Chef Mal’à-Guette trabalhava há anos numa receita ultrarrevolucionária com a qual ambicionava a sua terceira estrela Michelin. Melhor, com a qual estava seguro que conquistaria a sua terceira estrela Michelin, corolário que está para a culinária como os Óscares para o cinema, com o mesmo tipo de implicações, sendo a mais óbvia e injusta a garantia de quem nem sempre ganha o melhor. Uma crua – já que estamos na cozinha… – realidade que apenas cruza as mentes daqueles que não vencem, mas que jamais atrapalha os festejos dos vencedores. Mal’à-Guette estava determinado a conquistar a terceira estrela antes de completar 30 anos e continuar, pela vida fora, sem baixar, e ambições sérias de vir mesmo a aumentar, essa média de uma estrela por década.

 

A fim de aumentar o buzz em torno do seu nome, que as estratégias de marketing são vitais aos indivíduos e profissões de alto perfil, Mal’à-Guette tinha acabado de lançar uma obra autobiográfica, não obstante a tenra idade. Não fora já detentor de dois galardões máximos do reino dos tachos e qualquer editora teria sorrido ironicamente na sua cara. Não apenas não ousaram sorrir, ou sequer comentar o facto, como teve mesmo editoras rivais a disputarem a obra, mal ouviram dizer que Mal’à-Guette estava a escrever com intenção de publicar. Com enfado, lá se encontrou com todas as interessadas em reuniões disfarçada de almoços chiques nos mais caros, seletivos e discretos restaurante da cidade, onde teve de engolir as pinderiquíces que a concorrência andava a cozinhar por esses dias, mas as quais lhes permitiram banhar-se na sua eau de parfum predileta: a adulação. Vivia dos elogios, alimentava-se da lisonja, rejuvenescia na bajulação, sem que o seu gigantesco ego jamais considerasse a possibilidade de não serem sinceras. Como poderiam ser outra coisa que não a verdade quando ele era, tão escandalosamente, genial? Mal’à-Guette era, para a sua geração, o melhor chef do planeta. O mais criativo, aquele que melhor compreendia o palato contemporâneo e, mais importante do que tudo o resto, era a interpretação, a própria encarnação estilizada da vaidade e egocentrismo reinantes. Era o guru do lifestyle. Sim, Mal’à-Guette não se limitava a ser o melhor na sua profissão, era o expoente máximo de um certo savoir viver, capa de revistas de moda e sociedade, trendsetter, elogiado e imitado um pouco por todo o planeta, dentro e fora do universo culinário. Esbanjava charme, era convidado de estilistas para abrir os seus desfiles e de designers de todo o tipo de objetos, ansiosos por associar as suas criações ao seu nome.

Na sua mente, obviamente, escrever um livro sobre a sua meteórica ascensão não era apenas justificado e oportuno, como um guia essencial a todos os seres humanos. Qual quê?! Era vital a todos os seres vivos. O seu estilo andrógino, quase hermafrodita, a sua bissexualidade assumida há muito… Tudo nele era encanto e contemporaneidade. Tudo nele era já o futuro da humanidade a expressar-se. A obra era praticamente uma ferramenta sobre como ser e agir em modernidade, em futuridade, em eternidade, por assim dizer, já que depois dele, Mal’à-Guette imaginava apenas… nada. Absoluta e rigorosamente nada. Ele era tudo, o centro e a periferia. Era a totalidade daquilo que ser humano representava. Mimado até à exaustão por uma massa gigantesca de seguidores em todo o mundo, as suas contas de Instagram, Facebook, Pinterest, Twitter… somavam milhares de novos ‘adeptos’ a cada dia. Tinha sido necessário alterar algoritmos para abarcar tantos fãs. As suas páginas desdobravam-se e multiplicavam-se a uma velocidade nunca antes conhecida, no extraordinário universo internáutico. As empresas pagavam-lhe até para respirar. Mal’à-Guette sabia que era o pináculo do sucesso.

Dedicara todo o primeiro capítulo do livro a ‘falar’ do seu guarda-roupa. O segundo, à sua despensa e apenas mais para o final, para quebrar a lógica cronológica e tão maçadora das biografias, às suas origens e ascensão. Tinha feito de Itália o seu país de nascimento. Uma adoção patriótica que deixava por revelar o seu verdadeiro local de nascimento, até porque um certo mistério exige-se e aprecia-se na vida das estrelas. E ele, após a queda dos mitos do rock’n’roll, assumia, quase em exclusivo, o verdadeiro papel de estrela mundial, de fenómeno galáctico. Claro que, como enfant terrible e criatura de precoce genialidade, mudou-se de guarda-roupa e tachos para a sedutora Paris, munido apenas dos seus inabaláveis egocentrismo e excentricidade. A primeira estrela Michelin surgiu logo após assumir a cozinha de um conceituado restaurante, não muito longe da elitista Place Vendôme. Uma surpresa para o exclusivo e pouco aberto mundo gourmet – que é como quem diz, dos comes e bebes – da capital francesa, mas não inesperada pelo grande mestre Mal’à-Guette, acabado de chegar à casa dos 20, mas já um balão de ar quente, alimentado por muito mimo, o qual sabia sugar à sua volta.

