- A mesa de jantar estava um primor. Sempre gostara de pôr a mesa. Não apenas ‘pôr a mesa’, mas uma mesa bonita, decorada, preferencialmente com um tema, por norma, uma cor, um estilo, uma flor. Qualquer coisa que desse o mote para tudo o resto que punha na mesa. O tipo de centro, o tipo de serviço e faqueiro. Mais do que um hobby seria, por certo, um escape à rotina destes novos quotidianos em que encerramos toda uma existência. Voltou a olhar a mesa, agora de um novo ângulo, vinda da porta de entrada principal, pois seria esse o primeiro vislumbre da mesa de quem chega a casa. Parecia linda. Encantadora. A melhor palavra parecia-lhe mágica. Sim, a cor dos copos ganhava uma tonalidade amorangada que vinha da forma como o cristal refletia as cores das pétalas de rosa que flutuavam em taças estratégica e simetricamente colocadas numa imaginária linha central que dividia o tampo da mesa longitudinalmente. Um passo mais em frente e os copos voltavam à transparência incolor que lhes era própria. No espelho, que ocupava boa parte de uma das paredes da sala de jantar, bem por cima do aparador, tudo parecia ganhar um certo tom de mel igualmente elegante. Estava satisfeita. Apenas restava decidir qual a melhor cor dos guardanapos. Se, simplesmente, brancos ou se os roxos, para maior contraste com o linho branco da toalha. Já veria.
Estava na hora de se arranjar. Era um dia especial. Mas estava tranquila. Deveriam ir jantar fora. Assim começou por estar combinado, mas quando soube a razão do convite que o filho tinha endereçado aos pais, decidiu que era demasiado importante para ser vivido em público, junto de estranhos. Iria conhecer a namorada do seu único filho. Queria que o momento fosse único. Irrepetível e não apenas mais um jantar fora num qualquer sítio da moda. Mais do que um jantar, estava a elaborar com minúcias de cirurgião, com engenhos de artesão, uma memória futura para todos os elementos da família. É certo que ela e o pai do filho estavam separados há já uma eternidade. E que as coisas entre ambos nunca ficaram bem resolvidas. E que o ambiente, quando ambos se juntavam, nem sempre era pacífico, mas… Era uma noite muito especial e, por isso, estava certa, saberiam ambos estar à altura do evento. A fim de assegurar isso mesmo, fez um gentil telefonema para o ex-marido, convidando-o pessoalmente, já que o jantar seria em sua casa, e dando-lhe conta do seu entusiasmo e do quanto gostaria que este fosse um momento precioso, uma lembrança que desejava inesquecível para todos os elementos da família, não obstante cada um viver universos distintos. Gostou de voltar a perceber quão sexy era a voz do ex. Há muito que não era sensível a esse tipo de coisas, já que uma infinidade de coisas irritantes nele abafavam tudo o resto. O excesso de convívio não fazia bem. Não sabia sequer porque se determinara como óbvio que os amantes vivessem juntos. Partilhar, sim. Dormirem juntos, sim, mas cada um deveria ter um canto para onde voltar sempre que apetecesse, a fim de evitar arrelias, implicações e até, por ventura, traições. Quanto mais longe mais atraídos. Demasiado perto deixavam de se ver. Ele foi um cavalheiro. Disse-lhe para não se preocupar com o vinho e que levaria flores, ela que preparasse uma jarra. Sempre era menos isso com que teria de se preocupar, até porque insistira igualmente em cozinhar. Recusou toda e qualquer sugestão de serviço de catering. Queria ser ela a alimentar aquela refeição, aquelas pessoas, naquela noite. Mais um disparate tipicamente feminino, estava certa. De que servia matar-se a cozinhar, a preparar uma infinidade de pratos e doçaria, que a obrigariam a horas de pé e a cheirar a comida, quando um bom serviço de catering o faria igualmente bem, senão mesmo melhor, deixando-lhe mais tempo para si e a sua preciosa mesa? Devia ser um qualquer tipo de orgulho. Um último relance à mesa. Continuava satisfeita. Foi-se arranjar.
