Setembro ia já a meio. Com ele as noites chegavam mais cedo e o sol não se erguia tão alto no céu, mas as tórridas temperaturas que se faziam sentir superavam as de muitos verões, pelo que a vida tendia a agarrar-se aos indolentes hábitos que, por norma, preenchem a agenda das férias. O único problema era que, entre o pequeno almoço na ‘quequeria’ mais in do bairro e o reencontro, no final da tarde, na marisqueira do Armando – Mando para os habitués – tinham agora de trabalhar.
– Uma maçada! – Lamentou-se Anikas de Lacerda.
– Antes fosse uma massada do Tosta do Castelo.
A resposta, sempre pronta e bem-humorada, era de Jójocas Rico-Fino, dos Finos da refinação. Um adorável querido. Esbanjara todo o dinheiro da herança e, agora, coitado, tinha de trabalhar horrores, como assessor de qualquer coisa no gabinete de um ministro qualquer. Um pobre coitado de nome Asdrúbal – imagine-se! –, com quem Jójocas jamais se cruzaria no social ou a quem nem sequer falaria não fosse a estúpida necessidade de trabalhar para sustentar três divórcios e uma catrefada de filhos. Já se sabe, os conservadores gostam disso mesmo, de conservar e a família, desfalcada ou não de dinheiro, era a sua melhor conserva. Filhos, sempre. Pois Jójocas lixara-se e bem com a fé cega que depositava no conceito de que esperma era já vida, além de que guardava com especial carinho o grande ensinamento do seu avô Jócas:
– Na dúvida, faz um filho, ou dois.
Foi o que fez. Foi o que fez a vida toda. Foi o que fez quando primeiro duvidou seriamente se gostava de Xiribiteca, sua primeira mulher, com quem teve quatro crianças antes de avançar para o divórcio. Na altura, ainda ponderaram entre divorciar-se ou ter o quinto ‘piqueno’. Divorciaram-se. Fez o mesmo com a segunda e terceira mulher, mas foi mais parco na execução fecundadora. “Graças a Deus!”, congratulava-se. Como se Deus decidisse o que se passa na cama de cada um. Ainda assim, no final do mês lá era esmifrado com SE-TE pensões de alimentos. Tinha muito que assessorar os Asdrúbais desta vida e rezar para que os amigos não falissem, para que pudesse continuar a ter férias à borla na Comporta, na Quinta do Lago e até, de quando em vez, num qualquer destino mediterrânico a bordo de iates que não tinha de pagar.
– Jójocas, está na hora dos Asdrúbais, meu querido. Encontramo-nos logo à tarde?
– No Mando?
– No Mando, claro. Devo chegar à hora do costume. Beijo, querido.
Anikas de Lacerda, cheia de sacos e mais sacos, lá ia para a sua labuta: criar as novas montras de setembro. Tinha agendadas duas na Rua Castilho, uma nas Amoreiras e três na Avenida da Liberdade. Um ror de trabalho que a deixava com os nervos em franja. Franjas, de resto, era a sua grande aposta para uma das lojas. Com a criatividade em alta e as ideias a atropelarem-se, sentiu-se cansada logo que entrou no carro. Fez uma pausa. Maquilhou-se e esticou o cabelo com a prancha que trazia sempre no carro – de resto, trazia sempre tudo no carro, que uma mulher nunca sabe quando e onde pode acabar o dia e a noite, pelo que o segredo está na prevenção. Enquanto procurava um frasco de perfume que ainda tivesse uns decentes mililitros de produto, percebeu que, afinal, o seu caniche não estava perdido coisa alguma, vivia lindamente ali no carro.
– Coisa mais querida da dona!!! Temos estado sempre juntos, afinal? Que amooor!!! A tristeza que passei sem saber de si e você, aqui, no bem bom. Hoje vai andar sempre comigo. Vamos já colocar a coleira de brilhantes Swarovski para que não o perca de vista, ouviu? Dê cá beijinho na boca. Que amooor!!!
