Após mais de duas décadas a viver da noite, um eufemismo poético para a vida de imperatriz do colchão, que é, igualmente, outra forma de colocar romance no termo meretriz, Xana, que tinha percorrido por duas vezes e meia as mil e uma boîtes do país, tinha encontrado a solução perfeita para a restante parte da sua vida. Um plano que elaborara logo após o términus do primeiro mês na vida, naquela vida – não confundir com primeiro mês de vida, isso seria demasiado prematuro, mesmo para a expedita Xana –, e que acalentara durante duas décadas. Findo esse tempo, Xana tinha tudo a postos para agir em conformidade com o idealizado, rumo à sua doce reforma.
Sim, era bem verdade que sempre gostara de sexo e que nunca viu mal em aceitar dinheiro por uma arte que praticava de forma exímia como ninguém mais em tempo algum. Era ver as filas em todas as casas em que trabalhara, por conta de outrem e respetivos descontos fiscais, ou enquanto patroa da moçoilada. Era mestre, era doutorada, a especialista das especialistas, a NASA dos prostíbulos, a CIA do prazer carnal. Nada como quando se faz aquilo de que se gosta, com amor, dedicação, criatividade e engenho. Para quê usar de modéstia? Quando assim é, tudo flui, tudo se encaixa, tudo acontece de forma natural e única. Assim eram os serviços que prestava. Também por isso, eram os mais caros e requisitados. Do pedreiro ao mestre de obras, do ladrão ao sultão, do holístico ao político, do vigarista ao artista, todos queriam a Xana. E a Xana cumpria. Solteiros e nem por isso, hétero, bi e até homossexuais, todos queriam ‘conhecer’ a Xana. E a Xana apresentava-se. E, mais uma vez, cumpria. Os seus sortilégios não tinham fim, nem meio, nem princípio, enraizados que estavam no seu próprio prazer.
Mas como qualquer ofício, mesmo no mundo das artes, a pessoa sonha sempre, um dia, poder estar mais liberta, ter mais tempo para si, sair do trabalho a horas mais decentes, poder viajar um pouco mais e para mais longe, ser, enfim, mais livre e despreocupada. Xana sempre acalentou esse tipo de fim de carreira. Em que fosse mais autónoma, menos dependente do rendimento diário. Podia não ter tanto quanto para o sexo, mas Xana tinha o instinto do negócio e tinha-se saído razoavelmente. Claro que, para agradar a clientela mais refinada, ‘tios’ do banco bom e assim, também se via obrigada a investir parte dos rendimentos em roupa – lá fazia as suas extravagâncias na Vershka –, adereços que gostava de não repetir – era fã da Partous e da Expetorize – e casas decentes onde levar toda essa gente. Casas diferentes, até, já que um mestre de obras não se sente à-vontade em atmosferas mais sofisticadas e uma celebridade não entra num terceiro direito da Picheleira, como bem se perceberá.
Por isto e mais aquilo, o seu plano poupança reforma não era tão generoso e providencial como desejaria, até porque, depois de se habituar a um certo estilo de vida, ou antes, lifestyle – para usar de modernidade linguística e armar-se um pouco ao pingarelho –, a pessoa resiste a voltar à simplicidade. Por tudo isto e mais um par de botas – Xana perdia-se com botas –, o seu mais antigo e latente plano sempre foi, finda a carreira no ativo da sexualidade, encontrar um velhinho rico, que satisfaria uma vez por semana, ou menos, que os velhinhos requerem pouca manutenção, e viajar por aí. Não tinha o menor pudor, nem se rodeava de falsas moralidades, pois sabia bem que o amor é coisa rara, mas que há bastante bons sucedâneos e que não se deve virar a cara a um diamante apenas por ser sintético e não vir de uma minha sul-africana. Assim, foi dando, discretamente, início ao seu casting de velhinhos ricos. Encontrou um encantador. Ainda em muito bom estado. Mesmo aquilo que procurava. Lavadinho, ainda com cabelo, com a dentição completa, audição fraquinha, suficientemente letrado e requintado q.b., que também não queria um afetadinho dos cinco costados. Era, verdadeiramente adorável! Tinha mesmo olho para a coisa, congratulava-se Xana, agora já Alex. O melhor de tudo? Ainda era de Castro, como a Inês, a do Pedro da História, tal como ela adorava dançar e tinha rodos de dinheiro. Era forreta, é certo, mas Alex era perita em ‘sacar’ regalias e prémios de produção ao seu sénior.
