No dia em que Rosa nasceu, desabrochou no jardim lá de casa a primeira rosa desse ano. Não sabe muito bem como, mas o pai reparou naquele botão de cor. Suave, fresca, elegante e sedutora. Reparou nele enquanto olhava para o vazio, rodando já a chave na porta, tentando perceber mentalmente se levava para o hospital tudo aquilo que a mulher lhe havia pedido. Era para ser apenas mais uma consulta, mas o bebé pensou de forma diferente. Apanhada de surpresa, de enxoval, a mãe tinha apenas o seu corpo. Aquele de onde a filha escapuliu antes do tempo. Obviamente, antes do tempo que os outros lhe tinham destinado, ou previsto, mas não antes do seu tempo. Aquele era o seu tempo exato. Nem mais, nem menos.

Estas coisas são sempre pontuais como um relógio de boa qualidade, como aqueles que o Sr. Isaltino vende na ourivesaria. A mesma onde a mulher há já demasiado tempo namorava umas arrecadas. Aquelas que julgou ser possível oferecer-lhe no dia do casamento. As mesmas que achou que conseguiria comprar-lhe logo que se casassem. Aquelas com que o orçamento familiar não lhe permitiu mais do que um cortejo à distância. Bem que ele gostaria de lhas comprar agora, no dia em que nascia a primeira filha, mas o dinheiro é tão curto lá em casa, como longos são os planos que o amor permite magicar. Um enleado de pensamentos que fez com que o pai entendesse o que o destino lhe dizia. Dizia-lhe várias coisas, na verdade. A mais mágica de todas é que é ilimitado o espaço no peito. Quando se julga que vai rebentar de felicidade, ele simplesmente dilata-se, alarga-se para bem-receber, para melhor acomodar as coisas boas e incomensuráveis que vai recebendo, encontrando sempre espaço para mais um lugar à sua mesa. Assim se sentia aquele homem simples nesse dia de vendaval. Um vendaval que não lhe rodopiava apenas no peito, também vinha dos céus, talvez por isso, aquela rosa, exposta pela primeira vez naquele instante em que saía de casa, com o coração à pinha e a cabeça a andar à roda, em pleno tornado que vinha de Norte, lhe pareceu tão extraordinária. Um sinal. Um incrível sinal. Saiu de casa cheio de ideias. Sabia qual o rumo dos seus passos, mas sabia também que faria uma paragem de permeio.

Isaltino sorriu-lhe uns bons dias que eram já felicitações. Tinha sabido da boa-nova. Nada se compara ao que um homem sente por dentro quando nasce o primeiro filho. Se já tinha estado com a mulher e a filha? Se estava tudo bem? O que o trazia por lá numa data tão especial? As arrecadas, pois claro. Com certeza que sim, pagaria uma parte e logo se veria o resto. Leve lá as arrecadas, homem, que hoje não é dia para falar de trocos. Seguramente que era homem de palavra, que as pagaria com sangue se preciso fosse. O pai não sabia ainda que seria com isso mesmo que, um dia, alguém as pagaria, com sangue. Não se falava mais nisso. Despache-se, senão ainda perde a camioneta. Só há uma de hora a hora. Segurou, com força, demasiada até, achava – tinha de ter cuidado, por causa do laço do embrulho feito à pressa, mas com esmero – a caixa das arrecadas que guardara no bolso direito do casaco. No bolso esquerdo, o bilhete de autocarro, verdadeiro ingresso para aquele dia de felicidade. Não deveria ter vestido aquele casaco, agora que pensava nisso. A mulher teria preferido que ele levasse o novo, mas ele, o pai, não teve tempo para pensar nisso antes. Apenas nesse instante lhe ocorria que poderia ter tido mais essa gentileza para com a mulher. Talvez ela não reparasse. Talvez também ela estivesse a viver um turbilhão tal que lhe confundisse os sentidos, como a ele. Daqueles em que respiramos pelos olhos e falamos com o coração. Nesses dias, todos os casacos são novos. Não há puimentos à vista. Não há guarda-roupa impróprio. Talvez ela também não reparasse na forma como atafulhou tudo aquilo que ela lhe enumerou num saco, que não seria o que ela escolheria para a ocasião. Talvez ela ralhasse por causa do dinheiro gasto desnecessariamente nas arrecadas. Diria que havia muito tempo para isso, que agora importava o bebé, que ele não devia. O que é que isso importa agora, dir-lhe-ia ele, rindo de felicidade e amor.

