipos de cabedal para os estofos. Sem canseiras, sem Google Maps ou GPS. Mais importante do que tudo isso, sem necessidade de pagamento da Comissão de Processamento de Prestações. Não voltaria a dar autorização para que a usassem, quanto mais ainda pagar para que o fizessem. Até podia baixar um pouco as expectativas, mas não baixaria mais o seu amor próprio.

By Alexander Yakovlev

Moral da história – Nunca é tarde demais para começar a ler as letras pequeninas de um contrato. Todas as horas são boas para fazer perguntas e esta, a presente, é a hora mais certa para começar a ser feliz. Com ou sem fuso horário, com ou sem jet lag.

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