Ela era um enigma. Tão absoluto e insondável que o enlouquecia. Sobre ela, ele imaginava todo um universo de fantasias e possibilidades. Sobre ela, podia criar e elaborar, inventar, subtrair e sublinhar aquilo que quisesse. Moldá-la ao sabor da sua fantasia, do seu desejo. Ela era um contentor vazio. Um enorme espaço amplo em toda a sua volumetria. Enorme, mas oco de realidades, pelo que podia preenchê-lo, completá-lo, torneá-lo a seu bel-prazer. Ela era a tábua rasa do seu romantismo, da sua mais inconfessável loucura. Sobre ela, todos os caprichos eram reais e permitidos, pois que não se lhes assistia a menor veracidade. Não havia conteúdo que o negasse. Não sabia como ela conseguia ser tão completa e estranhamente secreta, indetetável. Sem rasto. Sem pista que indiciasse o seu trajeto. A sua consistência. A sua vida. A sua própria existência. Quer dizer, ele não duvidava de que ela era. De que existia e era uma mulher real. Ela existia, sim. Era um ser vivo e não uma qualquer fabulação da sua mente. Não era um sonho. Um texto criativo. Nada disso. Ela era de carne e osso. De boa carne e muito bom osso, atrevia-se a dizer, sem querer ser grosseiro ou meramente brejeiro.
Tinham-se conhecido numa festa. Tinha-a visto. Ouvido e até tocado. Tinham estado juntos na mesma dimensão física, social e afetiva, em casa de amigos comuns. Numa festa. Num ato mundano. Há lá coisa mais real do que tudo isto? Viu-a logo que entrou. Ela era o centro da espiral que centrifugava a sua atenção. O ímã que forçava o seu olhar e atraía os seus passos. Não conseguia contrariar aquela ventania que o empurrava sem tréguas ou piedade. A mão do destino, acreditou ele. Sentiu-se a traça que se deixa guiar, às cegas, para a quente luz, agarrada à qual, mais cedo ou mais tarde, acabará por morrer. Ainda assim, tal como a traça, deu a mão àquele raio de luz que o conduzia até ela. Ela brilhava. Achou que tudo se devia a um vestido curto cheio de lantejoulas que ela usava. Era uma festa de fim de ano, brilhos e sofisticação não eram a exceção, quase antes, um requisito de bom gosto e requinte. Por não ser do género fashionista, achou depois que tudo se deveria à quantidade de pernas perfeitas que ela exibia. Percebeu também que não era o único inebriado com aquele perfeito conjunto de fémur e tíbia. Achou mesmo que havia curiosidades bem mais clínicas do que a sua, no que toca ao fascínio que aquela mulher exercia no sexo oposto, e não apenas. Mais tarde, percebeu que, não obstante os enormes atributos físicos, algo mais o atraía para aquela mulher.
Ela estava acompanhada. Temeu o pior. Parece que era apenas um ‘amigo’, ainda não o namorado. Tranquilizou-se. De qualquer maneira, aquilo que o puxava não se deteria nem com aros de ouro em torno de dedos anelares, ou papéis assinados sob o olhar desatento de um notário ou funcionário do registo civil, tal a força do magnetismo que o atraía para junto dela. Todo ele era a água redemoinhando em direção ao ralo. Era inevitável. Era a lei da física. Deixou-se ir. Apresentaram-se. De perto, ele percebeu as adoráveis imperfeições que a distância amortecia. Um dente sedutoramente inclinado. Umas sardas sobre o nariz ligeiramente torto. Percebeu também como a distância camuflava toda a intensidade da chama daquela mulher. Ela era quente. Luminosa. Quanto não daria para queimar as suas asas naquela luz amarela e inebriante. Se isso era a morte, suicidar-se-ia sem pestanejar, até porque já devia ter as pestanas queimadas, por essa altura.
