Vamos fingir que era época de vindimas. Que as uvas pesavam já nos caules dos pés de vinha, organizadas em sólidos cachos a lembrar estruturas moleculares em teóricos mapeamentos de laboratório. Podemos, porém, imaginar que era qualquer outra estação do ano, longe dos romantismos bucólicos do outono. Que as formigas, no seu obsessivo afã, não labutavam já sem pausas para o almoço, a fim de prepararem o descanso invernal de toda uma comunidade. Vamos fingir ainda que esta é uma história de amor, quando percebemos desde o seu ingénuo início que é apenas uma história de solidão.

E já que começámos com descritivos e analogismos do mundo da flora e da fauna, vamos ainda supor que tudo se passa no campo, em meio rural, onde parecem mais raros – enganamo-nos, por certo – os fortuitos encontros amorosos. Em que imaginamos a impossibilidade de amores à primeira vista, na medida em que as aldeias e povoações são tão limitada em número de habitantes, mais ainda se acreditarmos que este nosso lugar é no dizimado interior, que qualquer ser vivo já se teria cruzado com todos os restantes desde sempre, impossibilitando o cabal curto circuito de um amor ou paixão arrebatadora ao primeiro olhar. Teríamos de avançar para um amor à centésima vista, o que, ainda que bastante otimista para um meio pequeno, esmoreceria em muito o fogo de artifício que associamos àquele encontro inexplicável entre duas pessoas que as leva, não apenas a acreditar, mas a ter a certeza de que se encontra perante a ‘tal’ pessoa. A sua outra pessoa. Aquele encontro que parece agendado pela providência e que leva dois seres a achar quase que aquele é apenas o reencontro. Como se, tendo tido, nos primórdios da sua conceção biológica e mental, conhecimento do guião da sua vida, os atores do enredo se limitassem, a dado momento, apenas a reconhecerem alguns pedaços que mais os tivessem marcado. Uma hipótese que, de uma só vez, explicaria estes amores oculares e os enigmáticos déjà vu. Pedaços de gente e de coisas que, de antemão, tínhamos vislumbrado nessa primeira e breve leitura da peça que nos coube representar – apenas para que nos ambientássemos com o que se seguiria, já que nos privam de ensaio geral –, as quais, mais tarde, de forma mais frequente para uns do que para outros, acabamos por reconhecer ou julgar já ter visto.

 

 

Nesta pequena aldeia do interior, onde supomos ser época de vindimas, numa altura do ano em que o sol baixa para melhor nos ver e aquecer, sendo este um sinal inequívoco para as formigas que se apressam a ordenar a casa, a armazenar os últimos víveres, e para o pisco de peito ruivo, que desce do norte da Europa, onde passou o verão, para aproveitar o inverno mais ameno do Sul, nesta pequena aldeia, dizíamos, também os seus habitantes percebem a chegada da pré-época de inverno. Essa antecâmara morna e cheia de azáfama, em que a própria terra procede a limpezas necessárias. Retira das árvores as folhas, para que não pesem na pele dos troncos quando o vento, a chuva e a neve as vestirem de frio. É como se levasse para um abrigo seguro as crianças, para que os pais, mais fortes e preparados, sozinhos e sem preocupações extra, retesem seus troncos musculados para melhor fazer frente à intempérie. Logo que o sol e as temperaturas amenas regressem, voltam as folhas-crianças e tudo o mais que as acompanha, como o riso e as compotas – mas não em demasia, que as crianças agora são obesas e já cuidam da dieta e essa é uma realidade que lhes rouba os prazeres da infância, que deve ser vivida sem limitações do género.