Conhecer o sucesso, assim tão cedo, apenas lhe assegurava aquilo que sempre soubera: era especial. Era o melhor. Daí que dedicasse todo o seu tempo, agora, a criar um novo prato. Uma inusitada receita que já andava a elaborar há mais de um ano, o que tinha vindo a tornar o seu já de si temperamental humor em execrável. Os seus ajudantes, mais do que respeito, davam mostras de verdadeiro pavor, mal se atrevendo a dirigir-lhe a palavra e mantendo uma significativa distância física de segurança. O seu génio, não aquele que ele anunciava, sem reservas, ao mundo ter, mas aquele outro, mais ligado ao mau humor era igualmente mítico. A sua irritabilidade trepava aos píncaros do colossal. Todos recordavam a noite em que tinha enfiado um prato na cara do primeiro-ministro, isso mesmo, do primeiro-ministro israelita, por este ter mandado o pedido de volta, alegando que a carne não estava boa, que tinha um sabor estranho, a podre, e que aquilo não era dose que se apresentasse, que tudo junto, a comida não ultrapassava o tamanho de uma azeitona média, o que se tornava ainda mais ridículo na desproporcionalidade do tamanho da louça em que era servido, que… A reclamação foi tão extensa que o maître de sala não conseguiu reproduzir tudo quando voltou à cozinha, apavorado por ter de dar tal recado ao grande chef. Mal’à-Guette jamais tinha sido criticado. Parece até que havia uma lei nesse sentido. Jamais alguém criticara o que quer que fosse que ele tivesse inventado, que ele criasse, que ele elaborasse, que ele dizesse, que ele fizesse. Era intocável. Além do quase incidente diplomático, o episódio entrou para o ‘anedotário’ dos chefs de todo o planeta e acabou por se traduzir ainda em mais respeito por aquele insolente chef, que não aceitava nem reservas nem críticas. Os seus pares, que o consideravam insuportável, mimado, arrogante e insolente garantem mesmo que a segunda estrela se deveu mais a esse episódio do que ao verdadeiro mérito da sua cozinha, demasiado pretensiosa e ‘vazia’ de ideias, segundo a classificavam.

Também por isso, Mal’à-Guette mal conseguia esperar pela terceira estrela. Para mostrar ao mundo que, com ou sem episódios temperamentais, a sua era a melhor mente culinária do universo, de toda a galáxia. Daí ainda, o secretismo com que, quase como um eremita, se isolava numa cozinha construída à imagem das salas de pânico. Um verdadeiro bunker, onde apenas ele podia entrar, com códigos, encriptações e reconhecimento ocular, de voz e digital, para evitar intrusos. Quase a completar dois anos, a receita, estava certo, estava concluída e todos os seus segredos bem guardados.

Seguro de si, com a soberba no máximo, Mal’à-Guette deu o prato por concluído e anunciou-o ao mundo. Preparava, agora, um megaevento, uma instalação, uma performance, uma finissage, tudo em um, para apresentar o seu tão aguardado novo prato, aquele que coroaria com mais uma estrela o seu homérico esforço, a sua prodigiosa criatividade. Para o efeito, e para garantir que seria o evento do ano em todo o mundo digno desse nome, ou seja, para todos os intrépidos cosmopolitas, trend seakers e cool hunters, seguidores e amantes do supremo gourmet, Mal’à-Guette tinha lançado um desafio na internet: todos os interessados em provar o seu novo prato se podiam inscrever, porém, um e apenas um privilegiado, escolhido aleatoriamente por um programa criado para o efeito pela Microsoft, seria contemplado com tal honraria.

Um qualquer cidadão comum diria de sua justiça sobre o seu prato. Estava tão seguro da delicadeza de sabores e texturas que criara que sabia, sem um milímetro de incertezas ou dúvidas, que qualquer humano teria uma experiência próxima do orgasmo ao provar a sua nova receita. Tal era a confiança, tal era a genialidade, tal era a coragem. O mundo gastronómico estremeceu. Como poderia o grande Mal’à-Guette atrever-se a tanto? Como poderia um palato comum, sem validação prévia, avaliar delicadezas divinais? Mais uma vez, o mundo gastronómico rendeu-se a tamanha excentricidade. A data das inscrições foi anunciada. Passados apenas dois minutos, biliões de pessoas de todas as possibilidades geográficas esgotavam o sistema e mandavam abaixo o próprio programa. Que sucesso! Que sucesso! Escrevia a imprensa especializada e não só. Foi marcado o dia e foi eleito o candidato à experimentação. O evento teria lugar na antecâmara da sua cozinha secreta. Um local assético, criado pelos mais esdrúxulos designers com técnicas de ponta e high-solutions, onde ergonomia, imaculado mármore icy e inox de última geração, antibacteriano, antifúngico e antigérmico uniam esforços. A sala era uma antevisão do futuro. Um aperitivo visual.