Quis saber mais sobre ela. Quem era. O que fazia. Que idade tinha – sim, ele não conseguia andar com mulheres mais velhas, nunca percebeu bem isso, talvez Freud explicasse, ou Jung elucidasse –, pelo que rezava para que fosse mais nova do que ele, um dia, uma hora que fosse, para apaziguar a sua tara. Tinha ido como – e aqui entraram umas aspas voadoras, que os dedos do João fizeram no vazio enquanto lhe dizia tudo aquilo que sabia sobre esta mulher – ‘amiga’ de um irmão da Alex. Alex era a anfitriã da festa. Fez-lhe um interrogatório pegado. Alex, riu.
– Também não consegues tirar os olhos do vestido e estás doido para saber onde ela o comprou? Então, Pedro! Vai lá e pergunta-lhe. Ela é apenas amiga do meu irmão Zé. Ah, e dizem que ela não morde, mas pode ser mentira.
Alex tinha razão. Parecia um adolescente, numa festa da escola. Abordou-a. Zé não se sentiu minimamente melindrado e, mal deu por isso, estavam sozinhos. Ele e ela. Não avançou para um interrogatório desbragado, como era seu plano. Primeiro, por achar indelicado. Não queria entrar no papel pidesco de agente do KGB. Ainda nada disto tinha saído da sua mente e já misturava forças politico-policiais. Seria bom não dizer disparates. Depois, porque, na presença dela, mal conseguia falar. O que era bom, tendo em conta o Precipício dos Disparates, local onde tantas vezes se cai quando ocorrem situações desta natureza. Sentia mesmo que não tinha vocabulário suficiente. Não lhe ocorria, em português minimamente decente e correto, aquilo que deveria dizer. Estupidamente, as palavras surgiam-lhe noutros idiomas. Em inglês e francês e até em espanhol… Estupidificou na presença dela. Dentro daquele halo de luz, a sua mente apagava-se e perceber isso ainda o deixava mais gago e incapaz. Assim, e porque mais vale falarmos do que sabemos, combateu a intimidade-barra-timidez que o agrilhoava, falando daquilo que melhor conhecia, ou achava conhecer: si próprio. Resultou que debitou sobre si tudo aquilo que gostaria de ter ficado a saber sobre ela e bastante mais. Não conseguia parar de falar, receando silêncios ou desinteresses. Talvez se parasse de falar, alguém mais interviesse ou apenas ela lhe virasse as costas, para escapar daquela seca. Temeu que ela o achasse um idiota arrogante. Daqueles que, por acharem que o mundo gira exclusivamente em seu redor, entendem que sobre nada mais vale a pena falar. Mas ela acalmava-o com sorrisos e amabilidades. Com curiosidades e questões a propósito daquilo que ele ia dizendo.
Ela era tão natural e genuína… Graciosa. Sim, era um termo démodé, deveria antes ter dito cool, ou groovie, mas aquilo que ela lhe suscitava era algo mais qualquer coisa do que um simples cool. Ela não era apenas cool ou porreira, em bom português. Ela tinha um charme que seduzia, sem grande propósito. Apenas porque ela era assim. Encantadora. Mais um adjetivo fora de moda, mas aquilo não era um desfile, pelo que achou que podia pensar para si próprio com os adjetivos que muito bem entendesse, mesmo os de estações anteriores. Cada um veste o seu próprio diálogo com aquilo que tem no armário. Céus! Até o pensamento se tornava idiota. Para si, ela era encantadora e graciosa. Aquilo acabou por lhe sair da boca para fora. Agradeceu a média luz da sala, pois receou que, pela primeira vez na vida, acabasse corado frente a uma mulher que tentava seduzir. Era muito embaraçoso. Perguntou-lhe se queria mais uma bebida. Se queria ir com ele até à varanda, depois ao jardim. Imparável, perante as sucessivas anuências daquela estranha de toda a vida, beijou-a. Ela aceitou o beijo. Aceitou a troca de números de telefone. Aceitou ficar de mão dada com ele, olhos nos olhos, enquanto os outros gritavam a contagem decrescente. Era Ano Novo. Era vida nova. Era amor novo, pensava ele.