Mais de meia hora depois e já avançada no atraso para a primeira ‘criação’, como lhe chamava, lá arrancou para a loja das Amoreiras. Já lá estava o carpinteiro, a quem tinha solicitado umas “coisas giríssimas”, que fariam a montra ficar igual, igual a um estábulo. Ia ficar “o máximo!”, dizia de si para si e para quem mais a quisesse ouvir, pois Anikas Lacerda, sem se aperceber disso, verbalizava tudo aquilo que lhe passava pela mente, mesmo quando o queria ocultar, e sem filtros. Era uma incontinente verbal. Não dava conta, era apenas isso. Já tinha tido muitos dissabores à conta de tal peculiaridade – principalmente quando era mandada parar pela polícia – mas também tinha alcançado grandes feitos. Recorda com carinho a vez em que, sem perceber como, numa loja ‘chiquésima’ onde fazia o habitual shopping semanal para aliviar o stress – no seu caso, a ioga não funcionava tão bem quando umas centenas de euros abatidas ao cartão de crédito –, perante a rudeza e má-criação de uma ‘criada’ da loja, disse para os seus botões, mas alto e bom som, que ia já ligar para a Xuxeca, dona da loja, para que aquela ‘monstra’ fosse despedida. A ‘monstra’, era, afinal a responsável pela loja que, num golpe para salvar o ganha pão, mudou de tom e de registo e Anikas sairia da loja como stylist designer, vulgo vitrinista, de todas as lojas daquela cadeia de renome internacional. Já lá iam dois anos e não podia ser mais feliz e realizada naquele mundo de faz de conta, em que podia fazer o que lhe dava da real gana e ainda lhe pagavam para poder comprar mais coisas giras. De tão extravagante e imaginativa, não tardou a ter uma conceituada carteira de clientes. “O máximo!”
Antes de entrar no shopping, antigo centro comercial, cumpriu o ritual de sempre: beber um café num quiosque, logo à entrada, com o adorável povo. O pai sempre lhe ensinara, e guardava esse ensinamento como um tesouro, que se devia ser “bem”, e que isso implicava ser sempre educada e correta fosse com quem fosse, para que pudesse estar à-vontade ao lado de um rei ou de um mendigo. Claro que Anikas Lacerda, preferia o primeiro mas já se tinha divertido às pazadas com a segunda categoria. Lá pediu a ‘bica’ para não destoar dos medianos e logo deu de caras com uma jovem ex-tra-or-di-ná-ri-a. Cabelo preto asa de corvo, olhos pretos e profundos, lenço à pirata na cabeça e uma roupa do mais garrido e divertido. O melhor do hippie chic, pensou, mais uma vez, em alta voz.
– Obrigada. Esse seu género tiazeca também está muito bem apanhado – retorquiu a outra.
– Ah, e que perspicaz que você é! Trabalha aqui em alguma loja?
– Pode dizer-se que sim, sim. Em várias.
– Que giro! Também eu! Faz montras?
– Pode dizer-se que sim. Também faço balcões e caixas registadoras e ainda leio a sina. Quer saber como vai ser o seu dia de hoje?
– Fantástico! O dia de hoje? Disparate. O dia de hoje não, sei perfeitamente como vai ser, mas se conseguir dizer-me onde vou passar a passagem de ano é que eu lhe agradecia, pois ainda estou muito, muito indecisa. Era capaz de fazer isso?
– Ainda faltam três meses, vou necessitar de muita concentração, mas posso tentar.
– Oh, que coisa mais querida! Sabe que mais? Venha comigo. Enquanto faço a montra, você concentra-se, vai-me lendo a mão sempre que a possa dispensar e depois tem de me dizer onde vai buscar inspiração para o seu visual. O seu vestido é de se morrer! Quero um, já!
Habituada a não ser contrariada e antes que a outra respondesse, já a tinha atracado a si, dividindo o peso dos sacos que tinha de carregar até à loja, bem se vê, e tagarelando tanto que acabou divertindo a outra, extasiada que estava com tanto espavento.
– Alô a todos!!! – gritou quando entrou na requintada loja, cuja montra estava coberta com um pano preto. Apresento-vos a minha amiga. Ela vem ajudar-me porque tem imeeenso bom-gosto. Digam olá à… Credo! Ainda nem sei o seu nome.