By Travis Smith

O vento teimava, forte e determinado, como a sua mão em volta da caixa das arrecadas. Agora com chuva, que ia lavando a jato os vidros da camioneta. Sobreviveria aquele primeiro botão de rosa àquela tormenta inesperada? Sobreviveria o laço ao aperto da sua mão? Há dias em que um homem se sente cheio. Pleno. Uma rosa que desponta em plena tempestade. Uns brincos de ouro para oferecer à mulher. Um filho que nasce sem se esperar. Quer dizer, claro que esperavam. Não apenas esperavam como desejavam. Mais, ansiavam. Com tanta força e desespero que já sonhavam com a cara da pequena. Seria igual à mãe. Assim o pretendia o pai, enamorado por cada traço daquele rosto iluminado, que trazia sentido a cada um dos seus dias. Dias de bastante dureza. Longos e carrascos, mas que logo se suavizavam sob o brilho dos olhos dela. Sempre tão serenos, sempre tão doces. Mesmo quando zangados, sempre tão seus.

Sentia-se corado e meio sem graça, quando finalmente se encontrava a meros passos de distância do quarto de todas as felicidades. A escassos segundos de beijar a mulher, de olhar de frente a cara da sua filha pela primeira vez, de oferecer as arrecadas à mulher que amava, de lhe dizer que a filha, afinal, teria de se chamar Rosa, por causa daquele botão de rosa no jardim lá de casa, que abriu asas em plena tempestade, quase um milagre. Que as avós, ambas Custódias, não se apoquentariam que eles mudassem o nome da criança. Afinal, a filha era deles e Rosa era tão mais bonito. Um dia, a filha agradecer-lhes-ia. Planeava ainda comentar com ela o vento forte que vinha de Norte, numa altura do ano em que o vento já não é tão forte nem costuma vir de Norte. Vinha cheio de coisas para ver, ouvir e dizer. Tão cheio.

Tudo aconteceu muito de repente. Não podia ainda ver a mulher, mas levaram-no a ver aquele pequeno e muito amado projeto de vida, de pele tão apropriadamente cor-de-rosa. Chorava, esperneava e gritava como gente grande. Não se imaginaria tamanha gritaria a sair de um corpo tão mínimo. Ficou ali, colado àquele já tão imenso amor. Ela calou-se. Parecia observá-lo. No bolso, ainda as arrecadas. No coração, tudo. Começou a estranhar a demora para ver a mulher. Uma complicação. Uma infeção? Aguarde mais um momento, o médico já vem falar consigo. O médico tardou. A filha retomou o vendaval de choro. Gritava com fome, ou seria medo ou pura zanga? O médico veio. Antes não tivesse vindo. Enquanto não veio, a mulher estava viva no seu peito. Existia na sua vida. Enquanto não soube, nada daquilo era verdade. Enquanto aguardava, a sua vida era perfeita. Uma mulher que amava para lá do dizível. Uma filha nova em folha, para adorar até ao fim dos tempos. Umas arrecadas para ofertar. Mas o médico veio. Com seriedade no rosto e peso nas palavras. Uma complicação. Nada o fazia prever. O sangue. Uma hemorragia. No final de um rol de coisas que ele não conseguiu reter, o coração dela parou. Apenas isso importava saber. O coração dela parou.

E ele que ainda sentia o cheiro dela na sua pele. E ele que ainda apertava a caixa das arrecadas na mão direita, de onde, achamos, nunca saiu essa mão, para garantir que não se perdia. Para garantir que continuava a receber dessa mão fechada sobre a caixa da oferta, uma corrente extra de felicidade, que nascia da antevisão da felicidade que lhe iria proporcionar a ela.

Mas ela não conseguiu esperar mais pelas arrecadas de que tanto gostava. Nem para olhar bem o rosto da filha. Nem para ver no dele toda aquela felicidade que já o era antes mesmo de olhar a filha. Nem para dar de comer ao bebé que gritava. O pai sabia agora porque gritava a filha. Enquanto ele ignorava, a filha já sabia. Chorava de tristeza, a pequena. Tão pouco de gente, ainda, e já chorava a saudade. A perda. Atrever-se-ia, agora, a alterar o nome da criança, sem que a mãe pudesse opinar? Conseguiria, daí em diante, decidir fosse o que fosse?

