– Se me pedisses um beijo agora, ficarias surpreendido com a minha resposta.
Disse-to da primeira vez que nos vimos. Eu, do alto da minha altíssima e portentosa torre, de autoconfiança e juventude feita. Tão cheia de amor próprio e segura da minha beleza, que não hesitei em seduzir-te, enfeitiçar-te, desconcertar-te. Pelo menos, foi isso que aceitei como sendo verdade, nessa primeira troca de olhares, que te seduzi sem misericórdia, ao ver os dribles oculares apaixonados que me lançavas do outro lado da sala, desviando a cara quando percebias que também eu te observava, mas encestando certezas, uma a uma. Ficaste um pouco à toa, mas bem percebi a tua excitação com a minha beleza, o teu fascínio pelo meu atrevimento, o teu entusiasmo pela surpresa do meu descaramento. Jamais uma mulher te tinha falado com todo aquele colorido. As outras mulheres não te falavam como eu. Eu própria nunca falara assim com outro homem, ou com qualquer pessoa, de resto, menos ainda um completo estranho. Nem sei bem de onde aquilo me veio, o que me deu, mas tu eras especial, quase diria espacial, de outra galáxia e dimensão. Senti em todos os meus terminais neurossensoriais que serias o tal, aquele com quem arriscamos tolices como ‘para sempre’ ou, pelo menos, ‘até que a morte nos separe’. Quando os nossos olhares se alinharam naquela reta perfeita, e o meu batimento cardíaco entrou em rota de colisão com o teu desejo, senti que já te conhecia, que aquele era apenas um reencontro. Percebi a curva do destino, meti nova mudança, reduzi para melhor acelerar, e arrisquei. Baloucei as minhas longas tranças louras, olhei-te fixamente nos olhos e disse-o.
– Se me pedisses um beijo agora, ficarias surpreendido com a minha resposta.
– Vamos ver se fico –, disseste tu, embrulhando as palavras num sussurro enviado com delicadezas de amante de encontro ao meu ouvido, com um tom de voz rouco, sexy, o mais sedutor que jamais tinha escutado. Também isso reconheci, como se tivesse um qualquer registo arquivado que identificou o tom e o timbre. Quem quer que fosses, eras tu.
– Dás-me um beijo?
Sem responder, apenas afastando as tranças, para que não atrapalhassem, apenas ajeitando o coração para a agitação que ele tão bem já pressentia, apenas acalmando os joelhos que já tremiam, apenas olhando-te nos olhos, inclinei-me e acoplei os meus lábios nos teus, tal como a Enterprise teria feito para receber uma nave amiga. Missão cumprida. Não sei quanto tempo as nossas naves intercomunicaram, acho mesmo que não houve tempo nesse intervalo, que ele parou. O mundo parou. O dos outros. O meu começava ali, naquele beijo, na tua voz rouca e sedutora, na forma como a tua mão encontrou ergonomias no meu amor, no meu corpo.
As nossas naves passaram a visitar-se, a comunicar ininterruptamente, a acoplar, a falar o mesmo dialeto. Eras meu. Só meu. Tinhas invadido a minha torre de alta segurança, sem necessidade de forçar a porta, a qual abri de par em par com a minha ousadia, a qual até a mim surpreendeu.
– Se me pedisses um beijo agora, ficarias surpreendido com a minha resposta.
Uma frase foi quanto bastou. O tempo que inicialmente parara, passou. Primeiro, devagar. Depois, acelerou o passo. Ganhou ritmo e velocidade. Parecia imparável. Indomável. Notava-o nas minhas tranças, tão longas que quase ultrapassavam o meu amor por ti. Quis voltar a paralisar ponteiros e nasceres do sol. Fazer o tempo perceber o seu lugar, o qual será sempre secundário em relação ao amor. Ao meu amor por ti. Confiante no plano matriz, fiz alterações ao modelo inicial e, naquele glorioso dia, o primeiro do resto do nosso amor, voltei a adiantar-me.
– Se me pedisses em casamento agora, ficarias surpreendido com a minha resposta.