A perspetiva de voltar a ver o marido, quase um ano depois da última vez, quase sempre no aniversário do filho, estava a entusiasmá-la. Decidiu que, afinal, teria de escolher outro vestido que não aquele que havia comprado para a ocasião. Era demasiado formal. Apetecia-lhe estar mais sedutora. Ficou logo stressada. Precisava agora de um pouco mais de tempo para se arranjar. Olhou o relógio. Tinha tempo. Como combinado, o ex chegou um pouco antes da hora marcada, a fim de poderem ambos receber os miúdos quando chegassem, às 20h30. As flores que ele trouxe eram lindas. À parte trouxe uma rosa para ela. Ela corou, mas manteve a pose e apressou-se a colocar tudo em jarras. O arranjo era tão grande que ela conseguiu encher a casa de flores. A rosa, levou-a para o seu quarto, enquanto se congratulava pelo facto de também ele parecer ter dado particular a atenção ao seu visual, por norma demasiado blasé. Ele levou o vinho para a cozinha, decantou uma primeira garrafa e aguardava-a na sala com dois copos de vinho. De repente, aquilo parecia apenas um muito desejado encontro a dois, pensava ela, mas não exclusivamente ela, pois percebia nele igual misto de excitação e embaraço. Tinha todo o perfil de um jantar romântico… As velas, tinha-se esquecido de colocar as velas. Ela levantou-se e procurou no armário. Pediu-lhe que ele a ajudasse. Mais um gesto de romantismo. Pelo menos naquele ambiente, com um Sinatra muito jazzístico em pano de fundo. O filho ligou. Já estavam a entrar no elevador. Ela abriu-lhes a porta. A seu lado o ex. Os seus olhos fixaram-se na jovem. Quase tinha rebentado de curiosidade e agora ali estava ela. Claro que havia fotos, às centenas no telemóvel do filho, no Facebook de ambos mas, a carne ao vivo é outa coisa. Também por isso nunca se rendera às compras online. Ela sempre tinha gostado de ver ao perto. De cheirar. Tocar. Sentir. Ao vivo. In locco. Gira. Muito gira. Nisso, as fotos não tinham mentido. Restava avaliar tudo o resto. Era uma analista, pelo que confiava plenamente na sua perceção das coisas. No seu coração. No seu instinto. Nas suas entranhas.
– Olá, tiaaa!!
O entusiasmo repentino atordoou-a. Não entendeu porque lhe chamava tia e a maior humilhação foi quando se preparava para lhe dar segundo beijo na outra face e a face já lá não estava. Apenas um beijo. Um beijo único está reservado, em seu entender, àqueles que mais se ama e com quem se vive todos os dias. O marido, os filhos, os pais… A quem não faz sentido a formalidade diária de dois beijos sempre que se encontram. Aí, sim, havia instituído o beijo único. Mas a alguém que conhecia pela primeira vez e perante a qual era suposto reservar alguma formalidade, pelo menos inicial? Parecia que tinha sido atropelada por um furacão. Tudo isto enquanto a jovem ainda limpava mecanicamente os pés no tapete da entrada. Também ela deve estar nervosa. Mais do que ela, pensava. Afinal, ela jogava em casa, já a miúda. Miúda, não: Prin. Prin? Repetiu ela mais para garantir o ridículo sonoro daquele som – sim, não chegava a uma palavra, era apenas um ruído – do que para confirmar se teria ouvido bem.
– Prin, tia. Os pais sempre me chamaram Princesa, ‘táver? Acabou Prin, para abreviar.
Fechou os olhos um segundo. Nada daquilo fazia sentido. Os pais? Como assim? Todos os pais do mundo? Os pais dos amigos também costumavam chamar-lhe princesa? Como se chega a esse ponto de concordância universal em que todos os pais concordam ou surgem espontaneamente com um mesmo nome para determinada criança? O que é que… Prin – custava-lhe imenso pronunciar aquele som – queria dizer com tudo aquilo? Teria algum défice cognitivo e por isso o filho era sempre tão reservado ao falar da namorada? Disparate, ele sempre fora reservado no que tocava a namoradas, mais ainda esta que era um caso tão recente. Seria um problema de Português?
– A tia ‘rámente’ esmerou-se. A casa ‘tá lindaaaa!! Agora vou ter de fazer um ‘tefonema’, disse à mãe que lhe ligava assim que chegasse, ‘táver’?
Sem dar por isso, caiu numa cadeira como que inanimada. Olhava esbugalhada para o filho. Foi então que se acalmou. Percebeu nos olhos dele que ele esperava que ela tivesse uma qualquer reação semelhante à que estava a ter e o rosto divertido do ex mostrava-lhe que estavam apenas perante um tipo social e não uma aberração gramatical. Mas o que era aquilo? Era professora universitária. Tinha alunos de todas as proveniências, de todos os estratos, de todas as classes sociais e sotaques. Mas aquilo não lhe parecia compatível com o que quer que fosse. Aquilo era apenas muito idiota. Mais do que isso. Era absurdamente ridículo. Qual o propósito? Comer palavras, claro que todos os calões o faziam, de uma ou outra maneira, mas tratá-la por tia e repetir ‘táver’ no final de cada frase, fizesse ou não sentido? E a que se devia aquela espécie de entoação anasalada que arrastava todas aquelas palavras mal ditas como que para reforçar que se estavam a proferir mal propositadamente? O ex e o filho perceberam tudo aquilo. Ambos tiveram o mesmo intuito: servir-lhe mais vinho. Todos riram. Findo o ‘tefonema’, a garota estava de volta.
