Se Petúlia soubesse que não era filha do homem a quem sempre chamara pai toda a sua vida, mas sim de um ex-patrão da mãe, um empresário multimilionário que fez pouco caso daquela gravidez imprevista, mas provável, dada a falta de cuidado ou uso de qualquer método contracetivo – preocupações impróprias para pequenos devaneios sexuais à hora de almoço de um grande homem de negócios –, a qual resolveu como tudo o resto na sua vida: passando um cheque chorudo à funcionária de carnes brancas e apetitosas, que se julgara erradamente apaixonada pelo patrão, Petúlia não necessitaria de fazer três turnos seguidos quatro vezes por mês, a fim de conseguir levar para casa um ordenado minimamente decente. Talvez devesse ter prestado mais atenção à relação estranha e distante dos pais, cimentada por coisas outras que não amor ou paixão, tampouco amizade. Talvez se tivesse reparado com maior insistência que era a única ruiva daquela família de gente morena e hirsuta e não o tivesse encarado como um desvio genético, poderia ter descoberto as coisas que se ocultavam por detrás de cada uma das suas sardas. Se ao menos tivesse dedicado um segundo de atenção à forma como sempre se sentira uma estrangeira naquele grupo de pessoas que eram a sua família. Mas Petúlia não era curiosa nem desconfiada. Tudo lhe surgia razoável e aceitável na enorme diversidade que reconhecia ao mundo, à Natureza e aos homens. Também nunca se valorizara nem prestava muita atenção à sua individualidade, às suas idiossincrasias. Ela era assim e pronto. Isso bastava. Era factual e não necessitava de teorias científicas, justificações biológicas, sociais ou outras. Cada um era como cada qual e ela, Petúlia, era assim. Alta, pele branca e sardenta, cabelo ruivo e olhos verdes como folhas de plátano na primavera.

By Robert Doisneau

Se Petúlia soubesse quão alto é o seu QI – razão pela qual a escola nunca a motivou, já que aquilo que por lá lhe ensinavam estava a anos luz da sua capacidade intelectual – não teria desistido da escola logo no 9.º ano. Uma decisão incentivada pelos pais, que ansiavam por uma ajuda no departamento das finanças domésticas e jamais acharam que alguém da família, uma mulher ainda para mais, poderia chegar longe na via académica. Se tivesse aguardado mais um ano ou dois, começaria a perceber quão fácil teria sido entrar com bolsa de estudos numa universidade à sua escolha, no curso que mais desejasse, o qual acabaria em menos de nada, com notas tão extraordinariamente excelsas que o mercado de trabalho não lhe permitiria uma hora de descanso entre a licenciatura e o primeiro dia de trabalho. Mas Petúlia não era suficientemente paciente para aguardar para ver. Para acalmar as tempestades que lhe cresciam no peito e esperar, sossegada, pela bonança de mares calmos e águas paradas por onde navegar com belos pedaços de terra selvagem à vista. Horizontes desimpedidos que lhe permitissem aportar onde mais lhe apetecesse.

Se Petúlia soubesse quão perto de qualquer sonho estaria então, quanto dinheiro a aguardava, quanto poder alcançaria em menos de dois anos de atividade, a forma expedita como a sua incomensurável capacidade intelectual esgrimiria adversários e desbastaria florestas de obstáculos talvez nunca soubesse o que era uma arrastadeira ou como manuseá-la sob o corpo inerte de um paciente, nas muitas horas de auxiliar de enfermagem que já levava no curriculum. Se Petúlia imaginasse o muito que lhe estava destinado, o mundo que lhe tinha reservado o destino, não se contentaria com o exímio espaço que ocupava no planeta e que, proporcionalmente, mal chegava a um T0 de área de universo. Mas Petúlia não era ambiciosa e raramente trazia sonhos para o tempo dos acordados.

By Robert Doisneau

Se Petúlia soubesse a forma como despertava desejo e luxúria no sexo oposto e mesmo noutras versões da sexualidade humana, jamais se deixaria esmagar por relações tóxicas e humilhantes. Casos em que eles tentavam domar a sua beleza escondendo-a dos demais. Em que o parceiro a rebaixava a fim de conseguir estar mínima ou apenas sofrivelmente à sua altura, já que sobressair sobre ela não seria um plano razoável, menos ainda exequível. Petúlia tinha aquela substância etérea dos elfos, dos seres alados e superiores de outras galáxias de entendimento. Era de uma beleza absoluta, ainda que pudesse ser discutível ou preterida em detrimento de outras estéticas, mas nunca seria feia ou desinteressante do ponto de vista físico ou outro. Petúlia não era, como se sabe, burra ou desprovida de amor próprio, apenas não se dava demasiado valor, achando pecaminosa e inaceitável qualquer forma de se colocar acima dos demais. Um fator que jogava a seu favor sempre que alguém ousava agir dessa forma, pelo que também nunca eram duradouras essas relações de falso amor, de desigualdade afetiva, pois é certo que quem verdadeiramente ama cuida, protege e enaltece o que de melhor há no parceiro e não tenta esmagá-lo sob preconceitos, invejas ou ciúmes. Petúlia não era demasiado sonhadora no que ao amor diz respeito, pelo que tomava como normais e normativas, ainda que insatisfatórias, as relações que tinha mantido até à data.

