O que deveria ter sido dito
Texto simples, claro e direto com intuito informativo
– Suspeito de um homem, com cerca de 35 a 40 anos, vestia camisa preta e um casaco de malha. Na mão, um blusão daqueles com elástico de algodão nos punhos, no cós e à volta do decote, como os dos militares da Força Aérea, mas de fazenda. Umas calças de ganga, escuras, uns ténis brancos com riscas laterais. Parece que hoje em dia toda a gente tem uns ténis desse modelo. Todo o grupo devia estar implicado, mas foi este quem mais se esforçou, ainda que de forma sub-reptícia, para me agradar, ou mesmo seduzir, no sentido de me convencer a ir almoçar com eles. Isto, não obstante eu estar mais interessada na conversa do fulano que se sentou à minha frente. Este tinha o cabelo preto pelos ombros, e olhos escuros, quase lembrava um ameríndio. Um outro de tez mais clara, podia ser estrangeiro: tinha cabelo ruivo e pele leitosa e sardenta e quase não abria a boca. A miúda, julgo que nem sabia o que se passava. Devia ser a irmã mais nova de um deles. Pode ter sido qualquer outra pessoa, mas, olhando agora para trás, desconfio da forma como tudo se desenrolou e até suspeito que não tenham, de facto, as profissões que me deram a entender que tinham, todas elas na área do marketing digital. Acho que foi tudo demasiado encenado.
– Não se preocupe mais. Informam-me de que a sua mala acaba de ser encontrada. Estava de baixo do banco corrido que ocupou no restaurante e, segundo parece, tem tudo aquilo que disse estar lá dentro.
– Ah, nem acredito. Que bom!
O que foi dito
Texto idiota e encriptado com intuito de impressionar os intelectuais do lifestyle
Claro que sei identificar quem me roubou a minha Birkin. Foi como se me roubassem toda a minha vida. Sou fashion blogger e tinha lá o meu Moleskine, lap top e iPhone e ainda a minha memória externa, com todas as minhas notations e sketches para os posts para toda esta semana. Aqui onde me vê, estou em total bankruptcy. Sinto-me completamente desnudada. Naked. Tenho a cloud completamente full e não tenho como recuperar tudo aquilo que lá tinha, porque não fixo passwords, é escusado! Jamais me esquecerei de como você está vestido, por exemplo. Tenho ótima memória visual, mas uma password, nem pen-sar! Como fui tão crédula! Estava sozinha no meu posto de trabalho, no cowork center para onde vou religiosamente todos os dias. Tinha o meu lap top e a minha garrafa detox na secretária, pelo que havia imenso espaço para mais gente.
Veio um grupo super cool, cheio de swag e boa onda e sentaram-se na minha ilha. Os dois que me ladearam, quase sholder to sholder eram, ou assim pensei, brand contente strategists. Dava para ver, pelo que tinham nos monitores: imensas tabelas e textos, que iam inserindo no backoffice de algumas plataformas. Era, seguramente, gente ligada ao brand intelligence e com ótimo feng shui, ou isso ou eram DOC, pela forma organizada como definiam a sua área de trabalho. Era um grupo divertido e muito mix and match e, garanto, conheciam-se entre si. Um deles estava in between o hipster style e o rockabilly. Ao lado deste, um fulano muito nórdico de feições e com um cardigan de caxemira LIN-DO, que combinava com um bomber, imagine-se, que mesmo depois do roubo não me sai da cabeça. É que aquilo acabava por funcionar lindamente, com uns jeans 501 boyfriend, e uns sneakers de morrer. Havia até uma miúda, com umas californianas estupendas, de giras que eram, tinha umas UGG personalizadas com as iniciais bordadas a ouro, julgo que um J e um F, uns shorts e um trenchcoat. Muito urban chic, devo dizer. Um deles, aquele que, confesso, me envolvia com o maior ‘I love you look’, só falava search engenning optimization e native advertising, pelo que eram todos ligados ao jornalismo e ao marketing digital, só podia.
Todos eles absolutamente trend seakers, cool hunters e trendsetters. Ainda metemos conversa e rimos a lot, cheguei mesmo a achar que tinha ali un petit comitè bem cosmo com quem sair para almoçar e trocar ideias para o meu blog. Estava doida para iniciar um tête-à-tête com o tipo estupendo que estava à minha frente. Era nitidamente um motard entusiast, com o seu biker jacket e tudo, e o rosto de índio norte-americano era uma expressão plástica entre o selvagem Belmondo, o surreal Chris Cordel e o ternurento Matthew Goode, mas de olhos pretos e cabelo asa de corvo. Foi quando ia tirar a minha box da manhã – com um fruit cocktail detox, que eu mesma preparo, de bagas goji e sementes de chia – que o convite surgiu. Que deveríamos ir todos almoçar juntos a um libanês unbelievable, cheio de sugestões eco-go-green-fusion e tudo 100% bio e com opções de harmonização. O grupo era do mais sofisticado e poderíamos ser best friends for ever não fosse eu ter dado pela falta da minha Birking, que vive aos meus pés e não estava lá.
– Desculpe, a sua Birking?
– A minha carteira. Uma Birking?!!!! Heloooo?!
– Certo, e preciso que seja mais específica na descrição de cada um dos indivíduos que considera suspeitos…
– Mas, senhor agente, não fiz outra coisa até ao momento do que dar por-me-no-res de-ta-lha-dos de tudo e de todos!? Até lhe dei o mood. Mas tudo bem, whatever. Eram cinco, todos em bom e em bem, com looks ultra citadinos e etiquetagem de fazer inveja a muito fashionista. Um deles era igual a um nórdico, outro era o ameríndio…
– Não se preocupe mais. Informam-me de que a sua mala acaba de ser encontrada. Estava debaixo do banco corrido que ocupou no restaurante e, segundo parece, tem tudo aquilo que disse estar lá dentro.
– Ah, que maxime!!! Vou já criar a hashtag #birkinsbacklifeisgreatagain.
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