P’ráli estávamos as duas. Vistas de fora, apenas duas mulheres sentadas lado a lado. Possivelmente irmãs. Provavelmente familiares ou apenas amigas, que o amor acaba por nos tornar iguais na diferença. Vistas por dentro, dois trapos de gente. Coração apertado. Punhos cerrados. Cerrados de medo, não de fúria. Também de fúria, mas mais de medo. Um medo selvagem, primitivo. Uma tensão que prendia nervo, ossos e carne num aperto inconsciente, involuntário, primário. Por fora, calma, seriedade, olhar perdido no nada, próprio de quem apenas espera. De quem aguarda.

Não sabíamos bem o que aguardávamos, o que nos esperava e por isso tínhamos medo. As nossas mãos quase se tocavam sem que disso déssemos conta. Também isso involuntariamente, desapercebidamente. A mente não pensava, de tão alerta que estava para outras coisas, para o tal medo de morte. Uma mente um tudo mais desanuviada, um pouco menos aterrorizada perceberia que as mãos se procuravam, que a pele das mãos enosilhadas procurava a pele das outras mãos enosilhadas. Mas a mente sabia bem que as mãos se procuravam por ordem do coração. Mas era imperiosa uma contra ordem, pois se as mãos se tocassem acionariam o interruptor das lágrimas, pois assim funcionam o corpo e a mente humanos, e, então, choraríamos. Nós não chorávamos, por isso as nossas mãos não se tocavam. Raramente se tocavam. Nunca chorávamos. Não por decisão. Por condição. Era assim. Só isso.

Quem nisto reparasse, nas mãos que se procuram, mas se evitam, poderia agora pensar que éramos amantes. Também o éramos, seguramente. Alguém tossiu. Não nos mexemos. Não nos virámos. Não vimos. Apenas o som. Aquela tosse. Uma tosse que, num corredor de espera como aquele, soa a doença, a fastio, a prenúncio de morte, ou de sorte. Não podíamos olhar, nem respirar. Nada nos podia retirar a concentração daquela dor que já era física. Nada nos desconcentraria. Nada nos desconcertaria. Estávamos no centro de um espaço limitado e absorvente. Poderoso como um redemoinho em fúria, encaminhando a água do rio revoltoso para as entranhas da azenha, onde o seu insuspeito corpo líquido esmagaria o mais ínfimo grão de esperança.

A gente aborrece-se de tudo, em momentos de espera. Agente enfada-se de tudo na vida. Até da dor e da nossa vontade de dor, da nossa ânsia de sofrimento. Ela estaria a sentir a pior coisa do mundo: pena de si própria, que é aquele tipo de lamento que enraivece e corrói. Lamentava-se. Chorava-se. Culpava-se. Julgava-se. Penalizava-se. Conhecia-a bem. Estava a sentir pena de si própria. Se não estivesse tão obstinadamente a pensar nela, eu estaria a pensar no que iria fazer para o jantar e de como se fazia tarde para quem ainda tinha de correr para duas escolas a buscar crianças a quem tinha de dar banho e de jantar. Daí a preocupação com o jantar. E se não os fosse buscar? E se não fizesse jantar? Nem lhes desse banho? Seria um dia memorável também para eles. Inesquecível. O dia em que tinham ficado esquecidos à porta da escola, porque a mãe ficou tolhida, transida de medo algures num local onde se esperam coisas que doem. Disparate.

Voltei aos punhos cerrados, à involuntária primitividade de quem tem medo. De quem sofre. O sofrimento que sentia, após tanto tempo e depois de tantas horas de espera naquele corredor de tosses, era já voluntário. A minha cabeça já não aguentava tanto desespero, tanta falta de lágrimas e o meu corpo, saturado de sofrer, lutava para se descontrair. Não permiti. Não era apenas solidariedade, era decência, era decoro. Por todos os que aguardaram o mesmo que nós naquelas mesmas cadeiras encostadas à parede, por todos os que ali conseguiram aliviar a tensão com lágrimas e gritos e por todos os que morreram um pouco por dentro por não conseguirem outra coisa senão aguentar firme. A seco. Em silêncio. Esperneando por dentro, sangrando internamente e todos sabemos como são graves os casos de hemorragias internas. Principalmente na mente e no coração.

Quis desanuviar o momento, quebrar a tensão e o silêncio. Propor um café, um cigarro na rua, um pedaço de azul do céu para animar. Sentiu que não conseguiria sair daquela posição. Que os seus joelhos não obedeceriam e isso seria patético.

– Tenho uma trança do meu cabelo em casa.

Não sabe porque foi dizer aquilo. Assim. Sem mais. De rompante, sem aviso prévio, ainda sem certezas do que quer que seja, pois se ainda aguardavam. Se bem a conhecia, não obteria resposta. O mais certo seria que a mandasse calar, com ou sem palavras…

– Estava precisamente a pensar nela. Se ainda a terias. O teu cabelo é lindo.

Surpreendeu-se e maravilhou-se. Já se preparava a vida depois da vida, a vida depois de uma pequena e breve morte. Havia esperança. Havia cabelo. Ri-me. Percebi que todos olhavam agora para nós. Nós que até ali éramos nada para aquela gente igual a nós, éramos agora o centro.

– Sempre disseste que eu tinha pelo na venta, pois agora ele vai estar nas tuas ventas.

O riso secou, claro. Engolido agora também pela culpa e pelo ridículo e pelos olhares dos outros para quem a graça não tinha graça. Voltou a sentar-se no trono apenas o medo. Imponente e senhorial. Nada de brincadeiras no seu turno. Quem desobedecer vai para a rua. Uma rua bem mais fria do que aquela onde se encontravam. As duas, p’rá li. Lado a lado. Sérias e doridas. A sofrer por dentro e por fora. Já tínhamos passado por tanto e, afinal, tão pouco perante o tudo que agora experimentávamos. Tantas coisas se atropelavam na minha memória…

     

Chamaram o seu nome. Não se conseguiam mexer. Para já, tudo era uma incógnita. Logo que entrassem deixaria de ser. Podia ser muito melhor, mas também podia ser o fim. Não gostamos de arriscar. Ensaiaram um movimento quase sincronizado. Logo ficariam a saber.

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