– A minha filha está a chorar.

Apenas conseguiu dizer isto ao médico que, aliviado, sem a gritaria e o choro previsíveis, tratou de tudo resolver por aquele homem destroçado. Pior do que o choro e os gritos que antecipara, era aquela afirmação desolada. Solteira de outras coisas. Apenas que a filha chorava. Ainda bem que ela chorava. Ele não conseguia. A rosa que havia desabrochado naquele dia, em pleno temporal, também conseguia chorar. Chorou tanto que caiu, ainda um botão, ainda sem uma cor definida, caiu. Chorou-se até ao fim, naquele ainda princípio de vida. O pai sabia que não podia culpar o vento Norte ou a chuva. A rosa apenas tinha chorado até se consumir.

Rosa Custódia cresceu no meio de ventos cruzados e uma espécie de melancolia latente, como aquelas neblinas que nunca chegam a ser chuva, nem sequer um denso nevoeiro, mas também não permitem ver o sol. Uma bruma que tudo turva, tudo humedece, até a alma. Cresceu cedo demais. Fez-se mulher antes de conseguir ser criança. Vivia entre as rígidas regras da avó paterna e a alegria fingida da avó materna, dócil e permissiva no trato com a sua única neta. Rosa cresceu do dia para a noite, ciente de que tinha de ‘criar’ o pai. Encaminhá-lo e, com sorte, fazê-lo sorrir, um dia. O pai vivia no permanente esforço de tentar mostrar à filha o homem que poderia ser, que um dia fora, mas que, e ambos o sabiam, jamais voltaria a ser. Assim, o pai era um quase. Quase terno, quase feliz, quase alegre, quase, quase. A única coisa que todos eram de facto, era muito pobres e muito tristes. Houve ajudas iniciais, houve compreensão e prorrogação de prazos de pagamento. O funeral não foi barato, uma criança também sai cara, apenas o ordenado dele jamais foi suficiente e ainda a dívida da mercearia, do talho, da eletricidade… Mas isso foi no início. Depois, a vida continua para todos, mesmo para aqueles em cujo peito a vida parou, num corredor de hospital, com uma mão no bolso direito e a outra à banda.

Nessa mão se pendurou, desde logo, a de Rosa e dentro dessa mão a mão da pequena cresceu. Não tardou a que a do pai coubesse, ainda que à força, toda ela dentro da pequena grande mão de Rosa. Outras mãos entraram na vida de Rosa, mas esta era a única mão que ela sempre procurou. Quando os tempos eram de bonança e quando eram de miséria, que as contas em falta não tardaram a surgir no correio, com pequenos bilhetes que falavam aquilo que ninguém tinha coragem de dizer ao pai olhos nos olhos: que era hora de pagar o que devia. No meio de tanta tristeza, houve inesperadas provas de amizade. Isaltino não aceitou o dinheiro das arrecadas. O pai quase chorou. Mas como não conseguia, apenas deixou crescer na garganta aquele nó doloroso que impede o ar de entrar e de sair. Teria morrido asfixiado, se não tem corrido para fora da ourivesaria. Uma gentileza que jamais esqueceu.

Rosa fez-se mulher num dia de trovoada. Uma coisa brutal, que deixou a aldeia sem luz durante uma semana e Rosa a sangrar durante igual número de dias. Se a mãe fosse viva, ensinar-lhe-ia a rezar a Santo António e a Santa Bárbara, para apaziguar o temporal, e a não se alarmar com a cor do seu próprio sangue. Mas a mãe não estada. A mãe nunca esteve, pelo que Rosa também isso teve de aprender sozinha. A rezar e a calar o medo. Não adiantava apoquentar o pobre pai. Jamais o apoquentou, com o que quer que fosse. Pequeno ou grande problema. Leve ou grave. Medos ou inseguranças. Dor ou desespero. Sentia-se forte e capaz. Devia sair à mãe (ou seria ao pai?), de quem tinha apenas meia dúzia de fotos e umas arrecadas, que não tardaria a poder usar. Fosse qual fosse a dúvida ou problema, Rosa saciava-a e resolvia-o sozinha. Lia, investigava, perguntava de forma dissimulada a outros e assimilava aquilo que importava.

