Homem de constituição aparentemente frágil, Gonçalo Raso, de apelido e de patente, soldado na Guarda Nacional Republicana com pé de chumbo para lides demasiado físicas, vivia em conformidade com a imagem que transmitia: meio titubeante e pouco confiante dos seus méritos e capacidades. Era, não obstante, e até de modo paradoxal, homem ambicioso que colocava alta a fasquia dos seus sonhos. Uma espécie de Gata Borralheira da GNR. Passava os dias, por assim dizer, a esfregar tachos e a desencardir o chão, mas jamais deixou de sonhar com o seu príncipe encantado. Neste caso, princesa. Muito embora não fosse dado a preconceitos de qualquer tipo, a sua natureza era francamente, diríamos mesmo em mais de 60% dos casos, muito heterossexual. Por isso, cabo Raso sempre engraçara mais com as jovens recrutas do que com os mancebos, com os quais se divertia apenas nas paródias de final de dia.

Não se tome já como garantido que falamos de um pacóvio, nem tampouco de um ‘malandro’ com mestrado na sacanice da vida nas ruas. Cabo Raso era quase um tipo comum. Comum em tudo. Fazia parte da normatividade das coisas. Já não cuspia para o chão, como gerações anteriores, achando, com isso, que cumpria as suas obrigações cívicas mais exigentes, muito embora nunca tivesse entrado numa secção de voto e só tivesse descoberto exatamente o que eram urnas eleitorais certa vez, quando as forças policiais foram chamadas a intervir num daqueles casos, já clássicos, de boicote ao voto numa qualquer povoação a chamar atenções para uma reivindicação local. Não sendo completamente antiquado, Cabo Raso também não era contemporâneo. Não sendo totalmente boçal, também não era particularmente expedito ou esclarecido. Na verdade, corrigimos a informação anterior, Gonçalo Raso, cabo na GNR estava uns quantos furos abaixo do comum. Digamos antes que era um tipo banal, assim, evitamos médias rotulares e conseguimos um desafogado patamar de mediocridade que não compromete, mas também não envergonha por aí além. Digamos que estava no limiar inferior daquilo que são os padrões de formação da nova imagem das forças policiais. Não bebia em serviço e produzia duas a três frases consecutivas sem graves erros gramaticais ou de sintaxe, por exemplo.

Sendo um tipo ambicioso, Raso não se contentava com o parco vencimento que o Estado estipula como adequado a quem arrisca a própria vida. Não que a sua vida corresse demasiados perigos na divisão de trânsito, à qual pertencia. Claro que já tinha participado numa ou outra perseguição em autoestrada e é sabido que tentar autuar um condutor alcoolizado nem sempre é pacífico, menos ainda um sóbrio com maus fígados, mas não se pode dizer que desarmadilhasse bombas a cada dois dias, pelo que a vidinha, essa, estava relativamente segura. Apenas não era a vidinha que desejava. Para si, tinha imaginado um sem fim de regalias: uma casa na Reboleira, uma tenda permanente no Parque de Campismo de Aljezur, um carro que pegasse à primeira, ou segunda que fosse… Enfim, uns quantos mínimos que tudo fazia para obter. Por isso avançara para a clandestinidade de um segundo trabalho. Ainda que sem recibo e em total secretismo, Raso, a partir da 22h tornava-se super-herói da noite, como segurança ou porteiro de clubes noturnos. Estar à porta, é bom de ver, não permite o maior dos segredos, mas um bom rol de cabeleiras, óculos escuros com fartura – graças a uns quantos feirantes de contrafação, que o mimavam em troca de vistas largas da sua parte – um bigode às quintas e sextas e uma bela barba hipster-montanheira durante os fins de semana e já aguentava o disfarce há largos meses, para gáudio do seu crescente pé de meia, por esta altura, já quase um pé de bota.