O candidato, também ele mantido em segredo, mesmo do próprio chef – que disso tinha feito questão, para evitar que julgassem que seria um amigo o eleito ou, pior, um crítico pago para o efeito – foi escolhido, após reposta a avaria do sistema e do servidor. No dia e hora anunciados, com a pool de jornalistas a postos e em direto para todo o mundo civilizado e cosmopolita, já que o outro não interessava ao incrível Mal’à-Guette, foi posta em cena a sua espetacular mise-en-scène. Houdini teria apreciado toda aquela encenação. Era preciosa. Era engenhosa. Uma ilusão. Pura magia e expectativa. Apenas o homem e o chef, num frente a frente televisivo. Num gesto inesperado e inédito, o próprio Mal’à-Guette serviria o convidado. A sala vazia, gélida, quase inóspita. A longa mesa de metal, a parede de vidro com uma Paris gélida e branca lá fora, a mancha negra de fotógrafos e cameramen num dos topos da sala. No lado oposto, uma porta selada. O homem já no seu lugar, no topo da mesa, de frente para as câmaras. Um silêncio sepulcral. Da porta de metal, a lembrar as de alguns talhos, surge, com o seu porte aristocrático e maneirismos como único adereço, o majestoso Mal’à-Guette, todo de branco, com um traje que suscitou comoção entre a imprensa. Uma criação que era o encontro entre uma jelaba e um mega avental estilizado. Tudo muito de última geração. Tudo muito UAU! A antecedê-lo, suportado pelas duas mãos, um prato de metal gigante – uma das imagens de marca do chef, que nunca se rendeu ao orgânico, às pedras de xisto ou à cerâmica tradicional de alguns pobres pós-modernistas tão démodés –, tapado com uma gigantesca campânula feita de uma liga exclusiva de ouro branco e diamantes com acabamento silver.

Et maintenant, je vous presente une sublime creación.

Antes de destapar o prato e colocar a descoberto o seu mais recente segredo, o chef acrescenta o nome do prato e a sua composição: “L’air du Temp Perdú. Uma sugestão de caça exótica, imaginação hidrofilizada em suco da sua própria calda e miragem de aromas surrealistas, com puré de sensibilidade e acompanhada de uma suposição de amoras silvestres e possibilidades de liberdade. Um conceito aéreo, no qual trabalhei estes últimos quase dois anos. A receita de uma vida, posso mesmo dizer.”

O chef destapa finalmente o prato. As respirações suspendem-se, numa espécie de poupança de oxigénio, o qual parecia, de certa forma, sobejar naquele espaço amplo e pouco habitado de mobiliário, tal era a sua modernidade e funcionalidade. As câmaras focam o gigante prato em grandes planos. A comoção era reinante. A imprensa especializada já rejubilava e alguns escreviam sem parar nos seus notebooks, tablets e afins. Mal’à-Guette, sem sequer olhar o homenzinho eleito para tamanho feito, já agradecia com um ligeiro menear da cabeça os sussurros que denunciavam o previsível megassucesso de mais um dos seus grandiosos e rocambolescos feitos, inimagináveis para o comum dos mortais. Pois que ele era de outra fibra. Um ser estelar, proveniente de galáxias desconhecidas. Mentalmente já pensava na quarta estrela, aquela que se seguiria a esta terceira que, nem se questionava, estava no papo, por assim dizer.

Mal’à-Guette é interrompido pelo riso do homem, um português que gargalhava de forma muito civilizada, como reparou, e que desmonta todo o seu universo, abate todo o seu reino em poucas palavras:

– Mas o querido é o Zé Malaguetas. Que giro! E que sofisticado! Não se recorda de mim? Sou o Becas Horto e Osório de Mello Francellos e Mais Coiso de Tal. Você era quase como se fosse da família. Fazia recados para o pai, recados e não só, por isso ele nunca denunciou o desfalque que lhe fez, quando fugiu de Benavente para vir para Paris. Que esperto! Mas olhe, querido, o prato está va-zi-o. Tem rien de rien, ‘tá’ver? A única coisa que apresenta, de facto, é um ‘arzinho que se lhe deu’, que é o nome da receita em português, mais coisa menos coisa, certo? Agora, por favor, pode trazer a comida que eu estou faminto? Bem-haja, querido Malaguetas.

Moral da história:

O mundo pode até estar preparado para um prato vazio, ou antes, cheio de ar, mas jamais um ribatejano.

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