Ela não saiu com ele. Tinha de levar o Zé a casa. Ela não bebia. Estava de chauffeur. Ver-se-iam mais tarde. Ele não duvidava. Passou a restante madrugada a verificar se tinha o número dela no telemóvel. Só olhar para aquela sequência numérica, acalmava-o. Fazia-o sentir-se próximo dela. Já faziam parte do mundo um do outro. O dia ainda não tinha nascido e já ele estava a ligar-lhe. O número estava indisponível. Não se alarmou. Ela tinha desligado o telefone, para descansar sem interrupções. Ou tinha ficado sem rede. Ou sem bateria. Teria dormido em casa do Zé?!? Acalmou-se. Deitou-se. Dormiu. Mas teve o cuidado de deixar o telemóvel a carregar e bem ao alcance da mão. No chão, onde lhe chegaria num segundo, sem o risco de derrubar o candeeiro da mesa de cabeceira. Sem obstáculos de permeio, caso ela ligasse.
Logo que acordou, dedicou-se a tentar descobrir tudo aquilo que conseguisse sobre ela. O Google dir-lhe-ia tudo aquilo que ele não tinha tido capacidade de saber em primeira mão. Colocou o nome dela em todas as buscas que lhe ocorreram. Nada. Não estava no Facebook. Não tinha Instagram. Não tinha conta no Linkedin. Não existia no Pinterest. Não se deliciava com a arte do Artstack. Arriscou o Tindle e vasculhou o Twitter. Ela não existia. Quer dizer. Não existia para si. Existiria seguramente num universo bem encriptado, com nomes que ele não conhecia. Procurou através das contas do Zé e da Alex. Nada. Quando achou que seriam horas decentes para lhe ligar, tentou de novo a sorte. Caixa de correio. Enviou uma SMS. E uma segunda, para o caso de a primeira não ter encontrado o ‘endereço’ certo. Ela respondeu apenas no dia seguinte. Estava no Cairo. Em trabalho. Quando regressasse, ligar-lhe-ia. No Cairo? Em trabalho? Mas qual trabalho? Imaginou que ela seria, afinal, uma call girl. Teria uma vida dupla. Sim, era isso. Não. Era espia. Tinha de viver sob um manto que ocultasse os seus passos e até a sua identidade, o próprio rosto. Agia com cautelas redobradas, rodeada de firewalls, sofisticados sistemas de segurança e códigos inultrapassáveis, equiparados apenas aos da NASA. Devia andar a ver demasiados policiais. Uma mulher tão sedutora não podia ser espia. Jamais passaria despercebida. Em que missões enviariam a sua Mata Hari? Teria de seduzir príncipes árabes e mafiosos do armamento nuclear? Pareceu-lhe, afinal, que até fazia sentido. Todos pensariam como ele, que sendo tão vistosa, não poderia ser espia, o que lhe permitiria, a ela, espiar calmamente.
Não podia embrenhar-se mais naqueles pensamentos labirínticos, até porque não tinha paciência ou conhecimentos suficientes para obter resultados lógicos, o que fazia com que apenas inventasse cenários. Ainda que não sendo grandes amigos, ligou ao Zé. Para saber mais sobre ela.
– Vais desculpar-me, Pedro, mas estou com uma tremenda ressaca. Podemos falar mais tarde? Nem sei se percebo o que pretendes. Não tens o número dela?
Explicou-se. Sim, tinha o número, mas ela NÃO EXISTIA. A internet não a identificava. Não a encontrava. Era uma não-pessoa. Não tinha existência no mundo virtual, logo, não era bem uma pessoa. Não sabia que amigos tinha, quantos eram. Com quem se relacionava. Por onde andava. Que conexões tinha. Onde tinha estudado. Onde tinha trabalhado. Quem eram os ex. Que gostos e preferências tinha. Em que lojas comprava online. O que gostava de comer. O que tinha feito hoje de manhã… Se tinha cão ou gato. Quem segue? É seguida por quem? Não havia fotos nem qualquer tipo de referência e isso, hoje, é impossível. Precisava que ele lhe dissesse tudo aquilo que sabia sobre ela.