Esperei o teu beijo apaixonado de olhos vendados, confiante, certa da proximidade dos teus lábios junto dos meus, do teu sussurro no meu ouvido, da tua mão na minha nuca a garantir uma colagem perfeita. A tua boca tardou e o que os teus lábios disseram não era aguardado. Casar? Perguntaste entre o admirado, o assustado e o exaltado. Estás grávida? Grávida? Abri finalmente os olhos, para perceber um estranho brilho no teu olhar e uns trejeitos no rosto que quase pareciam despeito e escárnio. Que estranha relação causal. Que raciocínios estarias a processar? Estarias a experimentar um episódio psicótico? Só contemplavas casar-te comigo caso estivesse… grávida?!! Nem assim, disseste sem contemplações ou evasivas, num tom de voz que já não era sexy, nem sequer rouco, tão-pouco familiar. Era límpido e estridente. Evitava equívocos. Soava a outras coisas. Esquivava-se. Fugia. Acobardava-se. Retaliava. Mas não tinha havido ataque. Do que te defendias? Não percebi o que me estavas a dizer. Quer dizer, entendia as palavras, compreendia o sentido e reagia com exaltada sensibilidade ao tom com que me ias atirando novidades aos sentidos. Éramos amigos. Parceiros sexuais. Nada mais. Tinhas uma vida pela frente. Querias experimentar o mundo, aventurar-te, sem grilhões ou alianças. Baixaste o tom de voz. Entendi as tuas razões.
Fiz de conta que não disseste que eu não era mulher com quem quisesses casar-te. Que era fácil. Decidi manter o que tínhamos. Curiosamente (será mesmo curioso?), não voltou bem ao que tínhamos. Alterou-se um pouco ou foi a minha perceção da realidade que estava irremediavelmente comprometida? Os serões com os amigos. As noitadas. Os atrasos. As desconversas. Tudo isso era novo, ou era eu quem se renovava?
Tinha de te provar o quanto te amava. Surpreender-te-ia mais ainda. E mais vezes. Vigiei-te. Mantive o teu telemóvel sob vigilância. Decorei todos os teus posts, verifiquei todas as tuas fotos e publicações. Transformei a minha vida, as minhas ações e o meu cérebro num algoritmo que conseguia já antecipar os teus passos, chegar antes de ti, conhecer-te melhor do que tu mesmo. Parece que não gostavas. Dizias que estava a ficar neurótica. Eu? Neurótica? Ainda não estava, mas percebi a dimensão da paranoia quando a descobri. E que descoberta. Não apenas uma amiga dengosa. Não apenas uma amante de circunstância. Não apenas várias amantes de ocasião. Uma mulher. A tua mulher. Eras casado desde sempre. Desde que, naquela noite te surpreendi ao dizer-te, enquanto abanada sedutora as minhas tranças louras:
– Se me pedisses um beijo agora, ficarias surpreendido com a minha resposta.
Pois fica sabendo que, se me pedisses um beijo agora, ficarias igualmente surpreendido com a minha resposta.
É curioso como um nome muda tudo, mas não altera o essencial. Um rosto apenas, de entre os sete mil milhões de rostos possíveis em todo o planeta. Mas não deixei de te amar. Que disparate! Julgo mesmo que passei a amar-te mais ainda e a planear mostrar-te o quanto valia esse amor e que terias de me escolher a mim. De entre as duas, eu era a escolha acertada. A escolha com mais amor, carinho e futuro. Jamais alguém estaria disposto a amar-te como eu já o fazia. Queres apostar? Imaginava todo o tipo de cenários, numa escalada crescente de amor e dedicação. Imaginava esperar-te à porta da tua bonita casinha e atropelar-te com todos os cuidados. Pensei depois que não poderia ser com a minha vespa. O mais certo seria que não morresses e acabarias por ter uma convalescença dolorosa e eu, meu amor, jamais te faria sofrer. E se ficasses desfigurado?! Que horror! Nem pensar! Nada disso.
Pediria emprestado o camião ao Mário Faísca. Sabes quem é, certo, amorzinho? É aquele tipo musculado que nunca te gramou e de quem me disseste para ficar afastada. Imagino que receavas muito menos os bíceps dele do que uma possível traição da minha parte, porque lá no fundo, só me amas a mim, não é, meu querido? Eu sei que sim, chuchu. Falaria com o Faísca, estava decidido. Não se fala mais sobre o assunto.
