Ela acreditava em Deus. Assim, sem mais. Seria, eventualmente, a sua crença mais metafísica ou espiritual, para não dizer mesmo a única. Tudo o resto em que acreditava tinha de ser palpável, sensitivo, ter uma existência real ou solidamente provada. Seria, de alguma forma, observável e passível de formulação científica. Podia decorrer de uma mente lógica e absolutamente racional ou seria apenas típico de uma pessoa básica, que tudo resume ao ver para crer, sem espaço a pensamento crítico, a saltos cognitivos ou a meras aventuras do porquê, capazes, tantas e tantas vezes, de tornar real o impossível? Sem resposta ainda, o certo é que era crente. Sentia presenças e conhecia certezas interiores que não careciam de prova e ignoravam provocação. Era uma espécie de luz interior, reconfortante, apaziguadora, que lhe falava de coisas que nem sempre entendia, numa outra linguagem de entendimento que não abarcava, ou apenas não abarcava ainda. Podia, com isso, sentir-se confusa, angustiada, pois aquilo que não entendemos tem o hábito de nos assustar. Não era o caso. Aquela chama que lhe ardia no peito era uma calma e serena certeza de que algo bom a acompanhava, a guiava, lhe trazia respostas quando mais confusa se sentia. Era a sua rede, garantindo a segurança de qualquer habilidade mais arriscada no trapézio. Mesmo que caísse, não se magoaria e apenas essa singela certeza, essa quase invisível trama de cordão lá em baixo, bem acima do solo, era o suficiente para que nunca caísse, tal era a segurança com que agia. Não ia à missa, já que aquele tipo de módulo formatado, como enfadonhas aulas do secundário, nada lhe dizia, mas ia à igreja. A todas as igrejas, capelas, capelinhas, ermidas, mesquitas e sinagogas. Fosse qual fosse a casa de Deus, independentemente do credo, da arquitetura do templo, da sua opulência ou estética, ela lá entrava. Sentava-se ao fundo, ou a um canto, discreta, em silêncio.

Eram lugares especiais, apaziguadores. Guardavam segredos milenares, felicidade e tristeza. Eram lugares de sabedoria e união. De luz e escuridão. Havia encantamento e paz naquelas paredes. Sentia-se bem lá. Completa. Lúcida. Também não rezava, que não era dada a cartilhas, mas entretinha-se à conversa com Deus. Com ele decidia tudo aquilo que era importante e Dele recebia os mais sensatos conselhos. O seu Deus era como um bom psicólogo. Não lhe dizia nunca o que fazer, apenas a questionava, a punha a pensar naquilo que verdadeiramente desejava, naquilo que a fazia feliz. Fazia com que fosse ela a encontrar resposta para as suas perguntas, solução para os seus problemas, esclarecimento para as suas dúvidas, saídas para os seus becos. Não lhe mostrava caminhos, mas garantia-lhe que conseguia abrir as suas portas, quaisquer que elas fossem. Não era paternalista, o seu Deus. Tuteavam-se com o maior cuidado e afeto, pois assim deve ser em qualquer relação saudável, onde existe amor e respeito mútuos. Tratavam-se por igual. Comunicavam em silêncio. Nesse dia, ela voltava a um tema recorrente e que a deixava feliz, porque eram pequenas e insignificantes coisas as únicas que tinha a atormentá-la. As grandes coisas estavam resolvidas e bem. Eram agora coisas boas e funcionavam em harmonia e amor. Ela voltava com pequenos nadas que a encanitavam, nada mais do que isso. Ela não sabia porque é que o homem que amava repetia ad infinitum tudo aquilo que sabia de antemão que a aborrecia e pelas quais, não raras vezes, já se tinham chateado seriamente. As batidas repetitivas dos pés e das pernas em qualquer superfície, que produziam uma batida minimal que a enlouquecia. Havia uma espécie de falta de respeito por ela e pelas coisas que ele tratava como se durassem para toda a vida. Ele não era um verdadeiro cuidador, cauteloso, meigo. Tinha sempre de voltar a repetir-lhe as coisas vezes infinitas e isso aborrecia-a de morte, como algo deveras pessoal e intencional. Mas não era. Era ele a ser ele e ela a ser ela. A reagirem em função das suas respetivas matrizes.

