A casa cheirava a tabaco, laranja e chocolate. Um tempero que rimava com o ar aparentemente boémio que a primeira impressão lançava sobre quem lá entrava no papel de noviço. Tornava inesperadamente agradável os primeiros segundos, aqueles em que o ar que entrava da porta da rua aberta diluía o cheiro, o qual, após fechada a porta, se tornava demasiado intenso e enjoativo para se pensar em algo mais, senão na vontade de mudar de cena e de ar. A crescente náusea à boca do estômago em nada ganhava com o striptease que os olhos iam desvendando, um a um. A doce penumbra que anunciava romance e vinho tinto não tardou a denunciar, afinal, um ambiente opressivo e mal arejado, forçado pela falta de cortinas ou estores o que obrigava a usar as persianas exteriores como modeladores de luz. Não funcionava, apenas escurecia. O que não era mau de todo, já que o inicialmente mal interpretado estilo blasé não passava do mais puro desleixo a céu aberto. Os livros pelo chão não resultavam apenas de leituras obsessivas ou falta de prateleiras, eles eram capacho de ténis com solas sujas de cansaço e de relva e serviam de mictório a dois gatos mal treinados. O cheiro ácido que parecia cítrico foi logo deitado por terra ainda antes do primeiro round. Toda a decoração, ou antes a total falta de decoração, nascia de um simples amontoado de coisas avulso que não encontravam lugar certo, nem utilidade óbvia nos sítios onde moravam. Havia estantes, mas afastadas das paredes, criando inusitados biombos e despropositados apertos à passagem de uma área a outra e mesmo à circulação dentro de cada sala. Como se tudo ali tivesse ido parar de forma aleatória, como os monos que encontramos junto de alguns contentores. Alguém descartou uma secretária velha – nova que fosse, ali era velha por falta de trato, visibilidade ou mesmo uso e as coisas, bem sabemos, acusam a negligência, tal como as pessoas –, mais tarde, outro alguém por lá largou um sofá e uma máquina de escrever, uma coleção de jornais do século passado, que já servia de habitat a uma colónia de bicho do papel letrado, por esta altura, e era da junção, da mera soma de ‘entulho’, que a casa se vestia. Teriam trazido tudo da rua? Não saberiam como melhor gerir o espaço habitável? Seria um propositado manifesto de diferença e oposição a determinações estéticas e de salubridade universais? Por sobre todas as superfícies uma indelével película de pó que ia sendo limpo com os cotovelos conforme o uso ou o descuido de quem passava ou estava.
A novidade é sempre surpreendente, e ser surpreendido é sempre agradável até que deixa de o ser. O fascínio inicial por aquela atmosfera parca de luz e de critério – qualquer critério – apagou-se repentinamente quando surgiu a necessidade de se sentar.
– Senta-te, fica à-vontade! – Disse-me ela casualmente.
Casualmente recusei. Era, de longe, preferível rebentar os rins e acompanhar o crescimento de múltiplas hérnias, ficando de pé o tempo que fosse preciso, do que tentar encontrar local seguro, limpo e confortável onde lançar o meu metro e oitenta. Sim, aos 14 nos já tinha essa altura e ainda lhe somei mais de dez centímetros, desde então. Além de que teria de derrubar duas estantes, dar um jeito numa máquina-de-lavar-qualquer-coisa, que a cozinha vomitara para a pequena sala onde nos encontrávamos, e ainda pontapear um ror de pequenos objetos que cobriam o chão antes que o conseguisse com algum sucesso. Podia ser constrangedor e sair caro. Viveriam mesmo ali? Quer dizer, como se reuniriam para as refeições? E onde, se nenhuma mesa tinha cadeiras e nenhuma cadeira encontrava mesa naquele labirinto? Comeriam pelos sofás, nos pequenos espaços livres de revistas, mantas e roupa – por passar, por lavar, ou apenas sem gavetas, e que habitavam a maior área dos assentos – pratos volantes que cozinhariam algures? Encomendariam todas as refeições? Nisto, Rita faz-me um sinal com o dedo e segui-a como pude para fora daquele salão, que mais parecia um depósito. Mais do que com surpresa, foi com visível alegria que vislumbrei a cozinha. O meu cérebro nem me deu tempo para pensar ou engendrar um plano. Foi automático.
– Dás-me um copo de água? Estou cheio de sede. Fico sempre assim depois do treino.
Tinha de facto sede, e necessidade de desenlear aquele nó no estômago, por conta daquele odor forte a coisas que já não saberia identificar com absoluto rigor ou certeza de estar correto, mas que continuava a chegar-me como sendo a tabaco, laranja e chocolate. A cozinha era inesperada e inexplicavelmente clean. O termo não se pode traduzir em asseio, mas em espaço livre e desimpedido. Era ali notória a falta de inúmeros objetos, próprios do espaço cozinha, e que sobejavam noutros locais, incluindo corredores e outros átrios de passagem. Exemplo esdrúxulo eram os equipamentos elétricos, grandes e pequenos, como o próprio frigorífico, que ganhava raízes no corredor de acesso a outra zona da casa estranhamente interditada por via de um cruzamento de fita policial. Era uma casa antiga, meio labiríntica, que parecia ocupar quase um quarteirão, mas essa poderia ser a sensação que ficava após percorridos todos os quilómetros necessários para ir contornando obstáculos e mobiliário vindo de inúmeras décadas e de quase todos os estilos.