– Catrina.
– Como o furação? Que máximo!!! Digam olá à Katrina, queridos. Ela não é en-can-ta-dora?
– O meu nome é com C e não com K – avançou, secamente, a do lenço à pirata, que sabia bem distinguir um C de um K, mesmo não estando escrito.
– Disparate, se o meu é com K porque é que o seu é com C? De qualquer forma, darling, nenhum dos dois é real, que diferença faz como se escreve? É como dizer uma mentira e teimar que um detalhe não aconteceu de determinada maneira, certo? Pois se nada aconteceu, então tudo aconteceu como quisermos. Ora essa!
– Não é que tem toda a razão? Desarmou-me por completo – anuiu divertida Katrina, agora já com K.
– ‘Tà-ver’ como nos entendemos? Eu vi logo que era cá das minhas.
Anikas Lacerda lá avançou para a montra com um esquema mental de tal forma bem elaborado que, era vê-la, a subir e a descer escadotes, com palha e arreios de um lado para o outro. Parecia uma feiticeira a fazer as coisas acontecerem. Uma coisa era certa, tinha o maior jeito para aquele trabalho. Enquanto ela fazia coisas, a outra ‘desfazia’ algumas prateleiras de itens diversos, os quais ia colocando sub-repticiamente nos milhares de sacos de papelão da Anikas que, em vez de se irem esvaziando, estavam cada vez mais abarrotados de coisas. Ao abrigo da montra cerrada e do à-vontade do pessoal, aquilo é que foi ‘desfazer’.
– E, então? Para onde hei de ir no revelhão, não me diz, Katrina?
– Eu vejo muito azul. Água ou céu. Terá de fazer uma longa viagem…
– Eu sabia. Lá vou novamente com o Lecas para Nova Iorque, ou será que isso quer dizer que irei com o Becas para a Sardenha? Veja lá melhor, por favor, ainda tenho dúvidas. Não me está a ajudar grande coisa, Katrina!
– Ouça, sou apenas cigana, não sou bruxa!
Ao ouvir isto, abateu-se sobre Anikas Lacerda um cintilante manto de seda e caxemira – diria que, pelo toque suave e doce 50-50 na sua composição – e sentiu nitidamente que o mundo parava de rodar. Isso, parava de rodar porque ela precisava de sair. Precisava de olhar melhor aquela criatura fascinante: a primeira cigana da sua vida. Estava en-can-ta-da.
– Oh. Conte-me tudo. Mas tudo mesmo. Casou-se aos 12 com um primo direito que matou o seu pai com uma navalha a fim de passar à frente do tio a quem estava destinada?
– Ó mulher, você vê telenovelas a mais!
– É certo, como adivinhou!? Oh, que disparate, vê tudo isso porque é cigana. Oh, como eu a adoro. Mas, então, casou-se com o primo ou não? E conhece o Quaresma? Ah! Tem de mo apresentar, já!
– Ouça lá, Anikas com K, lá por ser cigana não quer dizer que conheça todos os ciganos e que a minha vida seja tal e qual lê nos jornais de má qualidade. Os ciganos não são todos iguais. Você, por acaso, conhece todas as famílias benzocas de gente branca?
– Claro que conheço, que disparate! O que seria se não conhecesse. Além de que somos pouquíssimos, para aí uns quatro, cinco mil no máximo. E damo-nos todos lindamente, só lhe digo. Vocês não se conhecem todos? Que horror, por causa das histórias de faca e alguidar, não é?
– Em parte, e em parte porque, de facto, apenas não nos conhecemos. Não somos pertença de uma única família e não nos regemos todos pelos mesmos princípios, além de que o meu pai não era cigano e eu vivo, sempre vivi, entre dois mundos muito diferentes.
– Oh, só me apetecem imperiais! – Gritou Anikas, excitadíssima com toda aquela história. Queria saber tudo e com detalhes.
– Vamos já para a cervejaria-barra-marisqueira do Mando. Imediatamente. Preciso de imperiais e croquetes. Liguem por favor a avisar que só retomarei o trabalho amanhã. Trata-se de uma emergência.