Se no plano financeiro, a coisa se encaminhava – à conta, é certo, do esquema ilegal de uma segunda atividade, de certa forma punível com os ditames legais de exclusividade da função pública, e de incompatibilidade de atividades –, a vida amorosa andava mais difícil de satisfazer. Não que cabo Raso fosse difícil de contentar, achava mesmo que já andava a baixar os seus índices de qualidade, o que parecia acontecer é que Gonçalo Raso, não obstante o poder afrodisíaco de qualquer uma das suas fardas, a diurna e a noturna, parecia não encantar o sexo oposto. Daí ter começado a virar as suas atenções para o sexo… no posto. Uma brincadeira fonética que também não parecia estar a granjear-lhe nem muito sucesso nem a melhor das camaradagens junto das colegas. Precisamente quando os seus sempre elevados níveis de otimismo e automotivação começavam a dar de si e eram já visíveis algumas frestas, denunciadas por um certo desmazelo – só já engraxava as botas uma vez por dia – Raso dá de caras com a mulher da sua vida. Não tinha dúvidas! Era ela. Reconheceu-a como se ela fizesse parte do casting divino da sua vida. Na verdade, em termos metafísicos, esta era uma das suas efabulações mais consistentes. Todos elegíamos, antes de nascer, aqueles com quem nos cruzaríamos a cada encarnação, determinando-se com esses indivíduos marcos-chave, momentos cruciais da nossa existência. Bastaria, depois, seguir um alinhavo de guião que uniria esses pontos, tal e qual como nos livros de figuras infantis, cujo contorno final só é percetível quando todos os números ou pontos estiverem interligados. Foi, portanto, sem surpresas desmedidas que convidou para jantar a mulher que acabava de atropelar uma família de turistas numa passadeira em Lisboa, mesmo antes de a autuar.

Em choque, devido ao traumático episódio que acabava de protagonizar, e completamente crente de que o convite resultava de uma mente perturbada com claro enraizamento num qualquer ramo da parafilia, a mulher desmaiou e logo que acordou, ainda na ambulância do INEM, rogou para que ninguém a deixasse a sós com o agente mais novo dos dois que tinham acorrido ao acidente, por sorte sem feridos graves, exceto o ataque de pânico da própria condutora. Atordoado, com o golpe de Cupido, e com a ordem superior para não chegar perto da arguida, Raso quase enlouqueceu. Pois estava para lá de seguro de que aquela era a mulher da sua vida. Aquela com quem partilharia o seu pé de galocha, sim, porque entre casa e não casa, asseguraria um substancial aumento dos seus rendimentos, mais ainda agora, que também ciceronizava as danças de salão do clube desportivo da sua zona de residência, cujo nome não revelaremos, a bem do anonimato do jovem cabo e da má fama que o mesmo tinha junto das dançarinas, a quem partia pés a torto e a direito com a sua falta de jeito para as lides dançantes, muito embora Raso rodopiasse como se não fosse todo ele feito de uma única peça de chumbo maciço cegamente obedecedora das leis da gravidade mais graves do planeta Terra. Tentou, em vão, saber datas e horas das sessões de tribunal da arguida da sua vida, mas não teve expediente para ludibriar os esquemas montados para o impedir de tal propósito, o qual, ingenuamente, expressou verbalmente a quem quis ouvir. Parece que todos quiseram e Gonçalo Raso não voltou a ver a mulher do atropelamento na baixa lisboeta. Chegou a montar vigílias aleatórias junto do Campus da Justiça, mas aborrecia-se com facilidade e o café que escolhera não lhe permitia o melhor ângulo, como idiotamente não percebeu, mas o café ali era tão mais saboroso e… barato, que não elegeu outro para as suas operações detetivescas.

Arrasado, Raso lá se foi arrastando pelo seu quotidiano de dias tristonhos feito, vivido entre os turnos na Brigada de Trânsito, a segurança noturna em bares e clubes da capital, e aquela endiabrada outra atividade no salão de danças, aos fins de semana. O destino, porém, lá diz o ditado com zero erros gramaticais, não dorme. Parece até que nem a sesta, pois foi precisamente numa amena tarde de sábado que Raso quase perdeu os sentidos de tanta emoção ao ver entrar, com o seu quê de sex appeal e muita lantejoula a acender e a apagar, o ser vivo de todo o seu desejo, para um serão dançante. Irreconhecível, sob o disfarce eleito para essa tarde, careca e pera, Raso avança como um gracioso chaimite em direção à visada, tomando-a de assalto para um entusiástico tango.

– Com que então, é bailarina! Vou levá-la diretamente para as ruas de Havana – sussurrou-lhe ele em modo arrebatador.