– Não a encontras na net? – Zé compreendia finalmente a dimensão do assunto.
– Como não a encontras? Procuraste mal. Escreveste mal o nome… Estou a googlá-la, espera aí.
Esperaram, de facto. Mas esperaram em vão. O que o Google não sabia, não existia. Adensou-se a intriga e multiplicaram-se todas as hipóteses mais rocambolescas, quando Zé referiu que, verdade das verdades, apenas comunicava com ela pessoalmente, sempre que calhava encontrarem-se. Por norma, na pastelaria onde ambos costumavam tomar o pequeno-almoço, perto da casa de ambos, onde, de resto, se conheceram, um dia em que, por falta de mesa e de tempo para aguardar por uma, lhe perguntou se podia partilhar a mesa dela. Era encantadora. Culta. Divertida. Mente aberta para o mundo. Cheia de originalidades. Uma delas é que não raras vezes se vestia de uma só cor na íntegra. Amarelo. Laranja. Vermelho. Verde. E abusava de meias às riscas. Parecia saída de uma página da BD. Costumavam agendar encontros pessoalmente e também era raro ela atender o telefone. Dizia, em sua defesa, ou como justificação, ou, hipótese louca, apenas por ser a pura verdade, que não gostava de falar ao telefone. Diz que o telefone não tem olhos. Zé ter-lhe-á replicado que tem, sim. Há videochamadas e Skype. Ela riu-se. Acrescentou que até podia ceder nesse ponto, mas que lhe faltava o cheiro e o tato. Precisa de pele, ou algo do género. Também terá falado em alma.
– Se calhar é holística, ou adepta de uma daquelas seitas que julgam que as máquinas retiram a alma dos humanos e que, por essa razão, não se deixam fotografar ou representar de qualquer outra forma.
– Será apenas uma infoexcluída? Retrógrada?
As dúvidas de Pedro não encontraram eco na lógica de Zé.
– Não. É demasiado inteligente para se excluir da sua própria contemporaneidade. E é intensa. Quando nos fixa nos olhos, parece um scanner a perscrutar-nos. Até arrepia. Não. Não pode ser apenas isso.
– Mas, onde trabalha? O que faz? Porque não existe em qualquer base de dados do planeta?
– É engenheira. Isso sei. Também sei que nada todas as manhãs bem cedo, antes mesmo de tomar o pequeno-almoço. Tem família em Londres. Um pai militar. Filha única… De útil não te sei dizer mais nada.
– Como se chama o pai dela?
– Sei lá? Também não sei o nome do teu pai, quer dizer…!?
– Certo, certo. Desculpa o interrogatório, é que, gostava de voltar a vê-la, mas começo a achar que terá demasiados segredos.
– Sem dúvida! Uma pessoa que não publica, amiúde, em qualquer rede, aquilo que almoçou, o sítio onde está, fotos dos locais que visita, com quem está… Desculpa a sinceridade, mas, há algo de estranho nisso tudo. O mais certo é andar fugida. Ter cometido um crime, ou ter sido vítima de qualquer tipo de abuso ou violência e andar escondida dos agressores. Ter uma nova identidade.