Posso também usar soda cáustica, dizem que tem resultados fantásticos. Averiguarei essa hipótese. Todavia, não será demasiado doloroso? Não te arderão as vias respiratórias, meu anjo? Ou isso ou serro-te ao meio durante o sono, numa daquelas noites que acabas por passar inteiras nos meus braços, doce e terno. Verás, então, como te amo. Como sou louca por ti. Como o nosso amor é o mais alto do mundo. Mais alto do que a mais alta das torres. Maior do que o maior dos dragões que a imaginação mais profícua consiga conceber. Um afeto mais longo do que as minhas próprias tranças, só para que saibas. Por isso, importante é que não sofras. Também me está a custar um pouco que fiques deformado. Talvez esteja a ser demasiado dramática e sanguinária. Uma simples injeção de ar nas veias parece que é bastante eficaz e não te deformaria, apenas rebentaria com o teu coração ou com o teu cérebro, ou pulmões – também isso averiguarei –, mas tudo a nível interno, à laia de embolia, sem esguichos de sangue e perversões de talhante. Por outro lado, essa não seria uma morte suficientemente efusiva para que possa mostrar ao mundo o quanto te amo. Não poderia, por exemplo, guardar partes da tua massa encefálica, num elegante lenço de linho, como fez a apaixonada Marie Curry quando o marido, Pierre, foi atropelado por uma carruagem. Há lá maior prova de amor do que isso? Amar-te mesmo aos pedaços? Amar apenas restos de ti?
Já me imaginava com um rim teu na gaveta dos pijamas. Quando alguém descobrisse, por acaso, no meu perfil do Facebook, ou numa das fotos do meu Insta, por exemplo, ficaria impressionado e emocionar-se-ia com a força do meu amor, com a loucura do meu querer-te bem. Não seria romântico? Já imaginaste? Não te aflijas. Não te apoquentes. Quero apenas que saibas o quanto te amo e que jamais amarei seja quem for da maneira que te amo a ti, meu doce de ginja. Meu docinho da casa. Mas estou cheia de dúvidas, minha paixão, doce e terna. Muitas mesmo. Parece-me que o mais apaixonado seria cegar-te, ou decepar-te as pernas, para que ficasses eterna e candidamente entregue e dependente dos meus cuidados. Da minha atenção. Desinfetaria os teus cotos com esmeros de amante, bem mais eficazes do que os de uma enfermeira experiente. Verás! Nunca purgarão, te garanto. Empurraria a tua cadeira de rodas –costumizada e pintada à mão por mim – com forças hercúleas que descobriria numa qualquer arrecadação do meu músculo cardíaco e dar-te-ia de comer à boca, sem um queixume ou um lamento, porque quando se ama não se cobra. Pedirias socorro? Como? Pois se também te cortaria a língua, num derradeiro e escaldante beijo. Cuspi-la-ia, depois, com carinho, para um frasco de formol, previamente preparado para manter viva a memória das tuas carícias na minha pele. Bilhetes também não escreverias, meu amor, pois não vês as tuas mãos a boiarem junto da tua língua no mesmo frasquinho de formol? Vês como te amo, meu arcanjo? Vês como escrevi, com caligrafia artística, e tinta específica para vidro, o teu nome no frasco? “Coisas do meu amor”, lê-se na outra face do elegante vaso de vidro. Comprei-o numa banca vintage, num bazar de verão, a pensar que o encheria de algodão e ilusões na casa de banho principal, da casa que tinha sonhado para nós. A casa não aconteceu, mas nós aqui continuaremos. Juntos. Ternos e doces como na primeira noite. O que achas de tudo isto, meu pessegozinho em calda? Em calda. Tem piada, não é? Será mais formol, álcool e betadine, mas é apenas para perceberes como o meu amor se enche de eufemismos e panos quentes logo que o assunto és tu. Agora, descansa. Vê se sossegas. Vou neste instante falar com o Faísca. Não demoro. Caso ele não me possa emprestar o camião, pensarei num dos outros planos, ok? Concordas, verdade? O quê? Não te entendo, meu amorzinho. Não percebes que não compreendo o que me dizes quando estás assim, com a fita adesiva a tapar-te a boca?
Moral da história:
Não brinque com os sentimentos dos outros, pode acabar no lugar e papel de brinquedo. Não vai gostar
E ainda: o amor é louco. Não façam pouco. Façam muito!
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