Se Petúlia soubesse como poderia ser arrebatadora e entusiasta, se expressasse com toda a paixão e eloquência tudo aquilo que lhe ia no peito, talvez não calasse as suas ideias e pensamentos, não por vergonha ou embaraço, mas apenas por achar que cada um tem as suas e as que lhe pertenciam não eram mais importantes do que as outras, as dos outros. Se imaginasse como conseguia ser inspiradora e quão original era o local de onde observava o mundo e tudo o que nele existe, deixaria de achar que apenas seria maçadora e arrogante se lhes desse, aos seus pareceres, voz e direção. Não pensaria tantas vezes antes de proferir uma ideia, antes de avançar com uma solução, antes de dar uma opinião. Acabava sempre por deixar que outros decidissem, colocando-se logo no lugar de derrotada, para não ter de lidar com a frustração de, mesmo depois de uma ideia brilhante, ver todos os outros seguirem um caminho tolo e errado. Preferia saltar etapas e não ter de se esforçar a convencer alguém para depois perceber que de nada tinha valido. Se Petúlia, ao menos, tentasse… Mas Petúlia não era uma entusiasta nem possuía a resiliência dos persistentes, dos resistentes, dos vencedores. Petúlia, como costumava dizer, não queria chatices, quando era isso mesmo que recebia ao querer evitá-las, que ninguém sai deste mundo sem nunca se ter aborrecido. Sobre isso não há memória histórica. Ainda assim, o seu programa de vida orientava-se no sentido de minimizar arrelias e dissabores. Seria nisso bem-sucedida? A própria tinha dúvidas.

By Guy Denning

Talvez, um dia, tudo mudasse e Petúlia acordasse para todo o seu esplendor e vivacidade. Talvez acabasse por reparar na falta de amor verdadeiro entre os pais, talvez investigasse a sua herança genética, talvez ousasse um curso para adultos, talvez se apaixonasse de verdade por alguém que a visse como ela era e a respeitasse e amasse por isso mesmo e não apesar desse enorme inconveniente, que é ter uma mulher desejável, bela e intelectualmente capaz. Talvez acabasse por assumir, sem arrogâncias ou sobrancerias que era mais inteligente que os demais, ou, não o sendo verdadeiramente, acabasse por valorizar aquilo que pensava e sentia e percebesse que vale sempre a pena tentar. Que não há outro propósito na vida que não o de tentar a felicidade e um plano de paz e harmonia em redor de cada um. Mas Petúlia não tinha pressa. Talvez devesse ter.

Se Petúlia soubesse que aquele carro desgovernado a colheria cinco minutos apenas após ter descido do autocarro que a levaria à paz do seu recanto privado, após mais um dia de turnos consecutivos, talvez tivesse continuado a sorrir para aquele estranho que a olhava, não com trejeitos de engate, mas com a vergonha assustada da breve e já incompreendida paixão quando esta resolve instalar-se entre desconhecidos. Talvez tivesse ido até ao fim da linha. Esperado que ele metesse conversa. Teria então, talvez, ousado trocar de número de telefone, ou arriscado um café na pastelaria do terminal rodoviário. Teriam podido conversar até serem expulsos do local. Caminhariam, então, por aquela larga avenida, apinhada de ciclovias e jardins por onde atletas amadores exercitariam os corpos, libertando-os da pressão do quotidiano. Entrariam num qualquer autocarro que os levasse, depois, de volta a sítios mais familiares. Num ímpeto inaudito, poderia tê-lo convidado a entrar em sua casa, para tomar um último café, ou beberem um copo de vinho, enquanto deixariam os seus corpos falar daquelas coisas que só os corpos apaixonados conhecem e dominam. Deixar-se-iam dormir. Acordariam estremunhados e embaraçados. Sentindo-se mal e desconfortáveis por estarem pela primeira vez na presença um do outro após as primeiras horas de sono em conjunto. Perceberiam, de imediato, que não havia espaço para vergonhas ou constrangimentos, que os seus sorrisos e os seus corpos voltavam a encontrar-se e a entender-se como se sempre tivessem convivido. Aceitariam essa harmonia e à-vontade com uma inexplicável felicidade. Tomariam o primeiro de incontáveis pequenos-almoços em conjunto. Ririam sem motivo e sorririam, mesmo quando já se encontrassem sozinhos, de tudo aquilo que acabavam de começar a construir. Um amor. Um grande amor. O amor das suas vidas. Aquele. O tal!

By Federica Erra

Se Petúlia soubesse, poderia até ter saído naquela mesma paragem, a sua, a de sempre. Mas evitaria aquele lado do passeio, esquivar-se-ia do carro desgovernado, daquele condutor alcoolizado e furioso, que lhe esmagaria o corpo, que lhe aniquilaria a vida. Poderia antes ter optado pelo outro lado da rua, bem mais apinhado, é certo, por isso o evitava sempre, por estar repleto de montras, que mesmo quem por lá passa com pressa e em passo de corrida, como era sempre o seu caso, aproveitava, ainda assim, por espreitar. Era como folhear uma revista de moda em ritmo acelerado, apenas para ficar a saber o que se usava ou até descortinar uma ou outra peça que tanta falta lhe fazia no roupeiro. E mesmo que o mesmo carro desgovernado, guiado por um condutor alcoolizado, acabasse por escolher aquele mesmo passeio, como se guiado pelas pernas altas e sedutoras de Petúlia, o mar de gente serviria de almofada, atenuaria os estragos e, por certo, adiaria a morte de Petúlia. Poderia partir um pulso, as pernas, a bacia ou mesmo fraturar o crânio na queda aparatosa, ou pisada por outros corpos atirados contra o seu violentamente por aquele carro sem norte… Umas semanas no hospital, durante as quais recordaria o sorriso apaixonado daquele estranho no autocarro, e, quem sabe, não ganharia coragem para tornar a sorrir-lhe de volta, e em breve voltaria a estar boa. Pronta para o romance e a aventura. Ou seria apenas para o desejo e outros problemas? Quem sabe?

Se Petúlia soubesse… Mas Petúlia não soube.

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