– Não quererá dizer Buenos Aires? – retorquiu ela entre o divertido e o assustado, já que nada mete mais medo do que a ignorância pura, como é sabido.

– Não, minha querida, o tango que me vai nas veias é todo ele caribenho! O argentino já está muito visto.

Entre o tranquilo e o meio divertido, a mulher lá assentiu. Claro que tudo acabou com a primeira falange proximal partida e um metatarso estalado. Azar dos azares, um em cada pé. Meses de convalescença ou, como se lhe referiu Gonçalo Raso, para escândalo da sua parceira de dança:

– Meses de CubaLescença, pois não te esqueças de que estávamos em plena Havana quando o diabo, ciumento, se colocou entre nós, mais uma vez.

Sem medir as palavras, ou medindo-as da mesma forma que mede os seus passos de dança, Raso entalava-se funestamente.

– Outra vez?

Abreviando toda a idiotice de esquemas retóricos de que o cabo se serviu a fim de descalçar aquela bota pesada e apertada, mesmo para quem não sofre de joanetes, Raso, demasiado banal para ser bem-sucedido em enredos e mentiras, acabou por confessar ser quem era, o GNR do acidente. De forma atabalhoada abriu-lhe o coração, falou-lhe do guião do seu destino, onde ela era personagem principal, da certeza de que aquilo era amor à primeira vista e que ela não tardaria a compreender que também a vida dela dependia daquele amor… Ou seja, começou mal, foi melhorando e acabou pior ainda, quando raso se prontificou para, daí em diante e até ao fim dos seus dias, não permitir mais que ela não fizesse parte da sua vida. Que a seguiria para todo o lado. A pobre coitada, apoiada em duas canadianas, no corredor de uma urgência hospitalar, considerou a hipótese de ir a uma bruxa, entregar-se a uma qualquer mezinha que desenganasse o homem ou mesmo emigrar para o Burquina Faso. Havia um mundo de possibilidades à sua frente, exceto reencontrar aquele psicopata.

Os estragos clínicos em ambos os seus pés, não tardou a sabê-lo, pela voz sensual de um médico de cair para o lado, eram inúmeros. Entre fraturas várias, entorses e luxações, percebeu que não voltaria a andar pelo próprio pé, senão dentro de uns bons seis meses. Ou seja, estava completamente dependente. Ponderou a possibilidade de ficar internada, sob o olhar vigilante daquele deus da medicina, mas, sem seguro que cobrisse aquele tipo de acidente, percebeu que não poderia fazê-lo. Lembrou-se ainda de que já não poderia concorrer ao concurso de dança do final do ano e amaldiçoou aquele bandalho que a tinha trucidado, praticamente mutilado. Porém… Já que ele estava tão disponível para a servir, porque não deixá-lo fazer precisamente isso? Entre cirurgias, fisioterapia, compras rotineiras do dia a dia… Ela iria precisar de um pajem. Um soldadinho de chumbo que cumprisse ordens sem se questionar. Se era isso que ele desejava, seria isso mesmo que iria ter, e em doses massivas. Além de que pouparia um ror em táxis e não teria de incomodar os amigos ou familiares para serem suas babás durante todos os meses de que necessitasse de ajuda. Claro que isso encorajaria o homem, mas ela trataria de colocar tudo ao nível profissional: contratá-lo-ia. Isso mesmo. Uma pequena remuneração colocaria tudo em perspetiva. Ele seria seu empregado, não seu pretendente.

Raso não entendeu nenhuma destas nuances e anuiu sem pestanejar. Como não era totalmente desprovido de cérebro, entendeu que não estava tudo ganho, mas respirou fundo ao saber que tinha uns quantos meses para seduzir a sua amada. Seria bem-sucedido. Ela veria só, quão especial ele era. Bom, especial, ela já tinha entendido, apenas não do ponto de vista que Raso desejava. Durante cinco meses, enquanto raso tentava conquistar Goreti – é verdade, ela chama-se Goreti –, Goreti tudo fazia para seduzir o ortopedista. A ter de somar o seu papel de assistente pessoal de Goreti a todos os seus afazeres, mais ainda agora que se sentia pressionado para adquirir a sua casa de sonho na Reboleira, pois a sua bailarina podia não tardar a querer ir viver com ele – se bem que a moradia dela em Oeiras era bastante agradável, como desde logo notou raso. Mas isso foi logo no início, agora, Raso andava cansado. Tão cansado que perdeu parte do entusiasmo inicial, mais ainda quando começou a perceber que a bailarina era osso duro de roer, mas não de partir, lembrou-se brincando com o bendito azar que o tinha introduzido de supetão na vida da sua querida Goreti (‘E que nome tão bonito!’, pensava).

