Aguardava expectante que uma daquelas vozes de cana rachada chamasse o seu nome pelo microfone. Tinha especial carinho pelo timbre metálico dessas vozes. Vozes que, digeridas pela eletrónica, se tornavam indistintas entre si, quase mal denunciando o género dos falantes. Estridentes, histriónicas, esganiçadas. Como as de algumas vozes de ranchos folclóricos, mais a Norte do que a Sul, mais no feminino do que no masculino, é certo, mas timbres agudos que trazem, ainda assim, um certo conforto, porque nos lembram avós, aldeias, um certo passado rústico e outras coisas de que somos feitos. Ecos dessas vozes povoavam a sua infância, vivida de feira em feira, onde sons idênticos àquele que aguardava agora com ansiedade, anunciavam maravilhas nunca antes vistas pelo olho humano: túneis da morte, fichas para mais uma volta nos carrinhos de choque – dos quais sempre fugiu com receio de ser eletrocutada, longe de imaginar que os choques não eram elétricos, apenas os carrinhos, nem a diversão se destinava a empedernidos masoquistas, não obstante oitenta por cento o serem –, mantas e cobertores que comprando apenas um lhe dava direito a outro e beneficiava ainda de um conjunto de facas de cozinha, um porco vivo e mais um saiote para a patroa.
Tudo entoado numa voz que, de tão rápida, mal permitia distinguir aquilo que apregoava. Em todas elas, aquela entoação final, aquele crescendo que fazia o coração bater mais rápido, aquele rufo de tambor que anuncia uma possível tragédia que, mesmo, mesmo, no último segundo retunda num estrondoso sucesso. Como no trapézio ou na jaula de um leão. O perigo é eminente e a glória garantida. Sempre sonhou com aquelas vozes, mas a barraca de farturas da família, e o caráter pacato da avó, matriarca de toda a sua gente – e não era pouca gente, só tios eram onze – nunca cedeu ao capricho de também eles, os das farturas e agora também dos churros, se fazerem anunciar pelo microfone à clientela.
– São reclamos sonoros, avó! Como quer que venham à nossa roulotte quando as feiras estão cheias de concorrência?
A matriarca encolhia apenas os ombros. “Coisas de gaiatos”, pensava, “canalhada que só quer dar nas vistas. Um bom produto anuncia-se a si próprio, pelo paladar, pela palavra e pelo sabor que passam de boca em boca, que o povo não é burro, menina!” Assim argumentava a santa senhora, que à conta de massa frita em óleo, dava pão à boca a uma família que parecia não ter fim. “E com desafogo”, orgulhava-se. “Todos bem nutridos e bem vestidos”, acrescentava.
No que ao bem-vestidos diz respeito, outras opiniões haverá, já quanto ao bem nutridos, poucos duvidarão, menos ainda quem tenha particular carinho pela quantidade. Por isso, ela, Ruthe Tatyana Alexis – sim, com TH, Y e E a terminar e três nomes próprios com vida própria (passe a redundância), que o pai, emigrante retornado, era homem com mundo e desbaratara consoantes e vogais na hora de dar nome à sua “mái nova” –, por isso, dizíamos, Ruthe Tatyana Alexis era a menina dos olhos de toda aquela turma de feirantes, até porque, logo aos 13 anos, e apenas com 100 quilinhos, tinham sido necessários todos os olhos disponíveis para garantir o total cabimento da menina naqueles três nomes próprios já a rebentar pelas costuras. Um quarto nome próprio não tardaria a ser uma urgência. Foi também por essa idade que tinha dado mostras da sua raça, ao anunciar que queria ser como a Ana Malhoa, para êxtase geral. Uma Ana Malhoa na família, era tudo o que desejavam. Aulas de canto eram dispensáveis, decidiu-se logo no primeiro momento, já que “ele há gostos para tudo, e na diferença estará a sua mais-valia”, avançara o irmão mais velho, que se prontificou, desde o primeiro solfejo da pequena, a ser o seu agente. “Vou ser o teu Jorge Mendes”, assegurou. A mãe de Ruthe Tatyana Alexis aplaudiu de pé, já que o Jorginho, filho dos Mendes do Pão com Chouriço, tinha transformado o negócio familiar no maior ‘franchouriçado’ da zona centro. O rapaz tinha olho.
