Ela ouvia, tão absortamente e de forma tão intensa e concentrada que não conseguia ouvir, de facto, o que ele dizia, apenas o que ela calava. Tudo aquilo que sussurrava para dentro de um corpo que não era seu e com isso tinha aprendido a viver. A viver para dentro, sob o traço vago do seu próprio contorno, assumindo como sua única fronteira intransponível o seu interior. A sua mente. Os seus órgãos internos. As vísceras. Os ossos. Os pensamentos. O espírito. A vontade. Os desejos. Os sentimentos. Mais importante do que tudo isso: os seus sonhos. Eles eram o seu país, o seu território. Uma fronteira intransponível, de acesso restrito. Tão exclusivo que ninguém mais lhe poderia aceder. Não havia partilha possível. Nem as palavras lá conseguiam entrar. Parcas e limitadas para descrever o que lhe ia na alma, aquilo com que sonhava. Uma ilha… Correção: um atol de privacidade impartilhável, que existia logo abaixo da sua epiderme. Sob a linha ténue da sua pele dourada do sol, que ele manietava por fora. Apenas por fora. Mesmo a sua pele, no seu avesso, já era dela, já lhe pertencia em exclusivo. Cada miligrama de sangue era seu, enquanto guardado no precioso invólucro que era o seu ser interior. Todo o espaço de dentro. Interino. Toda a saliva que não cuspia lhe pertencia. Cada gota de suor, deixava de lhe pertencer logo que a epiderme a expulsava. Eram dele igualmente as suas lágrimas, manifestação exterior de tudo o que por vezes lhe ia lá dentro. Tão dentro de si. Aprendeu a guardá-las também. A derramá-las na forma evaporada, sem consistência líquida, para que ele não lhe as resgatasse. Assim, evaporadas, misturadas com o ar, eram da Terra, pertenciam ao universo de todas as coisas que ele não alcançava.
Robinson Cruz-o-é vivia satisfeito numa vidinha costurada à sua maneira e bem cerzida pela conivência social, pelo que não entendia que algo pudesse não estar bem. Fazia o que todos faziam, da forma e pela ordem que todos faziam, seguindo um guião há muito escrito e por todos assinado. Fazia como vira e via fazer. Tudo certo, portanto. Não se questionava, até porque estava tudo tão a seu jeito e a seu favor, que questionar-se seria prejudicar-se e isso ninguém no seu perfeito juízo faria. Sentia-se o amo da casa, o seu garante. O imponente e inquestionável chefe. O grande líder de um reino circunscrito pelo qual ele zelava, tal como havia sido ensinado. Ele mandava e essa era uma tarefa pesada e árdua que o mantinha em sentido dia e noite, mais de dia do que de noite, é certo, mas que jamais o abandonava. Um cargo de enorme responsabilidade e não menor intensidade. Ele geria as finanças, determinava ganhos, definia gastos, orientava poupanças, geria as economias, quando as havia, autorizava compras, programava atividades, informava-se sobre a vida e era sobre si que caíam todas as dificuldades e responsabilidades.
Dele esperavam ainda que formasse família, que cumprisse com obrigações profissionais, sociais, familiares e sexuais. Ele provinha. Provir engloba um vasto reino de afazeres e todos exigentes. Trabalhar, ganhar, progredir, proteger, assegurar, sorrir, prosperar, conduzir, provar o vinho, pagar a conta, ter ereções férteis, zelar pelo pagamento das contas, verificar o ar dos pneus, cuidar da aparência, ser o centro das atenções, ser obviamente heterossexual e cisgénero – era o que faltava se isso faltasse –, ter uma posição política, torcer por um clube desportivo, ter um hobby, a barba sempre impecável, estar a par sobre se deveria usar boxers ou cuecas, calção de banho ou sunga, ser bom conversador, ter sentido de humor, tempo para visitar os pais e os irmãos, gostar dos vizinhos… Ninguém, senão ele, sabia o que lhe era exigido e tudo sem derramar uma lágrima, nem dar parte fraca. Toda a sociedade de olho nele, avaliando se cumpria ou não cumpria. A toda a hora. Zelador da sua ilha privada.