– Tia, preciso de retocar o bâton. Posso usar a casa de banho? ‘Criducho’, trazes a minha carteira e indicas-me o caminho?
Retocar o bâton. Que cliché tão démodé. ‘Criducho’? Simplesmente ridículo. Carteira? Não quereria ela dizer mala? Porta-moedas, para o dinheiro. Carteira para os documentos, e mala para meter tudo isto e o resto, certo? Errado. Algo estava muito errado e ainda não tinha descortinado bem o quê, ou quanto. Quando ficaram sós, ela olhou com incredulidade para o marido enquanto espalmava a palma da mão na testa como se procurasse medir a temperatura. Ele disse-lhe para ter calma, que era miúda mimada e coisas do género que em nada a acalmaram. Bebeu mais um gole de vinho. De regresso, a garota volta ao ataque, cada vez com mais empenho e desconcerto.
– Tia, tem uns retratos liiindos! O Filipe em ‘piqueno’ era uma delícia!
– Obrigada – conseguiu dizer, parecendo que era ela a tímida convidada numa casa estranha em que conhecia os seus habitantes pela primeira vez e não a, até há pouco, entusiasta anfitriã. Retratos, tiravam-se no século XIX e ‘piqueno’? Com ‘i’?
– Não lavei bem as mãos, preciso de voltar ao ‘W’, se não se importa.
Lá foi ela a abanar a anca de forma desmesurada enquanto repetia, de forma absurda, o tique do cabelo num movimento em três andamentos. Primeiro, baixava a cabeça para que a pala descesse bem sobre todo o rosto, cobrindo-o por completo. Segundo, sacudia a cabeça fortemente na direção contrária à do risco do cabelo, açoitando o ar violentamente, provocando um frio que parecia arrefecer tudo em redor. Por fim, com a mão contrária ao lado em que fazia o risco, conduzia a madeixa de franja para trás da orelha. Ora, assim sendo, os dois primeiros passos eram absolutamente desnecessários, avaliava, enquanto questionava com o olhar o filho.
– Ó mãe! Não comeces. Ela é encantadora, vais ver!
– Pois bem, mas também é obsessiva compulsiva, não te parece?
– Um pouco, talvez, mas está em tratamento.
Em tratamento. As palavras ecoaram na sua cabeça a noite toda. Havia necessidade do seu filho único ter uma namorada tão jovem que já andava em tratamento? Por causa de Distúrbio Obsessivo Compulsivo? Daí a necessidade constante de lavar as mãos e aquele elaborado tique para colocar o cabelo atrás da orelha quinhentas vezes por segundo. Estava a ficar louca, mas percebia que, no meio de todo aquele aparato a miúda era simpática e sociável. Talvez sociável demais. Era vê-la, desabrida, a nasalar temas que iam da novíssima moda das gargantilhas até, imagine-se ao sexo.
– A mãe sempre nos disse que aos 18 anos tínhamos de ter o assunto resolvido, por uma questão de higiene.
Higiene, era de facto, um tema querido à adoravelmente surpreendente Prin. O nome ainda não lhe entrava. Era demasiado parecido com trim-trim. Três vezes se levantou a meio do jantar para ir lavar as mãos. Uma higiene entre pratos, por assim dizer. Com tudo isto, o vinho não devia chegar. Salvava-a os olhares enternecedores e galanteadores do ex. Havia ainda algo ali a ser explorado, quem sabe a ‘crida’ Prin não estivesse a entrar na sua vida por uma razão. Para lhe trazer de volta um grande amor. Bebeu mais um gole. Seria o que Deus quisesse, se bem que não era uma mulher de fé, pelo que não podia deixar tudo ao acaso. A dada altura o ‘tefone’ da ‘piquena’ toca. Era a mãe. Qualquer coisa que já não se deu ao trabalho de entender e Prin a retorquir para o aparelho:
– Não tem importância, Mãe. De todo. Durmo na casa do Filipe. Os pais são do melhor que há, ‘táver’? ‘Tamos a dar-nos lindamente. Não há mais conversa, vou dormir aqui.