Katrina estava entre o pânico de continuar a conversar com aquela doida varrida e a felicidade de conseguir retirar todos aqueles sacos de uma só vez e sem problemas da loja.
Uma vez lá fora, carregada que nem um jumento, Katrina sugeriu antes que fossem beber imperiais para a sua casa. Ficava num bairro social…
– Social? É tudo aquilo de que eu preciso, de voltar ao social. Vamos lá! – ordenou sem esperar resposta. Metida toda a tralha no grande, moderno e potente carro de Anikas Lacerda, Katrina respirava de alívio. Poderia descarregar tudo diretamente em casa. Que golpe limpinho. Havia que alimentar aquela amizade. Ou isso ou dar-lhe imperiais, o que era ainda mais económico. Se calhar, precisava de comprar alcagoitas.
– Podemos parar para comprar alcagoitas?
– Comprar o quê???
– Amendoins. Alcagoitas são amendoins.
– Opá, tu és mesmo gira! Alcagoitas! As coisas que aprendo contigo. Impagável! Vamos lá às alcagoitas.
Histriónica e fascinada, Anikas lá ia gritando pensamentos vários com a nova amiga a quem já tuteava para cá e para lá. Hipermercado adentro, Katrina, agora com K, abastece-se de ‘mines’ e alcagoitas, as quais pagam numa caixa express, e consegue ainda ‘orientar’ uns patês, uma laca ultra fixadora para cabelo áspero, uma pedra pomes, umas hortaliças e uma pá de porco, sem que Anikas Lacerda desse fosse pelo que fosse. Desde pequena que para a estudiosa Anikas, os hipermercados exerciam o mesmo tipo de fascínio das feiras de horrores ou números de palhaços. Ali observava o mundo dos pobrezinhos, sempre tão atarefados com os seus afazeres insignificantes. Pareciam formiguinhas nos seus carreiros. Muito certinhos e atinados. Era vê-los, nas compras. Os pobrezinhos, pensava Anikas, comiam imenso e passavam horrores de tempo nos hipermercados a comprar sempre mais e mais comida. Por isso eram todos gordos. Os tios eram todos magros. A obesidade, avaliava com cálculos científicos e gráficos mais ou menos aproximados, era um problema da pobreza. Mas que tamanho contrassenso, pensava Anikas, lançando as palavras no ar sem se dar conta. Escreveria uma tese sobre o assunto e ali a amiga cigana seria um ótimo coelhinho de laboratório.
Era olhar para ela, apenas tinham entrado no híper e já estava gordíssima. Devia ser apenas de olhar para a comida. Tinha entrado esguia, um perfeito slim fit, e super hippie chic e, de um momento para o outro, era vê-la, estava uma badocha anafada. “Os pobres são fascinantes”, exclamava para o ar Anikas. Revirando os olhos, Katrina, agradecia aos santinhos tamanha ingenuidade e falta de vista. Os vestidos largos que usava nada tinham de estiloso. Eram apenas ferramentas de trabalho, que apetrechava, no interior, com ganchos de talhante, para ir pendurando ‘artigos’ vários, cujos alarmes iam sendo desativados com uma pequena engenhoca que, colada a joelheiras normais, desmagnetizavam qualquer tipo de alarme. A pobreza incomodava-a e o preconceito com que sempre tinham tratado as gentes do seu bairro, fizeram com que cedo na vida tivesse decidido fazer aquilo de que precisamente acusavam as suas gentes e, pelo caminho, fazer algo para ajudar os mais pobres de entre os pobres. E ‘subtrair’ a um hipermercado – sim, nunca roubava mercearias de rua, de gente honesta e trabalhadora, apenas os tubarões do grande tanque capitalista – não era propriamente um crime. Nisto, ainda dentro do perímetro de segurança do hipermercado, Anikas, quase grita:
– Ó miúda, mas tu estás gordíssima desde que aqui entrámos, até parece que tens coisas debaixo da saia..
– Chiuuuu! Queres ser apanhada pelos seguranças?
Anikas arregalou os olhos, num misto de excitação e pavor.
– Não me digas. Roubámos coisas?
A tiazeca era engraçada. ‘Roubámos’, como se ela tivesse feito alguma coisa. Nem sequer deu por isso.
