Cozinhar é uma arte. Como tal, e à semelhança de toda e qualquer arte, ensina-nos uma imensidão de coisas, ou molhos de coisas – já que estamos na cozinha – de que nem n os apercebemos naquele exato momento em que escamamos ou suamos ou o que quer que seja que estejamos a fazer. No momento, apenas o fazemos. Mais tarde, surgem as revelações. Assim, tomando cada receita como uma aula de vida e partindo do generoso, nobre e apaixonante axioma de que cozinhar é dar amor, hoje dedicamo-nos a essa esquecida e irritante figura de estilo que é o pleonasmo ou tautologia, ou, mais simplesmente, a redundância. Mergulhemos nela de cabeça, neste caso, com a cabeça do camarão. Mais do que uma, preferencialmente, já que estamos com a mão na massa, que o resultado seja visível e até, vamos lá sonhar um pouco mais alto, ou em profundidade, que seja mesmo comestível.
A receita brinda todos aqueles que comeram camarão na véspera e, com receio do cheiro que as cascas de camarão começarão a emanar do caixote do lixo, decidem reciclar, pronto, pronto, esse delicioso desperdício de marisco. À trituração das cabeças e não necessariamente de todo aquele restolho cor de salmão a atirar para o laranja, se chama, pomposamente, fumet. Tuteie-o da maneira que melhor lhe aprouver. O camarão já morreu, para deleite do seu palato, não vai agora melindrar-se com o nome que dá ao caldo ou sopa que obtém do massacre das suas cabeças há muito decepadas. Aqui, já entrámos no reino gramatical, se bem reparou. Já temos sinónimos para alimentar um regimento: o elitista fumet, o tradicional caldo e a clássica sopa. Ora o que é que esta receita sugere de imediato, que se entorne ainda mais o caldo com a realização de uma sopa de peixe, tendo como base o dito fumet. Resultado, uma substancial sopa de peixe com aromas de camarão e, obviamente, de coentros, pois sopa que seja feita em Portugal e não tenha coentros, ou salsa, ou hortelã é apenas uma: caldo verde (e depende das regiões, pois há muito boa alma que nem este caldo poupa ao verde sobre verde). A esta delícia pode apenas chamar caldo salmão, já que dificilmente obterá outro tom.
Esta receita, além da lição gramatical, do tom soberbo e da vocação para a reciclagem e aproveitamento, ainda é suficientemente democrática para não lhe impingir uma espécie de peixe específica, deixando essa eleição para os caprichos do momento, principalmente para a oferta que tenha no seu frigobar, ou salgadeira onde armazena o peixe. E é isto!
Ingredientes:
– Camarão comido na véspera
– Cabeças resultantes desse mesmo petisco
– Triturador
– Peixe em bom estado de conservação
– Coentros
– Pontaria para acertar no mais conveniente e apetitoso tom de camarão
Tempo de preparação:
É bom de ver que será sempre, no mínimo dos mínimos, de um dia para o outro, já que, num dia come o camarão, no outro faz o fumet e ainda a sopa de peixe, que são uma e a mesma coisa. Lá está, de novo, o pleonasmo de que demos conta, logo no início.
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