Ele não interferia na sua relação com Deus. Dizia-lhe mesmo que gostaria de ter essa mesma almofada, esse apoio constante, essa mão que não nos larga, mas era-lhe impossível imaginar esse tipo de entidade supramatéria, divina, de existência meramente espiritual e individual. Ainda que uma mesma fé mova milhões de indivíduos, teremos sempre um Deus para cada pessoa, pois cada um entende e aceita a sua ideia de Deus. Ele era demasiado pragmático. Gostava de facilitar a sua vida sem os dramas das questões filosóficas e religiosas. Acreditava em coisas simples e palpáveis. Tudo o que havia para saber e conhecer estava em terra, na física e na química, na ciência, na história, na matemática e na vontade dos homens. Acreditava na vontade férrea dos homens, na sua indómita capacidade para se superarem, no seu desejo ardente de progresso e de avanço no futuro. Acreditava na bola que passa a linha de golo, no vento que empurra as velas do navio, nos beijos de amor que trocavam, no poder da paixão e, até ver, na capacidade de cura dos antibióticos. Também acreditava no poder destrutivo do ódio, na fúria que impõe a revolta, na injustiça que redobra o fôlego da razão. Acreditava, sobretudo, no amor que sentia por ela, principalmente quando a encontrava, sentada em silêncio, numa espécie de invisibilidade, num fim de banco de igreja, a falar com o seu Deus.

Sabia que a amava mesmo quando ela o irritava de morte, com assuntos comezinhos e tão idiotas como ele não se ter descalçado antes de ir para o quarto, ou o barulho que fazia na casa de banho quando chegava tarde a casa, ou quando abanava a perna incessantemente ou… por vezes achava que ela inventava coisas apenas para implicar com ele. Ela conseguia ser tão irritante que só lhe apetecia sair de casa e ir abanar a perna e fazer barulho de sapatos calçados para outro lado qualquer e nunca mais voltar. Voltava passado meia hora, com rosas e beijos, que ela começava por recusar e a certeza de que a amava mesmo quando a odiava. O amor tem de ser inteligente. Ele também acreditava nisso. Que o amor também é vontade e decisão para manter aquela arritmia cardíaca do primeiro olhar, do primeiro encontro. O amor tem de ser inteligente e ele treinava o seu para ser o melhor do curso, para que ela nunca partisse e para que ele voltasse sempre ao cabo de meia hora com flores e beijos para ela inicialmente recusar. Ele não apurava culpas, apenas se abastecia de flores e beijos. Quando era ela a partir demorava mais tempo e não trazia rosas no regresso, mas ele esperava-a com abraços e olhos apaixonados. Porque quando se encontra o amor, não se pode deixá-lo fraquejar, adoecer ou morrer, menos ainda partir. Ele sabia que também ela estava a par da necessidade de instruir o amor, tonificar o seu cérebro e torná-lo o mais inteligente possível. O Deus dela ajudava-a também nessa tabuada e isso era algo que ele agradecia à divindade.

By Ian Lozeva

Ela sabia que tinha sido Deus a juntá-los e que esse era um laço inquebrável. Ele acreditava no imã que atraía possibilidades. Ele sabia que se algo era possível de gerar vida e beleza, a Natureza os juntaria a fim de possibilitar essa alquímica germinação e isso tinha toda a força do universo. Era o poder da vida. Do amor. O poder do imã das possibilidades. Eles tinham sido possíveis. Eles eram possíveis. E esse era um ato de inteligência da Natureza. Uma espécie de passaporte para sempre

Por isso, ela não percebeu quando um dia não lhe apeteceu aguardar em casa as flores e os beijos que ele traria e que ela sempre começava por recusar, nem ele entendeu porque nesse dia não lhe comprou flores nem lhe levou beijos. Sentada na igreja, ela fazia perguntas a Deus, enquanto ele tentava afinar o imã para atrair novas possibilidades.

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