Claro que se irritou quando começaram a somar responsabilidades a um pacote já tão extenso e compacto de afazeres. Já vivia sob enorme pressão sem as exigências de ter de ser também um companheiro, um ouvinte, um confidente, um atleta, um parceiro de todas as horas, um sedutor fiel, um amante que sabe dar prazer, apenas o marido da mulher nas ocasiões em que os convites lhe são endereçados a ela, um pai excelente, presente, atento e dedicado… Qualquer dia, pretenderiam que também limpasse a casa, passasse a ferro a sua própria roupa, que fosse às compras, decorasse marcas de produtos e comparasse preços. Desculpem, já lho sugeriam dentro de portas. Não podia ceder mais. Aderir ao peito depilado tinha sido o seu mais louco limite. Para lá disso já era palhaçada. Não o permitiria. Sobriedade e conservadorismo não servem apenas de entradas no dicionário, como costumava dizer. Afinal, não somos todos iguais.
Contida nas suas fronteiras de carne feitas e por sonhos agigantada, era internamente que ela viajava. Viajava para outros lugares, nem sempre distantes, apenas lugares onde ele não estava. Para espaços neutros de interferências, onde apenas a sua vontade servia de passaporte. Ele não sabia que não sabia. Ele não via que não via. Ele não ouvia que não escutava. Ele não compreendia que não compreendia. Assim, tornava-se difícil para ela encontrar caminho ou águas calmas. Sentia-se sempre num infinito e violento canoeing rio abaixo, por rápidos cada vez mais rochosos, imersa em remoinhos confusos, sem conseguir apreciar a vista, sem poder deixar de remar, a tentar evitar os perigos mais próximos, sentindo já no coração o aperto de todos os riscos que não via e que, por isso, não poderia acautelar, apenas adivinhar que viriam. E eles vinham sempre. Uma viagem que desejou aventureira, mas segura. Vibrante, mas colaborativa. Um rio que desejara menos acidentado, com águas mais cristalinas e dois remos. Um para cada um. Ou um remo para partilhar. Ela passava demasiado tempo com a cabeça debaixo de água, sem conseguir respirar, a tentar manter a canoa à tona ou esforçando-se por a virar, ou orientar, sempre receosa de fissuras e rombos no casco, sempre alerta, sem pregar olho, num constante estado de ansiedade. Onde paravam os seus sonhos? Onde estava a vida que achou que juntos construiriam e sobre a qual ela acreditava que tinham falado? Terá sido tudo na sua cabeça? O que sonhava ele, então, enquanto ela achava que sonhavam juntos com esse caminho de interajuda? Onde estavam eles nesta vida? Onde paravam os amantes das sextas-feiras, a quem faltava o tempo para estarem permanentemente juntos? Poderão nunca ter existido fora do atol onde só ela reinava?
Enquanto isso, enquanto ela remava sem descanso, rodando a pagaia com a destreza alucinante de uma majorete, ele sorria nos cafés – networking, chamava-lhe ele, apenas embaraçoso, segundo ela –, exercitava-se nos ginásios, gastara rios de dinheiro em roupa interior – na exterior também, devido à imagem de sucesso, que lhe traria sucesso, como se fosse um magneto ou algo do género. Divertia rodas de amigos e resmungava sempre que não havia cervejas no frigorífico.
Cruz-o-é chamava-lhe Sex-ta-feira. Inicialmente um nome de código, uma private joke que os excitava, e que se prendia com o facto de ser o único dia da semana em que quando ainda não viviam juntos, conseguiam assegurar uma noite inteira na companhia um do outro, na mais lícita atividade de jovens amantes: dizer disparates, serem palermas e dedicarem-se ao sexo como a uma escultura viva, a necessitar de mais e mais um toque, de mais humidade para não secar o barro… de mais e mais qualquer coisa que apenas os amantes sabem, reconhecem e apreciam. O nome manteve-se mesmo quando a sexta-feira passou a ser dia de colocar máquinas de roupa a lavar pela noite dentro, para a aproveitar a tarifa bi-horária e já nem a própria memória se recordava do porquê de um dia da semana ser nome de gente. Não era, na verdade. Mesmo nos tempos em que fazia sentido, ela não gostou da objetivação, da colagem da prática sexual à sua própria identidade, ao ponto de virar um nome, uma alcunha, un petit nom. Mas apenas dela. Ela era a Sex-ta-feira.