Enquanto a Natureza faz a sua parte, também os habitantes deste pequeno lugarejo tratam de arrumar a vida e as coisas, para aguardar o inverno com máxima tranquilidade. Assim tudo na vida estivesse organizado por estações, estaríamos bem melhor preparados para uma doença, uma mudança inesperada (deixaria de ser inesperada, claro está), uma morte, uma partida, uma felicidade. Que maravilha seria, prepararmo-nos para uma enorme felicidade, vivendo já por antecipação todos os sobressaltos do coração, rasgando já no rosto, e de antemão, sorrisos tolos e risos despropositados. A vinda de um amor… Como seria bom! Todavia, ainda que acreditando na hipótese de guião prévio, nunca se está verdadeiramente preparado para o que quer que seja, exceto para precaver os rigores do inverno. Assim, nesta pequena aldeia do interior, como decidimos que seria a nossa, os seus habitantes já montavam os seus puzzles de lenha, ou apenas montes dela, quando não se zelava pela boa funcionalidade e se desprezada a estética, limpavam-se telhados, caleiras e algerozes. Desentupiam-se fossas, colocava-se o feno a salvo de humidades, selavam-se frestas de portas e janelas, fazia-se e armazenava-se o vinho, recolhia-se o mel e preparava-se a terra das hortas para os cultivos da época. Na vida da aldeia, todas as estações eram de arrumações, limpezas. De preparação para o que se seguia no calendário, mas o outono era, de entre as restantes, uma das mais exigentes, pois apenas o destemperamento do louco verão se equiparava às travessuras do inverno.

 

Na nossa aldeia, chamemos-lhe assim, já que fomos nós a criá-la, todos andavam nesta e noutras labutas exceto António Sousa, desde tenra idade abreviado para Tó. Tó tinha chegado àquela idade em que a falta de amor, ou o não correspondido, melhor dizendo, já que era esse o caso, são um fardo demasiado volumosos e pesado para permitir outros afazeres de permeio. Toda a sua atividade física e mental se canalizava para o ‘projeto Genoveva’.  Não tinha sido amor à primeira vista, bem se vê, pois conheciam-se desde pequenos, mas era o mais aproximado possível. Ela também não se chamava Genoveva, este era apenas o nome de código – vital num meio pequeno –, o qual lhe tinha ocorrido a partir do nome da cidade para onde a família dela tinha emigrado fazia mais de 15 anos: Génova. Acontece que ela, Maria Chuvas, de seu nome real, acabava de regressar à terra e claro que os seus olhares já se tinham voltado a cruzar na meia dúzia de ruas de que dispunham para circular dentro do vilarejo, ou tínhamos decidido que era uma aldeola? Foi nesse primeiro ‘reolhar’ que a bomba de neutrões explodiu no peito de Tó Sousa. Quando o pobre coitado já começava a considerar primas em segundo grau como potenciais candidatas a ‘esposa’ (na província há sempre mais esposas do que mulheres), já que sair da aldeia em busca do amor sempre lhe pareceu despropositado, por achar que um homem pertence ao sítio onde nasceu, Tó Sousa rejubilou. Primeiro, por Maria Chuvas estar um deslumbre de mulher. Sofisticada, bem vestida, elegante, distinta, atrevida, um corpo divinal. Um assombro de mulher. Depois, porque confirmava, assim, a sua teoria de que o sítio onde cada um nasce há de provir a todas as necessidades das suas gentes, sem descurar as afetivas, ou, melhor dizendo, as amorosas.

Tó Sousa estava certo de que a faísca tinha igualmente feito os seus estragos nos sentimentos de Maria Chuvas. O que ela olhou para ele, e a forma como o fez. Além de que foi ela quem meteu conversa, até porque ele se sentiu colado ao chão. Quis saber da sua vida, o que fazia, o que não fazia, teve mesmo o atrevimento de perguntar se era solteiro, se não lhe agradavam as mulheres da terra… Era uma sedutora nata. Tó Sousa, que sempre se considerou destinado a algo maior, estipulou que em menos de duas semanas, ou dois meses – não queria parecer arrogante –, Maria Chuvas seria sua ou, como por ali se dizia, haveria de estar a comer na sua mão. Tó Sousa não se apercebeu da falta de romantismo de tudo isto, nem teve em conta a vontade da rapariga, aceitando como dado adquirido que ele era irresistível. Apenas estava solteiro por saber esperar por coisa melhor, bem melhor do que havia ao dispor. Esquecidos estavam já os serões em que tentava perceber graus de parentesco entre si e as mulheres da aldeia para perceber quais as elegíveis.

Uma vez em marcha, nada poderia parar o ‘projeto Genoveva. Para mostrar que era moderno e não um simplório de aldeia, Tó Sousa começou por um pedido de amizade no Facebook. Sim, tinha um perfil supimpa em mais do que uma rede social, mas como, por falta de verbas para os cursos gratuitos de informática que frequentara, e não ter aprendido o suficiente, apenas decorara como manejar o Facebook. Para o efeito, servia perfeitamente. Seria a sua décima quarta amiga. Maria Chuvas não tardou a adicioná-lo à sua extensa ‘carteira’ de amigos. Começou uma ‘inocente’ troca de mensagens, não obstante estar com ela todos os dias no café da Deolinda, onde Maria tomava o café, desde que regressara à aldeia. Iria ficar tempo indeterminado, parece que estava a escrever uma qualquer tese, cujo tema se prendia com a vida nas pequenas comunidades do interior, como esta nossa, e, de acordo com o plano de Tó Sousa, jamais partiria.