Rosa perdeu a virgindade numa tarde em que o vento sul enchia o ar de poeiras e parecia pintar-se de amarelo. Não o procurou, não o desejou, mas consentiu-o. Foi submetida à força, mas calou. Uma única vez, pois Rosa não era ingénua, nem tola. Aceitou, apenas, que assim fosse. Naquele dia, com aquele homem. Uma vez sem exemplo. Sobre ele passou a ter uma espécie de ascendente. Ele sabia que não poderia forçá-la mais. Sabia também que a rapariga tinha ótima reputação e era inteligente, pelo que, se ela decidisse contar, facilmente acreditariam nela e ele tinha um nome, um negócio e um casamento pelos quais zelar, ou, vamos falar abertamente, tinha muitas mentiras para calar. Mas como ele a desejava. Desejava-a ainda mais do que em tempos desejou a mãe de Rosa, outra flor longe do seu alcance. Não sabe bem o que lhe deu, mas foi acometido de umas brisas interiores tão escaldantes que forçou a miúda, após umas insinuações patéticas. Esperou sempre que ela gritasse, tal como esperava agora que ela o expusesse. Rosa apenas séria. O tempo todo séria e a olhá-lo bem dentro das pupilas, a fazê-lo sentir por dentro quão miserável ele era, mas sem proferir uma palavra. Apenas aqueles olhos verdes e incisivos, que nem agulha na ponta de um êmbolo. Se tinha valido a pena, esta sua nova existência de medo e receio constantes? Sim. Eram momentos como aquele que o faziam sentir-se vivo numa aldeia em que tudo parecia demasiado morto, até mesmo os vivos. Mas o momento passou, e ele passou a alimentar-se do medo. Do medo de Rosa. Rosa tornou-se adulta nesse dia. Nesse mesmo dia, foi sozinha de autocarro até à cidade e trouxe de lá uma rosa-dos-ventos tatuada no corpo. Uma primeira incitação à partida. À sua partida. Cada ponto cardeal, uma possibilidade. Cada vento uma passagem para longe. Ela soube-o, já era crescida.

Rosa foi estudar para longe. Uma bolsa de estudos, um Erasmos, um emprego na cidade. Longe. O pai temeu perdê-la, mas Rosa voltava. Voltava todas as semanas, pontual como um bom relógio, daqueles que se vendem na ourivesaria do bondoso e gentil Sr. Isaltino, como dizia ainda o bom pai. Rosa bem que desejava sair daquele ninho de vespas. Quando todos se conhecem demasiado bem e há demasiado tempo, um tempo que percorre já várias gerações, quando todos se conhecem assim tão bem, num espaço tão limitado, todos se criticam, todos se odeiam. Não havendo ‘outros’ sobre quem falar, fala-se sobre os de sempre e quando não há novidades, elas inventam-se. Fulano foi visto com beltrano atrás do café da Licas. Desconfia-se que o Mário trai a São com uma nova auxiliar de educação da escola primária… Rosa não aguentava aquele tipo de ambiente, as tricas, as mentiras e já nem as verdades sobre aquele punhado de gente estranha que habitava a aldeia. O que Rosa mais queria era partir, um dia, com a Monção, deixar-se guiar para bem longe dali. Mas Rosa também sabia que só o faria se levasse o pai pela mão e que este jamais sairia da aldeia, onde tinha conhecido, amado e enterrado a mãe de Rosa, o amor da sua vida. Assim, ciente de tudo isto, Rosa ia e vinha. Ia e voltava, como uma brisa, como os ventos alísios, seguros, navegáveis.