– Que máximo!!! Quando contar, ninguém vai acreditar em mim. Vais ter de corroborar a história, Katrina. Anda, corre.
Que grande maluca. Agora queria contar e correr. Só lhe faltava um letreiro nas costas a anunciar que levava mercadoria roubada.
– Temos de repetir isto, Katrina. Ainda para mais este híper é do pai do meu ex. Devias ter trazido uma baixela de porcelana. Ahahaha. Que divertido!! Quando eu contar isto…
– Não podes. Sabes bem que não podes. Se contares nunca mais me vês! Ouviste?
– Oh, que desmancha prazeres. Conto só aos meus melhores 27 amigos. Não te preocupes, que ninguém conta seja o que for a quem quer que seja. São uns caturras do melhor que há. O mais certo é também quererem vir nesta experiência. Aliás, devíamos criar uns roteiros, como os turísticos. Uma coisa de risco para aventureiros, ou apenas betos. Iam adorar e tu, além do produto ainda lhes podias cobrar uma pequena fortuna. Mas que grande ideia que eu tive. Espero que tenhas muitas imperiais, pois vou já elaborar o negócio. Que máximo!
Katrina não parava de se surpreender com o poder de encaixe e mente aberta da ‘tia’. E esperta que ela era!? Como um alho!
Chegadas ao bairro social, Anikas estava deliciada.
– Mas que casas enormes. Deves ter imensos quartos e assim!
– Que disparate. Isto é um prédio. Está dividido em parcelas, chamadas andares. Vivem milhares de pessoas aqui, ou achavas que cada um de nós tinha um prédio? Ó meu Deus, mas onde é que tu tens andado? Nunca saíste da ‘betolândia’?
– Jura! Mas, então, nunca me enganei. São mesmo formiguinhas. E que espertos! Assim, com casas pequeninas, não precisam de ‘criados’ para limpar e servir e assim. É só economizar. Tu deves ser rica, não?
– Anikas, vê se te concentras. Aqui vivem os mais pobres dos pobres. Gente esquecida pela sociedade. Os verdadeiros heróis. Pessoas que encontram forças nas suas inúmeras fraquezas. Que convivem com dores e necessidades crónicas porque não têm como ver-se livre delas. Sem seguros de saúde, sem ordenados, sem escolaridade. Tu tens ideia de que nem todos vivem como tu e os teus amigos, certo?
Meio embaraçada, meio entusiasmada, Anikas mantinha o seu ânimo inabalável.
– Ah! Só me apetecem imperiais!!! Sabes, Katrina? Sinto algo a nascer em mim que mal consigo verbalizar!
– Como se isso fosse possível. Tu sem palavras.
– Juro que é verdade. Até estou com vergonha de dizer aquilo que me passa pela mente. Mas aqui vai: acho que estou a ficar comunista. ‘Bora lá roubar para dar aos pobrezinhos. Montamos a empresa e vai ser um su-ce-sso! Vai chamar-se Adventure Happens. Tu obliteras e ainda cobramos aos ricos uma experiência que jamais esquecerão. Podemos organizar visitas a hipermercados, a shoppings, às Amadoras e Galinheiras da vida. Sinto o meu cérebro a fervilhar. Estou mesmo on fire. Nisto, já tinham chegado à casa de Katrina, onde uma catrefada de parentes lhe eram apresentados em catadupa. Ficou zonza com tantos nomes medonhos e foi logo avisando toda aquela gente.
– Nem se deem ao trabalho de me dizer mais nomes medonhos. Um só mais que seja e bolso-me já aqui. São amorosos, mas, para mim, são todos Lelos, ok? Sempre que eu disser Lelo, refiro-me a todos, certo? Que tontura que me está a dar. Katrina, então e as imperiais, darling?