By Henry Cartier-Bresson

Maria Chuvas, que não era inexperiente nas coisas do amor e da sedução, e desde logo percebeu as singelas e tímidas investidas do amigo de infância, foi dando ao pretendente todos os sinais sobre a sua falta de interesse numa qualquer relação, até porque, segundo lhe disse abertamente, tinha um caso pendente. Indiferente ao que a outra interessada tinha para dizer sobre o assunto, Tó Sousa manteve intacto o seu plano inicial. Convidou-a para um piquenique junto à barragem, onde recordaram os poucos anos que passaram juntos. Ele num fato de três peças, parecia saído de um romance de Jane Austin, enquanto ela, de calções e botas de montanha ria de todo aquele cenário. Estavam no campo, rodeados de flores lindas, mas ele levou-lhe uma rosa comprada numa florista.

O provincianismo conseguia ser delicioso. Claro que ela acabou por não se ir embora com Tó Sousa, já que foi prevenida com fato de banho e quis aproveitar aquele que parecia ser verdadeiramente o último dia de verão e mergulhar nas águas que tantas e boas memórias lhe granjearam. Ele tinha ido a um encontro romântico, ela não. Sentiu-se meio insultado, mas preferiu acreditar que aquilo eram modernices estrangeiras, que logo que casassem toda aquela maluqueira lhe passaria. Por outro lado, que outra razão a levaria a despir-se à sua frente, mostrando-se num ridiculamente pequeno biquíni, se não estivesse caidinha por si? Era tão óbvio que ela deveria estar apaixonada, congratulava-se Tó Sousa.

Foi espalhando na aldeia que estavam de caso, ele e a beldade retornada. Gabava-se de que era irresistível e que estivera a guardar-se para alguém deveras especial, bem acima do que dispunha a aldeia. Alguém à altura do seu gabarito e intelectualidade. Qualquer possível pretendente – agora não há necessidade de imaginar, sabemos que não havia pretendentes, mas, ainda assim, se uma houvesse – riscou o seu nome da lista. Andava tão inchado com o seu feito, achando que dando uma coisa como certa, a coisa certa se tornaria, Tó Sousa, para variar, apenas se ouvia a si próprio. Seguiu-se um jantar, numa vila próxima, onde se mostrou entendido em vinhos, mas que preferia de longe a cerveja ou mesmo capilé. Falou-lhe de como toda aquela gente era pacóvia e dos planos que tinha para se candidatar a vogal da junta, pois sempre sonhara com a política, além de que queria mandar alcatroar o caminho que dava para a sua casa e seria a oportunidade ideal de colocar dinheiro público ao seu serviço, pelo menos, uma vez na vida. Entre o divertido e o incomodado, com tanta boçalidade, egocentrismo e estupidez, Maria Chuvas debitava o seu discurso progressista, sobre a necessidade de encarar todas as profissões, mas mais ainda a nobre política, como uma missão ao serviço de todos.

Que só agindo e fazendo com paixão se tomavam decisões certas. Que ser livre era não pensar em si, mas no todo, Planeta incluído, e agir com vista ao bem e ao melhor. Que o mundo se tinha tornado numa lixeira devido a pensamentos individualistas e interesses vários que apenas diferiam da sua estrada de alcatrão em dimensão… Tó Sousa ia contabilizando as vezes que ela dizia a palavra paixão, entendendo-o como forma sub-reptícia de se insinuar perante si, o irresistível homem da terra. Da terra e do planeta Terra que tanto ela quer proteger de mãos inaptas. Espetou-lhe um beijo na testa, por erro de pontaria e porque a endiabrada mulher falava com o corpo todo. Mexia-se incessantemente. Ela voltou a explicar-lhe que se ele não percebesse que entre ambos apenas poderia existir amizade, que não voltariam a ver-se. Ele sorriu intimamente. Um homem e uma mulher serem amigos? Onde é que já se viu uma coisa dessas? Lá estava o clássico dos clássicos: rapariga a fazer-se difícil para aguçar a gula e engenho do pretendente. Ele entrou no papel que lhe estava destinado. Iria insistir até que ela se rendesse. Se havia coisa na qual se achava entendido era em mulheres. Não que tivesse tido muitas, como é fácil de deduzir, mas porque era um ótimo observador.