Sem grande paciência lá ia aturando o azedume dos avós paternos, que pareciam culpar a pobre da sua mãe, morta e enterrada há duas dezenas de anos, pela miséria em que vivia o pai de Rosa. Se ao menos ela não tivesse morrido, lamentavam-se em frente a quem quer que fosse, mesmo em frente a Rosa. Sim, como se a mãe tivesse morrido apenas para causar danos irreparáveis na vida sentimental e na sanidade mental do homem que amava e ao lado de quem era brutalmente feliz. O que dizer a esta gente? Perguntava-se Rosa antes de explodir, tentando com isso não explodir. Umas vezes era bem-sucedida, outras, nem por isso. Rebentava que nem tromba de água, que nem vento Suão em dia não. Depois, volvidos poucos minutos, como chuva de verão, voltava a sorrir e partia. Também se condoía com a falsa felicidade que os avós maternos tinham inventado para dela se servirem na presença de Rosa. Uma felicidade que doía mais do que tristeza. Uma encenação de alegrias inexistentes, como nas peças de teatro de má qualidade, em que nem o texto, a encenação, a direção ou os atores conseguem disfarçar a brutal mediocridade de tudo aquilo. Amava-os a todos, não tanto quanto ao pai, mas aquilo cansava-a estupidamente. Por mais que a vida profissional a afastasse, mais e mais, daquele lugarejo de infelicidades diversas, ao qual estava ligada de forma dramática, Rosa voltava sempre, fiel como as estações do ano. Semanalmente. Um dia não foi. Avisou o pai. Tinha conhecido alguém especial. Regressaria, sem falta, no próximo fim de semana.

Rosa apaixonou-se perdidamente num dia em que o vento soprava endiabrado de Este. Felizmente, ele não era espanhol, brincou, quando contou ao pai. Levou o namorado à aldeia. Depois, o noivo, que já não era o namorado, e logo de seguida o futuro marido, que, afinal, acabou por não ser nem o namorado, nem o noivo, mas um terceiro indivíduo, para escândalo dos locais. De todos, exceto do pai, porque quem ama de verdade, aceita. O marido acompanhava-a todas as semanas, naquele ritual de visitas de fim de semana que nada ou ninguém poderia interromper. Com o casamento para breve, o pai comentou que queria que ela fosse consigo à ourivesaria do Sr. Isaltino, onde queria comprar-lhe um cordão de ouro que ela pudesse usar no dia do casamento, juntamente com as arrecadas da mãe. Era uma forma de pagarmos a gentileza do Isaltino, que nunca aceitou o dinheiro que ainda restava pagar dos brincos. Rosa olhou o pai de frente e disse-lhe que a conta das arrecadas estava saldada há muito tempo. Tinha sido ela a pagar essa dívida. O pai não entendeu, achou que tinha sido com o dinheiro que Rosa ganhava, em adolescente, a dar explicações aos gaiatos da aldeia. Tanto melhor. O que importava era que o pai soubesse que não havia dívidas por pagar e que aceitaria o que ele lhe quisesse oferecer, mas que jamais voltariam a comprar fosse o que fosse ao porco do Isaltino. O pai não entendeu tamanha rispidez nem lhe pareceu bem ou apropriado aquele linguajar. O noivo de Rosa, sim, mas justificou a atitude de Rosa com o stress e o cansaço, resultantes de todos os preparativos para o casamento.

Rosa casou-se num dia em que, estranhamente, não havia vento algum. Nem uma brisa. Já era outono, mas, ainda assim, era como se tudo tivesse parado, incluindo o vento, para a ver casar-se na mesma igreja onde, anos antes os pais se tinham casado. Ao pai não pareceu bem que fosse noutro lugar, pois sempre era uma forma de a mãe poder ‘assistir’, ela que tanto gostaria de ter podido estar ao lado da filha todos os dias da sua vida, mais ainda no dia do seu casamento. Rosa não argumentou, achava macabro, mas compreendia o sentimentalismo, pelo que não contrariou, apenas disse ao pai que, sim, que se casaria na aldeia. Pela primeira vez, Rosa viu o pai chorar, quando com ela caminhava em direção ao altar. Rosa também chorou e como não havia vento nem brisa, a água manteve-se por ali, naqueles dois rostos, como se acertando contas por todas as lágrimas não choradas até então. Rosa foi muito feliz alguns anos, mas não o suficiente para que o divórcio não viesse a acontecer. A aldeia nem por isso se escandalizou, já que dali não esperavam grande coisa que não modernices e estravagâncias. Mudou-se brevemente para casa do pai, onde viveu durante uns tempos, enquanto escrevia uma tese de doutoramento. Talvez para aproveitar a sua presença, já que se culpava pelas constantes deslocações da filha, que jamais pudera voar livremente à conta das visitas semanais que lhe devotava religiosamente, uma manhã, o pai de Rosa não acordou. Morreu. Tranquilo. Sorridente. Enquanto dormia, tudo indica, mas como saber uma coisa dessas com toda a certeza? Pode ter acordado e morrido de seguida. Pode ter acordado e percebido que era um bom dia para morrer. Enfim, morreu. Rosa chorou. O pai tinha-lhe deixado outro tanto quanto o muito amor que sempre lhe dera: asas para voar. Para partir para longe. Rosa partiu.

