Sempre que o correio lhe trazia mais uma conta para pagar – fosse de eletricidade, água, gás, condomínio, empréstimo bancário ou outra, o que tanto era válido para o correio tradicional como para o eletrónico, ou até por via de recados deixados por baixo da porta pela vizinha Hermengarda, pouco familiarizada com qualquer um dos anteriores métodos de transmissão de mensagens, e sempre necessitada de deixar os seus pareceres sobre os mais diversificados temas relativos à boa vizinhança –, Joaquim sentia-se a viver uma espécie de vida de empréstimo, uma existência por vicariato, um certo tipo de não ser ele próprio.
Uma situação que abraçara de bom grado, quando, por motivos profissionais e pessoais, assumira toda a logística da vida do seu único irmão, José, um conceituado e intrépido biólogo cujas descobertas o levavam a ausências de tal modo prolongadas, que ambos encontraram nesta situação – a da mudança de casa de Joaquim para o amplo apartamento do irmão –, a melhor solução para ambos. José não tinha que se preocupar com as contas, a manutenção da casa ou qualquer outra relativa à logística de toda uma vida, e Joaquim vivia de forma mais desafogada, ele que era jornalista freelancer com toda a consequente instabilidade financeira daí resultante nos dias que correm. E eles correm, de facto. Pelas suas contas, Joaquim já ocupava aquela situação há mais de cinco anos. Não que ela fosse muito distinta de muitas outras de coabitação com o irmão ao longo de toda a sua vida. Com apenas nove meses a separar os seus nascimentos, Joaquim e José sempre foram muito chegados e, não obstante não serem gémeos, a própria genética brincara com a proximidade sanguínea, e as suas semelhanças eram tantas que ainda hoje, já na casa dos 30, eram confundidos até pelos que lhes eram mais próximos. Uma situação agudizada pelas longas ausências de José e ainda pelo facto de ambos terem acabado, em círculos distintos, por ser conhecidos apenas pela alcunha de Jota.
Ou seja, mesmo quem estivesse na dúvida, abordando qualquer um deles por Jota, e este anuindo, acabava por estar a falar com a ‘letra’ errada, sem disso se dar conta. À conta disso, precisamente, eram inúmeros os episódios caricatos e anedóticos que colecionavam, muitos deles apenas confessáveis entre si. Sim, casos de namoradas incluídos, fora exames escolares, hilariantes mal-entendidos e sufocantes e desgastantes casos mais complexos em que nenhum dos Jotas beneficiava com a temporária troca forçada – pelos interlocutores – de identidade. Uma semelhança que apenas aumentou, no decorrer dos anos, a cumplicidade entre ambos, ao ponto de Joaquim e José nunca terem revelado a quem quer que fosse um único e palpável traço distintivo entre eles: uma cicatriz na parte de trás do pescoço de Joaquim. Um quase perfeito risco, junto ao início da linha de cabelo, resultante de uma das disparatadas lutas de miúdos de quando ambos eram pequenos e ‘invencíveis’. Joaquim era um perigoso bandido e José um qualquer super-herói que não mediu bem a distância da lâmina de uma antiga espada do avô paterno e a cabeça do irmão.
Um sinal físico que quase inconscientemente ambos calaram do mundo. Este era apenas mais um segredo a uni-los para sempre, a separá-los para sempre. Quando a ambivalência de identidades se tornava sufocante, ambos palpavam o pescoço, um quase gesto automático que a ambos garantia qual era o seu Jota. Fora isso, tanto Joaquim como José se sentiam confortáveis com a ambiguidade. O amor fraterno também tem destas coisas, entre tantas outras, pelo que o mais comum era viverem o quotidiano nesse limbo, nessa linha que ia de Joaquim a José e deste a Joaquim.