Com os habituais e praticamente agendados incêndios de verão, Raso, que também era voluntário nos soldados da paz lá da sua zona – em nome do seu enorme altruísmo e também como forma de aumentar a probabilidade de encontrar a mulher da sua vida e perder de vez o epíteto de pé de chumbo para o que quer que fosse, e ainda acalentando a esperança máxima de poder vir a ser o eleito para o mês de agosto de um qualquer calendário solidário – lá teve Raso de deixar os trabalhos extra e, delicadamente, explicar a Goreti que estaria ausente até que o País precisasse dele. Um discurso presenciado pelo ortopedista e que, de tão pateta e heroico, a ambos sensibilizou. Entusiasmou particularmente João Serôdio, o médico, encantado com a bravura dos mirrados bíceps que adivinhava sob a farda do cabo Raso, que, de tão slim fit,  quase não conseguia conter tanto músculo. Pelo menos, assim pareceu a Serôdio. Aquela triangulação desfez-se logo que Raso deu às de vila Diogo, ou à cidade Diogo, pois já percebemos como Raso é dado à ambição. De tal forma que, nos nefastos incêndios desse verão, não tardou a tornar-se herói nacional, ao salvar tudo o que encontrou pela frente a precisar ou não de salvação, fosse humano, ser vivo ou uma cadeira de estimação. Ia tudo a eito, sempre perdia menos tempo em crivos, seleções e triagens de perigosidade, e tudo isto sem um beliscão, queimadura ou intoxicação. Cabo Raso, guarda e bombeiro voluntário, homem de bravura inigualável, abertura de telejornais, capa de revista, o homem mais falado do país. Ele era grande. Entre a simplicidade do que dizia e a dimensão dos seus feitos, criou-se a imagem de um cidadão comum agigantado perante a dimensão da tragédia. Não se falava de outra coisa.

 

Foi promovido nos bombeiros e foi promovido na GNR. Novos postos e um deslumbramento que não tinha previsto no guião da sua vida, no oráculo do seu destino. Inchou, redimensionou-se e, ao regressar à rotina diária, percebeu que já não cabia nela. Além disso, tinha visto com uma certa amargura, típica dos forretas, como o seu depósito a prazo tinha sido saqueado com o muito que dedicara a Goreti. Pelo que, sem surpresas cardíacas, no dilatado peito de Raso, já não cabo, instalou-se a certeza de que nada mais havia entre os dois. A mulher achou que finalmente respiraria de alívio, ao ver pelas costas aquele tarado. Mas, só então reparou, eram umas belas costas. Não ficaria mal servida de todo. E se… Nem teve tempo de concluir. Serôdio já se tinha posto a caminho, investindo charme e atenções no militar mais desejado do país. Raso entendeu que um médico sempre era um médico, seria uma simpática ascensão social para ele, que já estava a chegar aos píncaros da mesma, e ainda que do género errado, o ortopedista era até bastante bem-apessoado. Juntos conseguiriam, sem grande esforço, pagar a casa na Reboleira em três tempos, ou coisa que o valha. Acertaram definitivamente agulhas, por assim dizer, que nenhum dos dois era dado a questões ferroviárias, quando sobre a mesa surge o mais incrível dos planos: uma clínica-ginásio-tattoo shop-salão de dança. Uma espécie de tudo em um. Juntando a expertise de ambos, até ossos partidos teriam solução naquele novo espaço do trend e do lifestyle. Raso não entendia metade do palavreado do sócio/amante, mas o amor também é isso mesmo, certo? Não entender tudo. E no final, ninguém é perfeito!

Moral da história: Nem sempre corremos atrás das mesmas coisas. Importante, pelo caminho, é deixarmo-nos guiar por alguns sonhos e outras tantas surpresas.

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