Encheu o velhinho de atenções e sexo, servindo-se de todo o seu expediente e experiência, e não tardou a mudar todo o seu closet para a ala mais a sul do palacete da criatura. Tudo corria pelo melhor e de acordo com o previsto, exceto no que respeita à periodicidade que tinha determinado para as sessões de acasalamento com o velhinho. Quase a bater nos 70, Xana, perdão, Alex, jamais imaginou que o homem fosse sexualmente tão sôfrego e insaciável. Era cansativo, além de que, não obstante o largo menu à escolha, onde podia ter trufas, marisco ao vapor, caramelizações e liofilização ou mesmo toda uma carta vegan, para quem está cansado de ‘carne’, mas teimava sempre no mesmo prato, um frugal caldo verde seguido do clássico bife com batata frita, por assim dizer. O que não era mau. Nada mesmo, sempre era menos o trabalho, menor a exigência e a preparação mental e até física. O pior é que o velhinho não se saciava. Nunca. Chegava aos três pratos de sopa e aos dois bifes por noite. Por noite ou por dia, que também não era regrado nos horários das refeições. E nada de engordar ou enjoar. Nem o tipo de prato nem a quantidade.
Alex desesperava. Estava farta, para usar de honestidade, que uma mulher que sempre vendeu sexo não está para se estafar ou perder a reputação com mentiras. Mas, bolas, trabalhava mais agora em alguns dias do que quando estava no ativo. Isso não é reforma. Isso é exploração. Estava de volta ao proletariado, às mãos de um senhor feudal. Estava literalmente… arreliada. Assim ficou duas horas, após as quais colocou em marcha nova estratégia. O velhinho queria noites em branco? Pois iria tê-las. Completamente brancas. Tão brancas que nem sexo teriam. Começou por dar a entender ao velhinho que gostaria que ele fosse um pouco mais culto, que em conjunto deveriam partilhar mais referências, e que ambos ganhariam com uma memória mais eclética, com mais recursos linguísticos…
Abreviando, ela passaria a instruí-lo todas as noites, contando-lhe histórias do Arco da Velha. Por ser da Velha, o velhinho anunciou desde logo que saltariam essa história, pois também não era adepto de arcos. Alex não sabia no que se estava a meter. O chato do velho não gostava de aventuras de marinheiros, aborrecia-se com tapetes voadores e achou absurda a história de Sindbad, o marinheiro mais sortudo do planeta, isso eram histórias da carochinha. O que entusiasmava o endiabrado do homem eram coisas sumarentas, para maiores de 18. Tinha arranjado um estafermo. Não se deu por vencida e passou a inventar histórias no momento, entre a verdade, a mentira e o puro delírio. Enredos que nenhum dos dois sabia ao certo se eram verdade ou mentira, pois que a extravagante narradora se servia de pessoas que ambos conheciam, somava-lhe alguns mexericos, o típico disse-que-disse e tratava de colmatar frestas e, de forma intuitiva, criava rocambolescos e escabrosos casos de traição, desvendando casos de falsa paternidade, deslindando perversões sexuais e outras, que, finalmente, faziam o velhinho babar-se por mais, mas apenas para se atirar a Alex ainda com mais vigor e entusiasmo logo que ela anunciava: Fim.
Que bruxedo! Também as historietas se viravam contra ela e Alex começava a desesperar. Como era possível que o velhinho fosse tão ativo? Andaria a tomar dos azuis? Era a primeira vez que se questionava sobre essa possibilidade. Não por falta de lembrança ou por burrice, apenas sabia que o senhor padecia de um qualquer assunto cardíaco, o que inicialmente aumentou ainda mais o seu charme aos olhos de Alex, pelo que jamais achou que ele se aventuraria pela potência química, pela artificialidade. Porém, bem vistas as coisas, tê-la a ela e não a usufruir era como ter um Lamborghini que não se pudesse conduzir, fechado na garagem. Vigiou o velhinho com mais atenção e lá descobriu a caixa dos azulinhos.
Finalmente, tinha o assunto resolvido. Que alívio sentiu nesse dia e em todos os outros daí em diante. Lá passaram à dádiva sexual mensal, com sorte, o que era bem melhor do que inicialmente previsto. Retomaram as viagens de longo curso e já nem sequer tinha de inventar histórias, até porque o velhinho adormecia cada vez mais cedo. Primeiro, Alex estranhou, depois achou que devia ser por ela ter passado a pintar de azul os soporíferos lá de casa. Ficou mais aliviada, pois também não podia permitir que o velhinho perdesse o interesse em si. Até porque havia ainda muito a mudar no testamento do queriducho do velhote. Claro que sempre que Alex queria sexo de verdade, lá dava um dos verdadeiros ao velhinho. E assim termina a história da reforma de Xana.
Moral da história:
O azul é uma cor linda. Dizem ainda que no poupar está o ganho, mas o ganho está sempre do lado de quem vende e não de quem compra. Devia antes ser, no roubar está o ganho. Aí, sim, coloca-se o privilégio do lado do praticante da ação. O verde e o laranja também são demais!
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