Não raras vezes, havia momentos em que o próprio Joaquim tinha de se concentrar, a fim de não errar no pagamento das contas de cada um, de aceder às corretas contas bancárias, de dar resposta adequada e atempada a alguns assuntos que acabavam por sobrar para si, já que ocupava espaços que todos julgavam ocupados por José e não por ele. Por esses dias, Joaquim vira-se forçado a usar também o carro do irmão, para seu total desconforto, o que pode parecer descabido, tendo em conta que usava tudo o resto que pertencia ao irmão. Acontece que o carro fazia parte de um pacote de regalias de um dos vários empregadores de José, pelo que apenas podia ser conduzido pelo próprio, daí que Joaquim o mantivesse na garagem do prédio e apenas o pusesse a trabalhar de quando em vez, de maneira a garantir que a bateria se mantivesse ativa e o carro estivesse pronto a trabalhar de cada vez que o irmão retornava a casa. Porém, uma avaria complexa no carro de Joaquim, que a oficina demorava a solucionar, e a necessidade de total autonomia para se deslocar constantemente, por razões de trabalho, levou Joaquim a baixar a resistência e a começar a usar o carro do irmão num regime de grande constância. Hoje, olhando para trás, Joaquim sabe que jamais voltaria a tomar essa decisão, nem que para tal tivesse perdido alguns trabalhos mais distantes ou tardios. Mas, nessa altura, Joaquim ainda não sabia.
Ganhou confiança quando, logo no primeiro dia ao volante do carro de José, foi parado numa operação Stop e, mostrando a carta de condução do irmão, nenhum dos dois agentes a verificar a documentação teve dúvidas de que a foto era a sua e de que ele era José Camargo, funcionário da BioVida, detentora do aluguer de longa duração do veículo. Ter um sósia na própria casa sempre funcionara a favor dos irmãos Camargo e a magia dessa situação continuava a dar frutos. Na brincadeira, Joaquim e José apenas recomendavam um ao outro que nenhum dos dois engordasse ou perdesse uma perna. Era dessa forma sombria que se despediam de cada vez que falavam ao telefone:
– Vê lá não engordes nem percas uma perna! Ia ser uma pena para mim.
Todavia, Joaquim era consciencioso, razão pela qual sempre que entrava no carro de José, tinha uns segundos de hesitação. Era o caso nesse preciso momento, mas lá rodou a chave e lá seguiu caminho, como das últimas vezes. Tinha de estar em Braga a horas para uma entrevista importante, e bem paga, já agora, uma combinação rara por esses dias, dada a degradação de grande parte dos meios de comunicação social e das finanças dos grupos de media. Demasiado importante para que não pusesse já a mente a trabalhar na conversa que iria ter e na forma como a conduziria para o que pretendia saber… Talvez se tivesse embrenhado demasiado nessa tarefa mental, pois não se apercebeu de eu o trânsito à sua frente abrandava e Joaquim enfiou-se por completo no carro da frente. O choque, a confusão, gente que parava, pessoas que perguntavam se estava bem… Saiu do carro e percebeu, com alívio, que o outro condutor também se encontrava bem, mas havia uma criança no carro… Parece que também estava bem, apesar de chorar como quem morre, muito lentamente, de uma dor lancinante. Os gritos daquele pequeno ser humano eram alucinantes.
Nisto, claro, polícia, testemunhas, reboques, declarações amigáveis e… – Joaquim não tinha pensado nisso – a-ssi-na-tu-ras. Tudo estava no nome de José: carta de condução, registos, seguros. Pior, teriam de ir à esquadra. O outro condutor estava sem documentos e, por questões logísticas, mais do que legais, segundo entendeu o cérebro meio paralisado de Joaquim, teria tudo de ser tratado sob supervisão policial. Numa fuga para a frente, Joaquim, temendo o que acharia a polícia se, naquele ponto, após ter-se feito passar pelo irmão, acabasse por confessar a sua verdadeira identidade, Joaquim assina toda a papelada como José Camargo. O polícia olha demoradamente para o papel e Joaquim começa a transpirar. Usurpação de identidade é crime punível por lei e, moralmente, demasiado estranho aos olhos de terceiros. O que pensariam? Porque razão se fazia passar pelo irmão? Porque não confessara de imediato um crime menor, como ter de utilizar um carro que não deveria conduzir? O seu cérebro explodia quando começou a perceber que