Entretanto, sem que disso tivesse dado conta, ela tornou-se em todos os dias da semana. Na segunda-feira de supermercado, na terça de cozido à portuguesa, na quarta de dar um jeitinho à casa, na quinta de visita aos sogros, na sexta de roupas de máquina para lavar, no sábado de faxina pura e dura e nos domingos de passar a ferro, com particular ardor as camisas dele, que as apreciava dobradas e com vincos vários. Quando é que tudo isso aconteceu? Antes ou depois de o ter ouvido dizer a um amigo que se encontrava em fase de divórcio que a culpa tinha sido dele, ao escolher um ‘avião’, que se tinha metido num casamento sem futuro, pois era óbvio que uma mulher como a que o amigo tinha elegido para se casar seria sempre demasiado cobiçada e sujeita em permanência a todo o tipo de tentações.
– Eu escolhi uma feiinha, precisamente para não ter essa preocupação na cabeça. Assim, estou tranquilo. Joguei pelo seguro, que com essas decisões não dá para arriscar.
Na verdade, ela nunca foi sequer a Sex-ta-feira. Ela sempre foi a feiinha. Achou, na altura, que aquilo era filosofia barata, conversa de ‘campeão’ derrotado, já que uma mulher como a do Freitas jamais olharia para ele duas vezes e ele sabia-o bem. Considerou até que ter ficado a ouvir uma conversa privada – ainda que não propositadamente, pois eles é que presumiram que ela não estaria em casa àquela hora – não tinha sido correto e que merecia ter ouvido aquela indiscrição. Acreditou ainda que tudo aquilo era infantilidade, pois sabia bem que, não sendo um exemplo de sofisticação e maquilhagem, não era uma mulher feia. Mas, caramba, como aquilo magoava. Magoava até hoje, para usar de sinceridade. Por isso ela ouvia agora, tão absortamente e de forma tão intensa e concentrada que não conseguia ouvir, na realidade, o que ele dizia, apenas o que ela calava. Tudo aquilo que sussurrava para dentro de um corpo que não era seu e com isso tinha aprendido a viver. A viver para dentro, assumindo como sua única fronteira intransponível o seu interior. As suas tripas, das quais fazia tantos corações.
Há dias para tudo, como é sabido, e um dia, talvez hoje mesmo, ou um pouco antes, que há coisas que acontecem bem antes de as percebermos, ela viajou para fora de si. Primeiro uma lágrima que bebeu na íntegra, depois um soluço audível, um grito que projetou para o universo, um batom vermelho que não se recordava de ter comprado, um vestido rodado e um sorriso atrevido que tirou do armário. Era domingo, dia de passar a ferro, com especial esmero as camisas de Robinson Cruz-o-é, que gostava delas bem passadas, dobradas e vincadas em lugares específicos, como se tivessem acabado de sair de uma caixa. Seria, nesse domingo memorável, uma caixa de surpresas. Ela podia não ser um ‘avião’, mas tinha asas suficientes para voar dali para fora, para fora do seu corpo interior, para fora, daquela casa, para voar para fora daquela vida. Nas prateleiras, dobradas a rigor, todas as camisas dele, cada uma delas com a falta de um pedaço de tecido triangular equivalente à base do ferro que sobre elas deixou a repousar até queimar, deixando pela casa o aroma a um incenso que cheirava a partida e prometia liberdade.
Robinson não compreendeu. Os outros também não. Ingratidão, disseram. Deslealdade, argumentaram. Avançaram que ela era estranha e deprimida. Tinha enlouquecido. Não, afinal sempre tinha sido louca. Descompensada. Que não o merecia. Pessoas que nunca se tinham interessado pela sua saúde, física ou mental, menos ainda sobre a sua vida, opinaram como ela era uma mulher difícil e bipolar. Estava tudo nos olhos dela, profundos e inexpressivos. Falaram ainda de como era injusto. Que ele sempre lhe tinha dado tudo, que nunca nada faltara naquela casa, que era um homem íntegro e honesto. Trabalhador e amigo do seu amigo… Um homem, na verdade, como todos os outros.
Moral da história:
Nenhum homem é uma ilha. Mulher alguma jamais o será.
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