Esta é uma degustação absolutamente revolucionária, imprópria para palatos afetados e entoações nasaladas, suscetível de alguns tipos de alergias, mas que vale muito o risco. E, como lá diz o ditado: “Quem não arrisca… não petisca”, e é para isso mesmo, petiscar, que aqui estamos, verdade? Pois bem, avancemos com o receituário.
O Polvo Saiu à Rua Num Dia Assim, logo, esta não é uma receita de polvo, como explicitamente se esclarece logo pelo nome da receita. Dado que o polvo saiu à rua, restou-nos improvisar. Como isto de ser criativo na cozinha tem muita piada apenas para quem domina a arte e a alquimia das cozeduras e assim, não quisemos inventar demasiado e tentámos com outro molusco qualquer. Andámos pela internet em busca de variedades de invertebrados marinhos e viemos de lá encantados com a possibilidade da receita poder acabar numa fausta e seleta mariscada, já que os sésseis fazem parte desta maravilhosa família, que nos informou que apenas o soberano Polvo, de facto, tinha saído à rua. Avançámos para a banca de peixe apenas, afinal, para percebermos, com enorme tristeza e algum desprezo, que não podíamos pagar lagostas, camarões, lavagantes, sapateiras e ostras para o supimpa repasto de moluscos. ‘Raio do Polvo que tinha de sair à rua logo, logo nesse dia’, comentaram, desde logo, alguns. Não nós. Nós somos pela liberdade do Polvo e entendemos que, por vezes, mais do que deveria ser suposto, é mesmo preciso sair à rua. Estávamos em plena romaria filosófica, acerca da emancipação do Polvo, e eis senão quando uma sapiente e empírica voz recheada de conhecimento nos informa que, espantem-se, os reptantes também são moluscos!! Yupiii! Sabem o que isto quer dizer, certo? Pois claro, avançámos para uma caracolada. O pior foi quando percebemos que os bichos tinham de ser lavados, lavados novamente, ‘relavados’, deixados a purgar… Uma canseira que nem vale a pena descrever. Ainda assim, estávamos dispostos a encantá-los com esta surpresa de ter uma receita de polvo tão original que nem sequer necessita de polvo. O pior mesmo veio quando recebemos a tétrica informação: os caracóis são mortos vivos. Quer dizer, não são zoombies, ou mortos-vivos com hífen. O que queremos dizer é que quando vão para a panela que há de ir ao lume, eles ainda estão vivos e, logo que o recipiente aqueça um pouco, tentarão salvar as suas vidinhas e haveres, escalando paredes e tampas… Um horror! Parece que fazemos isto com tudo o que tem casca e carapaça. A indisposição tomou conta de nós. Tivemos de avançar para uma cervejaria para repor alguns níveis de cevada no sangue. Já mais bem-dispostos, percebemos que, sem maçadas, inconvenientes ou revelações existenciais do reino da biologia e dos animais, sem questões morais ou éticas, aquela gente simpática dali serviam pires de caracóis já prontinhos às pazadas. Pelo que por ali ficámos, a ver o por do sol ir para aquele lugar desconhecido para onde vai moinar todas as noites. Caso, ainda assim lhe faça confusão comer aquela bicharada estranha e rastejante, recorra ao serviço de um bom cabeleireiro, peça caracóis, uma leve mise ou uma mini vague e o caso fica mais do que resolvido, além de que ganhará em criatividade.
Logo que o Polvo Regresse a Casa, voltaremos aos moluscos. Ou talvez não!
Ingredientes:
– Qualquer tipo de molusco que não polvo
– Algumas questões morais para garantir que desinvestirá de matar animais vivos (única forma de os matar, pois se já estivessem mortos não haveria necessidade de matança)
– Uma cervejaria nas cercanias (esta pode ser a parte complicada da receita, mas com engenho e um bom GPS tudo se revolve, pois é sabido que o Homem apenas não encontra aquilo que não procura)
– Um pouco de filosofia barata (não vale a pena investir numa mais cara, já que se perde muito na evaporação)
– Computador para averiguar outros tipos de moluscos, que o mundo marinho é bizarro e complexo
– Acesso wi-fi
– Companhia para o petisco (opcional. Se for do tipo antissocial pode igualmente comer caracóis descansado, numa qualquer esplanada, sem necessidade de abrir a boca para outro efeito que não seja a mastigação, mas não muito, já que a etiqueta dita uma série de coisas a esse respeito. Não deite tudo a perder no final)
– Alguns níveis de cevada
– Pôr do sol (opcional mas de enorme importância. Dele pode depender todo o paladar dos caracóis, se acabar por optar por eles)
– Alguns caracóis
– Um bom cabeleireiro (se for o caso
– Cravos comestíveis, para enfeitar ou apenas colocar na lapela
– Boa sorte. Sem dúvida, vai precisar dela
– Um dia assim (a seu gosto)
Tempo de preparação:
De que forma nos podemos comprometer numa negociação como esta? Indo por partes:
– A quantos minutos dista a praça, o mercado ou peixaria mais próximos?
– A quantos minutos está da cervejaria ou tasquinha de que mais gosta?
– Quanto tempo demora a ganhar uma discussão ideológica consigo mesmo?
– Quantas questões morais lhe levanta a ideia de matar animais?
– E de os cozinhar enquanto ainda estão vivos?
– Quantas imperiais aguenta numa esplanada frente ao pôr do sol?
Quer dizer, é muita coisa a ter em conta, mas na verdade basta, agora, somar o total e não andará longe de uma possível resposta não muito errada.
Nota:
Dizem que a receita resulta melhor se degustada numa qualquer vila morena, pelo que esqueça as louras!

Ilustração Andrea Ebert
Deixe um comentário