O primeiro passo seria moldar o físico de Ruthe Tatyana Alexis. Nada de ginásios, que a vida ambulante não permite fidelizações. A opção óbvia seria operar. Após a inusitada recusa do médico de família da altura, todo o botox necessário para definir e tonificar, na modalidade de faz de conta, o circunferencial perfil de Ruthe Tatyana Alexis, foi injetado na artista pelo mais conceituado pirotécnico do país. Homem de enorme perícia, dado a manualidades, que tinha ainda a vantagem de ter assistido, em tempos, a um parto. Tudo correu lindamente, mas tiveram de vazar um pouco a miúda quando esta, por volta dos quinze anos, se virou para a Shakira. Gertrudes, costureira com mãos de fada, que há anos confecionava as fardas da família Com Fartura – assim eram conhecidos há demasiado tempo para que se incomodassem em apresentar-se com o seu real apelido, a saber Banha Leitão –, lá deu um jeito na jovem cançonetista, não faltando um ponto cruz a rematar as zonas mais sensíveis ao movimento. Axilas, cantos dos olhos e boca tinham-lhe dado particular trabalho, mas não menor gozo, pela habilidade de que tinha dado provas. A clientela de Gertrudes, simplesmente triplicou, ou coisa que o valha, que a tabuada não era o seu forte.
Aos 17 anos, há muito que Ruthe Tatyana Alexis tinha, por assim dizer, matado e enterrado Shakira, a Barbie Havaiana Médica Veterinária, as quatro protagonistas de ‘Sexo e a Mocidade’ – Ruthe era dada a acrescentos, já se percebeu, e o seu forte estava no físico, não nas línguas estrangeiras – duas participantes de reality shows de que era espectadora assídua, a Bela e o Monstro e estava agora decidida a ser em tudo igual ao Ricky Martin. Por essa altura, nem o pirotécnico nem a modista já estavam à altura do feito, pelo que aguardava ansiosamente o dia em que completaria 18 anos para ser operada por um cirurgião a sério. Um comentário que magoou seriamente o sensível pirotécnico, autor de tantas transformações num corpo dificílimo, mas uma megafesta numa barragem local, que solicitava o seu engenho ímpar em fogo de artifício, logo sarou a ferida.
Gertrudes deu graças a Deus e ao Diabo, já que a garota era difícil de contentar, de concertar e, pior ainda, de rematar. Parte das suas criações tinha-as ela esmagado sob o peso dos seus já 300 quilos, a maioria dos quais de carnes sólidas, orientadas aqui e ali com uns alinhavos e a preciosa ajuda de um pipo. Pois, com tantos arranjos, subidas de banha e de bainha, pontos e pospontos, tanto o pirotécnico quanto a modista tinham concluído que o melhor seria deixar uma entrada permanente, para o mete e tira necessário às inconstâncias estético-artísticas da miúda. Era tão mais prático! Principalmente quando Ruthe Tatyana Alexis, já um nome de ‘peso’ no mundo dos palcos ambulantes, começou a desejar coisas abstratas, para as quais não existe um molde específico. Um dia quis ser o melhor post do Face – sim, Ruthe Alexis diz apenas Face –, depois soou-lhe que o Insta – pois, também diz apenas Insta – é que estava a dar e que tinha ainda de ter uma perninha no Twitter e quem não se entendeu com tudo isto foram os seus ‘cirurgiões’ de trazer pela roulotte.
– Não percebem!? Eu quero ser grande. A maior artista do planeta.
Sem achar que exagerava, qualquer pessoa a tranquilizava dizendo que não havia ‘maior’ artista do que Ruth Tatyana Alexis. A fim de provar aquilo que todos diziam, o irmão mais velho-barra-agente-barra-rival-de-Jorge-Mendes, o do Pão com Chouriço, tratou de todo o marketing pessoal e, com apenas meio telefonema já Ruthe Alexis era notícia de abertura de telejornais nacionais e estrangeiros, que se acotovelavam por dar a conhecer a Maior Artista do Momento, com os seus 570 quilos ainda em crescendo.
Foi a histeria geral. As feiras eram invadidas com o povo a acotovelar-se, a querer vê-la, tocá-la, entrevistá-la. Chamavam-lhe apenas R.A., acrónimo de Realidade Aumentada, mas ela achava que eram modernos em relação ao seu nome, nada mais. Rebentou com todas as contas de todas as redes sociais e com algumas das suas costuras. Era o fenómeno daquela quinzena. Escreveu um livro que alguém escreveu por si, cantou com uma voz que não era sua em tudo o que era programa da manhã e da tarde e até da hora de almoço, foi tema de conversa e controvérsia. Sobre ela riram os comediantes e falaram os médicos e todos os outros também, pois claro. Era a rã que queria ser boi. Era já o boi que foi rã. Fizeram-se poemas com citações suas: “até o ar me engorda”; “a minha fome é de sucesso”; “hoje ainda só comi uma fartura e um trapezista”; “Sei que sou grande e hei de ser ainda ‘máior’”… Mas a sua quinzena acabou e um patinador sem pernas e um egocêntrico sem amor-próprio tomaram-lhe o lugar nos ecrãs de televisão, nos streams e nas capas dos jornais e das já raras revistas de bric-à-brac. Ela era já tão de outras eras.