Despediram-se. Pedro, a quem ainda não tinha ocorrido tal hipótese, ficou a matutar nas palavras de Zé. Era bem possível que o seu ‘anonimato’ virtual se devesse a um passado tumultuoso. A um marido violento. Droga. Uma adolescência de criminalidade. Ele não sabia como preencher aquela folha em branco, mas criatividade não lhe faltava. Ligou-lhe novamente. Ela atendeu. Ouvia-a mal. Ela disse-lhe que desligasse, que lhe ligaria de uma rede fixa, talvez obtivessem melhor ligação. De uma rede fixa? Quem tem rede fixa? O hotel, respondeu ela. Ele acalmou-se. Claro, claro. Ela ia ligar-lhe do hotel. Que estúpido. Porém, logo que desligou achou-se burro. Era apenas um truque para lhe desligar o telefone. Deveria estar a perseguir um traficante de seres humanos, de arma em punho… O telemóvel vibrou. Era ela. Já devia ter matado o bandido, pensou, entre o divertido e o assustado. Não perdeu muito tempo. Pediu-lhe para que se conectassem via qualquer coisa, para não estarem apenas dependentes de redes móveis. Ela, muito simplesmente, disse-lhe que estaria de volta dentro de dois dias, que estava a concluir um projeto profissional. Que estava tudo bem encaminhado pelo que, o mais tardar no fim de semana já estaria de volta. Parecia fugir do assunto, como se tivesse tudo isso e mais um par de novas tecnologias de ponta, apenas não o quisesse partilhar com ele.
– Mas não tens Facebook? WhatsApp? Skype?
– Não, mas podemos encontrar-nos logo que eu regresse, se quiseres. Pe-sso-al-men-te. É assim tão mau?
– Não, claro que não, mas isso é apenas daqui a dois dias… Desculpa, mas, se te maço, se não queres ver-me… compreendo…
– Desculpa – disse ela –, estão a bater-me à porta, tenho um jantar formal com clientes. Trata-se de um megaprojeto. Tenho de ir, pois preciso ainda de comprar um vestido e as lojas estão quase a fechar. Liga-me no sábado, se quiseres, para combinarmos qualquer coisa.
Ligar-lhe no sábado? Para levar uma facada? Para que ela o pusesse sob escuta? Para acabar envolvido com gente estranha do submundo de uma qualquer atividade clandestina? Para ser dopado e vendido ao desbarato, às peças, se muito bem calhasse? Para quê, então? Uma mulher que não existe, ou uma que existe, mas que precisa de ‘ir’ fisicamente a uma loja de rua para comprar um vestido, não cumpre o seu ideal de mulher. Mas a imagem dela, a sua voz sedutora, o seu corpo, as pernas, a luz que emitia, as endorfinas que tudo aquilo lhe fornecia em doses cavalares… Estava doido por ela.
Claro que ligou. Claro que marcaram encontro. Ele muito observador, quase receoso e, desde logo, meio desconfiado – ela tinha escolhido um local onde quase não havia rede. Perscrutando cada movimento dela. Cada palavra que dizia. Tentou não parecer maníaco, mas bombardeou-a com um sem fim de perguntas. De onde era? Do Alentejo. De que cidade? De Évora. Tinha irmãos? Não. (Batia certo com o que o Zé já lhe tinha dito). Onde tinha estudado? No Técnico, em Lisboa, de onde não voltou a sair, e também em Londres, onde voltava amiúde, até porque tinha lá família. Gostava de cinema e de teatro. De música e de ler. Mas lia em papel. Até mesmo jornais, os quais levava a saírem-lhe do saco quando se encontraram, para enorme admiração dele. O lixo, a sujidade que o papel de jornal não deixa nos dedos. O telefone dela toca. Horrorizado, Pedro percebe que era um modelo dinossáurico, de há mais de sete anos. Um simples telefone e não um moderno smartphone. Logo ela, engenheira. Não precisaria de algo mais elaborado?
– É apenas para fazer e receber chamadas. Não necessito de mais. Para tudo o resto, tenho o meu supercomputador. Sem esse, sim, morreria.