Se a ‘piquena’ achava que ia fazer a ‘higiene’ completa lá em casa, estava redondamente enganada. Dormiria no quarto de visitas e não havia vinho suficiente para a demover.
Foi num repente, seria já o álcool a expressar-se, arrumar o quarto. A cama tinha lençóis lavados, pelo que bastaria colocar toalhas, e muitas, no ‘W’ para gáudio de tanta higiene. Quase de saída, reparou naquela Nossa Senhora de Fátima que brilhava no escuro e que a sua mãe, sempre que ia lá a casa, tinha a teimosia de tirar da gaveta da mesa de cabeceira e colocar bem à vista. Não a incomodava por questões religiosas, se bem que não gostasse de figuras ou representações de santos. Pareciam-lhe sempre muito tétricas e funestas. Também não sabia bem onde colocá-la, pelo que enfiou-a, sem escrúpulos, debaixo do colchão. Se se partisse, tanto melhor e a responsabilidade não seria sua. Pelo menos, não totalmente. Era uma estatueta esguia, não muito grande, por sorte, a ‘piquena’ nem daria por ela. Explicou as suas razões a Prin. Ainda mal se conheciam e não lhe parecia apropriado que, logo na primeira noite lá em casa ela e o filho…
– Claro que compreendo, tia!! Perfeitamente, não se apoquente. Era o que mais faltava. Acho até amoroso.
Amoroso. Precisava de cigarros. Sim, já tinha deixado de fumar há cinco anos, mas há cinco anos a perspetiva de sexo higiénico com o seu filho não era um pensamento que a consumia nem tão pouco ‘a mãe’, como se houvesse apenas uma mãe no mundo inteiro. Uma espécie de mãe universal. Se ouvisse mais um ‘táver’, um que fosse, no minuto seguinte, acreditava piamente que explodiria. Tinha de se controlar. Informou que tinha de ir à rua, mas não demorava. O ex fez toda a questão do mundo em acompanhá-la. Desabafou toda a sua incredulidade, enquanto ele, calmamente, lhe ia dizendo que a miúda era de Cascais. Ela continuava sem entender. E depois? O que tinha isso a ver com um domínio péssimo do Português, e um vocabulário limitado, equivalente ao de uma criança de cinco anos? Tudo era ‘lindamente’. E não teria memória suficiente para decorar o nome das pessoas que ia conhecendo? Seria a bengala ‘tiaaa’ uma forma desastrada de não ter de sobrecarregar a cabeça com nomes? Não queria saber se era de Cascais mas gostaria que a noite acabasse sem a dúvida, cada vez mais consistente e substantiva, de que Prin era burra.
– Mas deve ser boa na cama, do ponto de vista higiénico, digo eu –, divertia-se o ex que estava naquele ponto em que achava que o filho tinha de conhecer muitas e variadas raparigas. Só assim poderia encontrar a ‘tal’. Uma sorte que nem todos os homens têm. Outros há que a encontram e acabam por perdê-la, acrescentou, acariciando-lhe o cabelo. Talvez a noite não estivesse a ser, assim, tão má quanto isso, pensou ela, tonta agora com a primeira passa do cigarro.
Regressaram a casa e ficaram a conversar até de manhã. Há anos que tal não acontecia. Tinha sido maravilhoso. Apenas conversaram. Riram. Falaram do que tinham verdadeiramente feito desde o divórcio. Os amores e desamores. Falaram de solidão e quase já nem se lembrava que Prin estava a dormir lá em casa. Mas isso durou pouco tempo. Ainda não eram nove horas da manhã – sim, estiveram a falar a noite toda, mesmo – quando a jovem surge com uma t-shirt do seu filho, maneando a cabeça daquela maneira aflitiva, mas radiosamente bem-disposta. Talvez o filho tivesse as suas razões. Não devia julgar Prin daquela maneira, com tão pouco tempo para uma avaliação mais consistente. Era uma miúda gira, fresca, desinibida, franca e aberta. Deveria conhecer melhor o seu caráter, o seu coração, antes de se decidir a odiá-la.
– Tiaaa! Muito obrigada.
– De nada, Prin. Não podíamos deixar que ficasses na rua, certo?
– Ah. Não era a isso que me referia. Foi pela gentileza de me deixar um dildo debaixo do colchão. E que original, brilhava no escuro e tudo!
Moral da história: Mantenha a religião dentro da igreja e o amor a Deus em todo o lado.
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