Ruthe Tatyana não cruzaria os braços, até porque já não lhe era fisicamente possível. Regressaria em grande, claro está. Mudaria de imagem, de sexo, de ideias e até de peso. Por isso, aguardava ansiosa aquela voz metálica. Esperava com a própria vida o som roufenho que a conduziria ao cirurgião plástico que tudo mudaria e melhoraria nela, agora já com 18 anos e quase a chegar à tonelada. Estava perto da perfeição. Tão perto que já lhe ouvia a respiração. Sabia bem o que queria. O cardápio levava-o escrito, para evitar esquecimentos: mais e menos nariz, um sexo diferente do seu, uma voz que encantasse, uma vida de sonho, cabelo até ao quinto pneu, num tom que ninguém pudesse nomear, um nome para esse tom de cabelo, uma dieta à base de fritos e gordura, uma cintura delgada ou, na pior das hipóteses, apenas uma cintura, que a sua tinha emigrado para a anca há já demasiado tempo e começava a ter saudades dela… Um bom médico compreenderia, um bom cirurgião saberia com que linhas se cose o sucesso televisivo. Eles que falem, mas todos vivem presos aos espelhos das suas vaidades.
Sentada a seu lado, um quarto da sua família, preocupados com a sua saúde.
– Não podes querer que te operem e passares o dia praticamente em jejum, ainda te dá para aí uma quebra de ‘atenção’. Toma lá um pastel de bacalhau…
A voz da mãe foi interrompida pelo som que todos aguardavam. O seu nome soava no altifalante. Todos se atropelaram para empurrar a cadeira de rodas de Ruthe Alexis, demasiado ‘fraquinha’ e com a ‘atenção’ demasiado periclitante para andar pelo seu próprio pé. Além disso, era uma estrela popular, havia que mostrar que tinha o seu séquito de adoladores, os seus assistentes pessoais e sociais, os seus pajens e adoradores… Ruthe Tatyana Alexis queria causar boa impressão. Ajeitou a minissaia – qualquer coisa que vestisse acabava em minissaia, naquele seu corpo ondulante a esbanjar sensualidade –, retocou o batom. Era o primeiro passo para a sua profissionalização a sério, o seu derradeiro makeover total, o seu querido mudei a casa, na versão mudei a pessoa…
– Não cabe. Não empurrem, não cabe!
– Que hospital de anões é este? Como não caibo na porta? Alarguem a porta, mandem abaixo a parede…
Acabou por ser atendida no corredor, onde as portas eram duplas e quíntuplos os olhares de incredulidade e horror de quem por ele passava. O estrelato tem destas contingências, tranquilizou-se, para logo se impacientar com as perguntas do médico. Não sabia quem ela era, não tinha lido o seu livro, pelo que estava a milhas de saber qual a sua dieta. O idiota só falava em excesso de peso, obesidade mórbida, açúcar, ‘diabretes’ e outras anormalidades do demo.
– Contem-lhe tudo, e quando ele tiver o ‘bife in’ completo – línguas não eram o forte de Ruthe Alexis –, eu volto para ser operada e ficar linda, ou lindo, ainda não sei.
Reparou, de repente, que todos a olhavam lá de baixo, que a sua cabeça roçava quase o teto, que o raio do primo se tinha enganado e colocara a bomba de ar para encher os pneus da sua cadeira, no pipo que tinha na barriga da perna, que se sentia leve e quase feliz. Mas ele parou de bombear, a leveza desaparecia num ápice e a sua tonelada caiu sonoramente por terra, enfim, por chão, depois de a ter projetado, com as diabruras do vazamento, contra todas as paredes, esquinas e lâmpadas de teto que conseguiu encontrar durante o errático e esfuziante voo. Foi desse mesmo chão, onde acabaria por se estatelar com enormíssimo estrondo, que todos tiveram de a aspirar. O que não foi lá pela sucção, foi varrido, raspado e decapado. Todos contribuíram. Havia muito puzzle para montar. Todos deram graças a Deus por Ruthe Tatyana Alexis ter passado pela fase Ana Malhoa. As tatuagens haveriam de lhes ensinar como remendar tudo aquilo. Ainda que absurdo, aquilo era realidade e… aumentada. Parecia coisa de bruxos! Mas não era. Era apenas a história de uma gorda mal resolvida, cujo ego não cabia na sua própria pele. Uma badocha que todos julgavam adorar e que, na sua enlouquecida ânsia de ser quem não era, apenas rebentou.
Moral da história – O ar não engorda. Tudo o resto, sim. Loucura e estupidez incluídos.
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