O olhar dele ia esmorecendo. A luz dela perdendo a densidade. Estar com ela era como estar com a sua mãe. Não postava fotos, não consultava as redes. Não entendia o mundo dele. No final do dia, Pedro já quase nem pensava nas pernas dela. Quase. Era uma mulher extraordinária, mas não eram do mesmo século. Tudo nela era vintage. Isso até pode ter piada numa peça de design ou de roupa, coisas a que nos agarramos afetivamente e que servem ainda para definir um estilo de vida, mas ele não queria um adereço de outras épocas, queria uma mulher atual, com quem pudesse partilhar virtualidades, a autoria de um blog cheio de disparates e frissons tecnológicos. Que aguardasse, como ele, a próxima next big thing.
À noite, debruçada sob o computador, ela recordou divertida aquele dia surreal, verdadeiro episódio no limiar da realidade. Congratulava-se por não se ter apaixonado por aquele idiota. O tipo era pi-des-co. Verdadeiro psicopata. Sempre que lhe era permitido falar era para ela responder a minuciosos inquéritos sem sentido. Ele, de olhos raiados de sangue, com o rosto azul, iluminado constantemente pela luz do telefone, o qual consultava com esgares de dependência, para mais uma dose de posts e de likes. Chegava a mostrar-lhe vídeos disparatados de coisas sem nexo, mas que tinham biliões de visualizações e de que toda a agente falava. Como é que ela nunca tinha ouvido falar naquilo?, como nunca tinha visto aquele cão a andar de bicicleta?, e aquele pudim de espuma? E aquele saco plástico a voar… Indignava-se em escândalos de marido traído. Como poderia ela sobreviver sem conexão com o mundo? Seria ela real? Existiria ela de facto? Seria o protótipo de uma criação biónica? O que tinha para esconder? Perguntava-lhe, a cada cinco segundos, como era possível que ela vivesse sem redes sociais?
Quando o nível de insanidade daquele diálogo, em que um indivíduo interessado numa mulher se centra exclusivamente em saber a razão porque ela não se excita com o virtual das redes ditas sociais, em vez de a cortejar com todas as suas armas, ela quase acreditou que ele tinha fugido de um manicómio. Ou que surgiria alguém para o levar preso, por assassínios em série de mulheres não rastreáveis na net… Ao cabo de várias tentativas, para lhe fazer ver que nem todas as pessoas são iguais e que ela não se entusiasmava nem tinha tempo para alimentar amizades em chats ou com posts, que jamais trocaria rios de mensagens por um café cara a cara com os amigos, que o anonimato era a nova fama e que valia mais do que ouro, a gota de água entornou um enorme depósito de incredulidade, quando ele insistiu para que ela fosse sincera. Que lhe dissesse a verdade. Ela cansou-se. Ainda não tinha feito outra coisa do que dizer a verdade e cansar-se. Levantou-se lentamente. Pagou a conta, que ele ainda tentava saldar, sem sucesso, através do telemóvel, o qual lhe solicitava uma password que ele parecia ter esquecido, ou apagado, e respondeu-lhe:
– Como consigo? Vivendo no mundo real, no planeta dos humanos, onde não precisamos de login. Sabes para que necessitamos de rede neste outro universo paralelo? Para pescar idiotas! Quanto a ti, um grande logout, querido e não te esqueças de atualizar os teus plugins.
Dizem que Pedro, ainda hoje recorda as pernas dela e que mantém vivo o ritual de a procurar na internet. Mas a sua rede vem sempre vazia, ou, quando muito, cheia de idiotas.
Sobre ela, nada se sabe. Mas Zé jura que a viu matar um homem na Rua Cor de Rosa, com uma micro pistola silenciosa. Que a viu, depois, fugir, enquanto falava com o relógio de pulso. Que três homens, com gabardinas à la Bogart, iam no seu encalço – frisou este pormenor a Pedro, afinal, ainda que em número ridículo, ela sempre tinha seguidores. Que se perderam nas sombras da noite. Que ela continua com a pernas mais fabulosas do planeta. Que um helicóptero acompanhava toda a cena. E que no dia seguinte, nem a CMTV referiu o caso. Há quem acredite. Mas não vem no Google.
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