Mandadas abaixo umas quatro imperiais, e com todos os familiares arquivados sob o nome de Lelo, Anikas de Lacerda voltava a si. Fascinada e inspirada com a quantidade de plásticos que cobriam todo o mobiliário, principalmente as superfícies têxteis, começou logo a tirar notas para uma montra toda ela em estilo kitsch que, imaginava, seria a sua melhor de toda aquela estação. Ganharia o prémio de vitrinismo, não duvidava. E que crianças lin-das, iria fotografá-las e inventar uma exposição de fotografia, na galeria do tio Monte-de-Pio. Outro sucesso se adivinhava. Não admirava que Katrina visse muito azul no seu futuro, estava visto que teria de viajar horrores devido ao colossal sucesso que antevia.
– Katrina, a menina estava enganada, Alcagoitas são do melhor que há, muito melhores do que amendoins. Já a sua imperial é pavorosa. Temos de ir para a cervejaria do Mando, porque preciso the real thing, entendes?
Livre de todos os artigos que lhe avolumavam a saia, Katrina voltara à figuraça estrondosa dos primeiros minutos do seu encontro com Anikas e esta estava já a magicar uma forma de pôr o seu irmão Kiko de Lacerda a procriar com este ser ex-tra-or-di-ná-ri-o. Precisava de acabar com algumas réstias de consanguinidade que dava ainda, a alguns membros da sua família, uns traços medonhos, que o dinheiro tão bem disfarçava, e uma notória imbecilidade, que ela não reconhecia nos pobrezinhos. Menos ainda naqueles, daquela majestosa família, todos espertíssimos. E que giros que eram os Lelos daquela família. Ela própria já pensava tornar um deles em seu ‘assistente pessoal’. O rapaz estava com dúvidas, mas estava certa de que conseguiria o que desejava.
Sem demora, seguiram para a cervejaria do Mandinho, onde Jójócas já a aguardava.
– Querido! Apresento-te a minha mais recente melhor amiga, a Katrina. Cigana de nascença, ladra de profissão.
– Encantado –, proferiu Jójócas sem acreditar numa única palavra ou fazendo de conta que nada tinha ouvido. Os ricos são pessoas educadíssimas ou muito tontas, avaliava Katrina que, com um único aperto de mão, já lhe tinha sacado o relógio de ouro e a carteira que Jójócas trazia no bolso de trás das calças. Iria ficar rica. Quem tudo percebeu foi a espevitada da Anikas que, aos gritos, lhe segredou:
– Esta é uma situação de win-win. Vamos ambas ficar famosas, tu vais ver. E ainda vais ser minha cunhada, só te digo. O que vai ser ótimo ‘prá’ menina. Só já vai precisar de roubar por desporto, assim, tipo aos fins de semana, ‘tá-ver’?! E pode comprar um prédio todo, e ter um andar de vestir, um que transformará em wc, outro andar só para a sala de refeições… Vai ser o máximo, e eu decoro tudo isso, claro está! Olhe, enquanto explica ao Jójócas todo o esquema da nossa empresa, vou ligar ao meu irmão Kiko, para ver se ele gosta da menina. ‘Pra se casarem, ‘tá-ver’?
Katrina nada de mal via nessa combinação. Era apenas meio cigana, pelo que sempre tinha gozado de um pouco mais de liberdade para se relacionar com quem queria, e casar-se com um beto sempre era melhor do que com um primo Lelo, como a outra lhes chamava. Com dinheiro, podia transformar o seu bairro numa comunidade mais próspera. Abrir escolas com modelos de ensino progressistas, que respeitassem todas as etnias e verdadeiramente estimulassem a individualidade de cada um. Podia abrir galerias de arte para os graffiters e músicos do bairro, uma cooperativa que praticasse preços justos e onde o produto das hortas dos seus habitantes pudessem ser comercializados… Ainda não conhecia o raio do Kiko de Lacerda e já estava apaixonada pela ideia. Não deveria demorar muito a conquistar um beto, além de que tinha Anikas do seu lado e se Anikas era um milhão de coisas, uma delas é que era convincente. Até porque facilmente vencia os adversários pelo cansaço, pois era bem melhor fazer-se-lhe a vontade do que ouvi-la gritar as suas razões, as quais pareciam não ter fim ou, muitas vezes, lógica.