Achou até ternurento que ela tivesse discussões de amor ao telefone à sua frente. Alegadamente com o tal ‘caso pendente’. Ele percebia bem onde Maria queria chegar. Pena não perceber francês, para entender o resto. Queria deixá-lo louco de paixão para que, incitado pelo ciúme, fosse ainda mais insistente na conquista. Levava-a a casa sempre que saíam juntos e, num desses momentos, agarrou-a pela cintura e forçou um beijo desastrado. Para Tó Sousa, foi a subida de mais um degrau naquele tórrido romance de outono. Para Maria Chuvas foi o fim da linha. O homem não sabia ouvir nem entender que ela não gostava dele. Chegava a dar pena. Teria défice cognitivo? Estaria, de facto, de tal forma apaixonado que estivesse disposto a tanta humilhação? Seria apenas um louco a divertir-se? De onde lhe vinha a macabra ideia de que todas as mulheres lhe pertenciam desde que ele as quisesse? Estava no limite da sociopatia para não ir mais longe. Deveria receá-lo? Resolveu o assunto gritando-lhe com todas as letras, em pleno café da Deolinda, que não queria vê-lo mais. Que não gostava dele daquela maneira e que se ele a procurasse, não voltaria a ser ela a afastá-lo.

Tó Sousa achou que aquilo já era demasiado, mesmo para um sofisticado jogo de sedução pela negativa. Falaria ela a sério? Receou que sim. Foi um rude golpe para alguém que já era falado na aldeia por todas as suas idiotices, como lhe chamavam. Bem sabia que lhe chamavam tolo, pelo que tinha investido tudo nesta relação. O amor de Maria Chuvas provaria a toda aquela gente ‘pequenina’ que ele, António Sousa, não era tolo, mas antes um homem à frente do seu tempo. À frente da sua aldeia, pelo menos. Meteu o rabo entre as pernas, quando deveria ter metido a cauda, já que a própria expressão popular não acerta na anatomia correta, e isolou-se em casa. Isolar é dizer pouco. Trancou-se durante o restante tempo que Maria Chuvas permaneceu na aldeia. Ela sentiu-se incomodada com a situação e, antes de partir, bateu-lhe à porta para reatar a amizade, em nome da feliz infância de que ela tinha memória.

Tó Sousa rejubilou quando percebeu quem lhe batia à porta. Ajeitou-se o melhor que pôde. Perfumou-se com desodorizante. Abriu a porta e atirou-se-lhe ao pescoço. Maria Chuvas sentiu-se sem outra alternativa que não fosse dar-lhe um valente estalo na cara e afastar-se. Com o rebuliço, assomaram cabeças pelas portadas de todas as casas da rua. Acorreram as crianças. Era a derradeira humilhação. Num ato desesperado ou apenas insano, Tó Sousa veste-se de razões e grita nas costas da sua amada, agora odiada, ou talvez não, não ficámos para verificar:

– Minha menina, volta para o lugar de onde vieste. Nunca te quis para nada. Quiseste-me à força, seduziste-me o tempo todo, mas não querias assumir, não é?! Pois agora sou eu quem não te quer. És uma parvalhona, Maria Chuvas. Nunca estiveste à minha altura. Vens para aqui armada em importante, achas-te mais do que nós, é? Andavas a meter-te debaixo de mim, mas nunca o admitiste. Agora querias casar-te comigo, não é?

Ninguém percebeu se era apenas o despeito a falar ou se era já o início da sua campanha eleitoral, bem populista, já se percebeu o tom. Também ninguém quis apurar. Havia lenha para armazenar, celeiros para limpar. Era outono na aldeia, havia coisas a fazer. Teriam tempo para ele, lá mais para a frente. Quem sabe, na primavera. Ou talvez não.

Moral da história:

Importa lutar por aquilo que queremos. Importa igualmente perceber quando a luta acabou. Sem rancores. Se não conseguir uvas a um preço que possa pagar, perceba que há mais fruta no mercado. Ah, é verdade, não culpe as uvas. Isso é apenas parvo.

Partilhar