Rosa escandalizou a aldeia num dia de ciclone, com rajadas que ultrapassaram os 100 quilómetros hora. Foi o dia em que regressou à aldeia, após alguns anos, levando para casa um amante. Um homem casado, de uma cidade qualquer, de um outro país, que aguardava o divórcio. Mas sobre isso, quem podia estar certo? A mulher dele aparecia de vez em quando, para alarido e alegria de todos, ávidos de uma boa matiné. Rosa chegava a oferecer pipocas, que os coitados agradeciam, sem perceberem a ironia e o sarcasmo de tal gesto. A mulher dele gritava em estrangeiro, ninguém entendia, mas nestas coisas do amor, o que é que não é fácil de perceber? Era dor de corno e mais a fúria e mais a humilhação, e o vexame, e as pipocas que eram mesmo boas… Todos apareciam às suas portas, se reuniam em grupos às esquinas, tentando perceber qualquer coisa, de olhos bem abertos para ouvirem a gritaria da coitada e o desalento do pobre do homem, tentando explicar que o amor já tinha acabado, que agora só tinha olhos para a Rosa. Bastava olhar para Rosa para se perceber que nada se lhe comparava. Ela mexia com ventos e tempestades, com os seus lábios carnudos e naturalmente vermelhos. Era uma mulher como nenhuma outra. Rosa trazia tempestades de areia no corpo e todo o tipo de fenómenos atmosféricos no olhar. Devia ser por ser tão independente. Pelo menos, ali, na aldeia, não havia mulher como a Rosa. Tatuada, e tudo. Tudo junto, e não havia melhor espetáculo do que quando chegava à aldeia a primeira mulher do Thomas – claro que leva H e que se lê de maneira diferente, com uma espécie de z na ponta, mas por ali, ele era apenas o ‘Tomas’ ‘e já vais com sorte’, acrescentavam outros. A estrangeira não saía dali enquanto não despejava o saco, nem sem antes aviar garrafa e meia de aguardente. Na aldeia, só mesmo a TiNita para ganhar à estrangeira. O que ambas bebiam de bagaço no café da Licas… Só visto. E eles viam. Todos saíam para ver. Todos, exceto o Isaltino, mas nisso apenas Rosa reparava. E ria para dentro.

Rosa não o decidiu em consciência, mas foi ficando na aldeia. Sem se dar conta, sem grandes planos, achando simplesmente que apenas ganhava fôlego, sem saber que jamais partiria, Rosa foi ficando. Criou uma fundação de artes para os jovens, um instituto para os mais velhos, uma casa para mães solteiras e vítimas de violência física ou apenas mulheres desamparadas. Tornou-se importante na região, fomentou a educação e o turismo e foi ficando. Com o seu ‘Tomas’, Rosa viajou muito, mas regressou sempre. E ele também. Sempre juntos. Rosa continuava a cuidar do pai dentro do peito, único grande e verdadeiro afeto de toda uma vida, com quem falava interiormente. Sentia uma paz incrível naquele pedaço de terra minúsculo, com aquela gente bisbilhoteira, intrometida e mesquinha, mas, no fundo, igual a toda a outra gente em qualquer outro ambiente pequeno e circunscrito, temas aliás que soberbamente explorou em muitas das suas teses sociais, publicadas em livro. Rosa era o cata-ventos da aldeia.

Rosa morreu num dia de furacão – um fenómeno aguardado com receio pelo país todo, abrangido por alertas das piores cores e recomendações da proteção civil. Mas Rosa nunca foi de se proteger em demasia e aproveitou aquela boleia para voltar a partir. Dizem que Rosa volta, como sempre voltou. Que regressa todos os anos na mesma altura, como uma monção, com ventos fortes e trombas de água e que todos os anos, em pleno temporal, uma rosa desponta no jardim da casa que era do seu pai. Lá na aldeia. Dizem que sim.

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