Algumas rodadas de imperiais depois e lá vem Kiko de Lacerda, com o seu pullover azul-bebé sobre os ombros. O calculado e esperado chavão-beto. Não faltava, sequer, um parco cabelo castanho claro, infelizmente aos caracóis. Nunca gostara de cabelos aos caracóis. Também não era fã de louros, mas… Do seu lugar, Katrina ainda não conseguia ver-lhe a cara, mas não estava absolutamente revoltada com o corpo. Era magro e quase, quase alto. Quando finalmente se encontram frente a frente, Katrina desata a rir. Talvez contagiada pela verborreia desenfreada da nova amiga, cujos pensamentos desaguavam numa diarreia verbal, sem passagem por qualquer tipo de filtro, a semi-cigana diz, entre gargalhadas e com alguma dificuldade em levar a frase até ao fim, de tanto rir:
– Mas, mas Anikas… É este o teu irmão Kiko? Mas ele… Tem cara de… Ele tem cara de… Ele é um porco!!!
– Ah, sim – diz Anikas sem qualquer tipo de espanto ou sinal de ofensa –, ele herdou o nariz dos de Lacerda, mas é um que-ri-do. A menina vai amá-lo de verdade.
– Qual menina? – Questiona Katrina um pouco baralhada de tanto rir.
– Tu, claro, não seja tonta!
– Ok, ok. Não tinha percebido. Não me tratavas já por tu?
– Querida, depende da situação. Sabes que o português é muito complexo.
– Esta situação também, Anikas, porque eu não consigo beijar um porco e quando olho para o teu irmão, apenas vejo um suíno, desculpa.
– Ó darling, não tens de o beijar. A mãe e o pai foram felizes um ror de anos e nunca dormiram juntos, sequer. ‘Tá parva? Pode beijar outros senhores e casar-se com o Kiko. Já viu que chique que é Katrina de Lacerda? É do melhor! Parece uma princesa estrangeira casada com o melhor da aristocracia nacional. Até me arrepia toda. E era tudo mais fácil para o nosso negócio de aventuras para os tios todos. A menina não acha?
– Lá isso. Mas logo um porco?
– Ó querida, mas a coisa dos ciganos não é com sapos ou lá o que é? Aquela pequena, a Leonor Teles até fez agora um filme premiadíssimo e tudo. Estávamos todos em Cannes por altura daquela coisa que há lá do cinema e a pequena é do mais civilizado e esperto que há. Mas era tudo com sapos. Nada tinha a ver com suínos.
– Pois é, mas é que eu tenho duas coisas sagradas na vida: porcos, não beijo, e sapos, não engulo. É uma coisa pessoal e não étnica, percebes?
– Percebo lindamente. Então e diga lá uma coisa: a menina beijaria um sapo e engoliria um porco?
Katrina pensou no que tudo aquilo quereria dizer. Não conseguindo descortinar, limitou-se a avaliar a coisa literalmente. Seria obrigada a dizer que sim, pois gostava de carne de porco e nada a repugnava quanto a beijar um batráquio. A vida bem lhe tinha ensinado que havia coisas piores.
– Acho que sim, porquê?
– Ótimo! Que alívio tão, mas tão grande. Seremos cunhadas na mesma!!!! Que bom, vou chamar antes o meu irmão Fredi, um encalhado a-do-rá-vel. Tem uma pele igualzinha à dos sapos, por causa do acne, ou coisa do género, e desde miúdo que odeia tomar banho. Todos lhe chamamos pequeno Babe. Quando o amares a valer vais conseguir que tome banho, até porque ainda é um miúdo, ainda não tem 50 anos, vais muito a tempo de o moldar à tua maneira. Que me dizes?
Iluminada por um raio de luz, vindo não se sabe de onde, a sensual cigana parecia estar a receber uma mensagem divina, um SMS celestial. Sem conseguir dizer uma palavra, Katrina levantou-se e abandonou a cervejaria do Mando e tudo o resto que nela havia. A vida de pobre, pensava, era difícil, mas a vida de loucos não era mais fácil. Era tudo muito estranho e ilógico. Até perigoso. Demasiado para si, pelo menos. Uma simples ladra, semi-cigana, com morada num dos piores bairros do país.
Moral da história:
Todos temos limites. Do not trespass!
Deixe um comentário