tudo estava bem, quer dizer, teria de avisar o irmão, já que, para todos os efeitos, seguro e empresa incluídos, teria de ser José a assumir as responsabilidades civil e financeira do acidente. Foi o que tentou fazer logo que saiu da esquadra, altura em que percebeu que não encontrava o telemóvel, perdido no interior do carro, entretanto encaminhado para a oficina designada pela seguradora, ou perdido algures com todo o nervosismo. Regressou de imediato a casa. Não estava preparado para mais emoções fortes, mas foi o que encontrou. A vizinha Hermengarda informava quem a quisesse ouvir que a casa de Joaquim, quer dizer, de José, tinha sido assaltada, que a porta estava aberta, que lhe tinha cheirado a gás…
Antes de entrar em casa e se inteirar verdadeiramente do que realmente tinha acontecido, Joaquim achou ter ouvido três versões distintas da própria vizinha, que explodia de felicidade perante tanta e tão interessada audiência. Bombeiros, polícias e GNR, todos tinham sido chamados por Hermengarda e Joaquim nem sequer imagina como é que ela conseguiu essa proeza ou que tipo de descoordenação existia entre os serviços de socorro que não tinham percebido que se tratava da mesma morada uma e outra e outra vez. Um sem fim de perguntas, mais papéis, mais assinaturas e, finalmente, alguma luz sobre toda aquela enorme confusão. Hermengarda avisara os bombeiros sobre aquilo que lhe pareceu uma possível fuga de gás. Ao ver a porta arrombada, um outro vizinho chamara a GNR, quanto à polícia, tinha aparecido de iniciativa própria, em busca de José Camargo. Pois ele ali estava, o que lhe poderiam querer, acabado que estava de chegar da esquadra? Teria algum envolvido no acidente morrido? Demorava a entender tudo o que lhe queriam dizer. Sim, tinha havido uma morte. Sim, num acidente. Sim, um familiar.

By Pietro Donzelli
– Sr. José Camargo, entende o que lhe estou a dizer?
– Não sei.
Esta foi a resposta honesta de Joaquim.
– Ouça-me com atenção: acreditamos que o seu irmão Joaquim Camargo tenha morrido. Precisamos de si para a identificação do corpo.
Não podia ser e ele sabia-o bem. Na verdade, só ele poderia saber que estava vivo. Pois que estava vivo e a ouvir todas aquelas barbaridades. Estavam doidos. Todos doidos. Hermengarda com o seu nariz enganado. Nada de fuga de gás. Provavelmente quis apenas bisbilhotar a casa, onde insistentemente tentava entrar a propósito dos mais descabidos pretextos, mas onde nunca tinha sido recebida. Estava enganado o vizinho que acreditara tratar-se de um assalto. Que gente mais paranoica, e, agora, enganavam-se estes também. Ele era o Joaquim, e estava em maus lençóis, dava para perceber, mas não estava morto. Teria José morrido? Mas ele estava em Tóquio… Já podia ter regressado. Mas porque lhe chamavam Joaquim? José nada tinha a ganhar com isso. Quer dizer, se fosse Joaquim e não José a morrer, este tinha a vida a ganhar. Que disparate lógico. Não entendia e continuou sem perceber durante todo o trajeto até ao Instituto de Medicina Legal. Catatónico, ouviu os agentes da judiciária informar o médico de serviço. Quem, ele, Joaquim? Catatónico? Bem que o podiam dizer, pois que acabavam de lhe dar a notícia de que tinha morrido. Se eles soubessem. Na verdade, pensou Joaquim, se havia momento certo para esclarecer tudo era aquele, antes que o dessem como morto, antes que desse por si a assistir ao seu próprio funeral. Nisto, aquele cheiro, aquele mobiliário, restos de sangue nas batas brancas… Aquilo era um talho de cadáveres. Sentiu que não tardaria a desmaiar. Quando ia informar que tinha de sair dali, que não aguentava, que o seu nome não era José, que era o outro Jota…
Vê destaparem um corpo. Perguntam-lhe se é o do irmão, se o reconhece, se confirma que Joaquim tem uma cicatriz na parte de trás do crânio – a palavra crânio soou-lhe de tal forma mal que não abarcou o significado de tudo aquilo: Joaquim estava mesmo morto, pois era Joaquim quem tinha aquela marca, a única que os distinguia, aquele risco… Ia palpar a sua cabeça. Ia explicar tudo. Ia provar que José não tinha cicatriz, ou qualquer outra marca, ele sim. Ia mostrar-lhes. Só depois de acabar com a sua morte, poderia chorar a do irmão. Ergueu a mão. Ia levá-la à nuca…
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