Aproveitei a ida à cozinha para respirar, beber três copos de água e perceber pela janela – a única aberta e desimpedida – a rua e o posicionamento do piso em relação ao edifício. Havia um pátio interior de generosa dimensão, e a casa deveria correr ao longo dos quatro lados daquele quadrado que avistava lá em baixo. Como um mosteiro, pensou, com claustro e tudo.
– A tua casa é incrível. – Atirei. Arrependi-me de imediato. Lembro-me perfeitamente desse momento de lamento interior. Ambos sabíamos porque ali estávamos, e sair-me com avaliações estéticas não abonava a meu favor, como se me interessasse por decoração de interiores. Remediei a coisa fazendo referência à zona interdita.
– Ah, é onde o meu pai tem a estufa de canábis e é para a empregada não passar dali.
Havia uma empregada? De toda a informação que a resposta dela continha, essa foi a mais significativa para mim. Claro que havia empregada e não deveria sair da cozinha, daí o ar tão distinto dessa divisão em comparação com todas as outras. Devia limitar-se a cozinhar e a permanecer ali, na cozinha, numa limitada zona de segurança mental e bacteriano também. Por sorte, guardei essa surpresa para mim, e tive o discernimento de recuperar o terreno perdido, pedindo que me mostrasse a plantação indoors de canábis. Galgámos por cima da fita amarela e preta, percorremos a custo mais alguns metros de corredores e salas que funcionavam como antecâmaras de outras salas e chegámos ao quarto dos pais. Sim, a estufa não era mais do que o closet transformado num quintal hippie. Iluminação, medidores de humidade e temperatura e o exotismo de uma planta que nunca tinha visto ao vivo e ainda verde, longe de uma mortalha, lambida com deleite, pelo meu irmão mais velho. Às tantas, as nossas famílias ainda tinham ‘negócios’ em comum, que aquilo que via não podia ser apenas para consumo doméstico.
O cheiro a tabaco – seria apenas tabaco? –, laranja – definitivamente não seria laranja –, e chocolate – de onde viria este estranho odor adocicado? – continuava a nausear-me quase ao vómito, mas a missão era demasiado importante para ser abortada devido a sensibilidades gástricas. Ao estômago, o meu cérebro mandava ininterruptas e encriptadas mensagens de comando, ordenando comportamentos mais másculos e ajustados ao momento. Confiei no automatismo cerebral, até porque ela já me conduzia pela mão para o quarto e havia nervosismos a controlar com igual empenho. O quarto era enigmático. Não havia cama à vista. Pediu-me que baixasse as camas, no plural, e achei que o que me dizia era que teríamos de nos deitar no chão. Este estava coberto. Simplesmente coberto. Não estava, literalmente, com estômago ou tempo para me debruçar sobre a origem de tanto papel amarrotado, sapatos, mochilas, computadores, colunas, puzzles incompletos… Com um pé – cada um dos meus pés era já então uma pá com mais de meio metro – afastei tudo aquilo que consegui, a fim de abrir uma clareira com largura suficiente para dois corpos sobrepostos, ou seja, um corpo. Achei que não valia a pena investir em mais do que o estritamente necessário.
– O que estás a fazer? Para!
Rita puxou-me pela mão. Os nossos corpos ficaram colados e toda a atenção que o meu cérebro dedicara ao estômago apanhou o elevador para alguns pisos mais abaixo. A viagem atingiu a velocidade Mach 2. Foi quase embaraçoso. Para mim. Rita estava acesa e imparável. Sabia bem o que fazia, enquanto eu me debatia apenas para lhe enfiar a língua na boca a alta velocidade, achando que isso revelaria experiência e à-vontade. Não me consigo ver nesse dia, mas não é necessário, para perceber quão patético deve ter sido. Aos olhos de Rita, a minha inexperiência não precisava de ser provada. Sei agora que isso deve ter sido parte substantiva do seu interesse e excitação. Testar-se e experimentar com um miúdo ingénuo, coisas que, por certo, planeava pôr em prática com outros interessados, de forma já mais segura. Rita sabia ao que ia e o que desejava e estava desejosa de o concluir, mas acredito que fui mais rápido do que o esperado, mesmo por ela, mesmo para a velocidade do som.
– Não te preocupes. Enquanto esperamos a próxima boleia – enquanto falava, mexia em partes do meu corpo intocáveis por terceiras entidades até à data –, baixas as camas?
As camas. De novo aquela história. Aquele enigma e eu que ainda não tinha habituado a visão àquela penumbra, nem o nariz àquele cheiro dominante a coisas que desconhecia, ou conhecia, mas jamais tinha cheirado em conjunto, com aquela intensidade. Bem que olhava. Ora para ela, ora para o quarto. Uma divisão minúscula, comparativamente a outras por onde tínhamos passado para ali chegar. Sobrecomprida, opressiva e escura. A única entrada de luz fazia-se por uma janela fronteiriça à porta de entrada do quarto, numa parede estreita. Uma tenda, uma espécie de tipi camuflado – ou assim o recordo –, impedia a pouca luz de passar e tudo ali sobrevivia a custo numa média luz que cegava. O meu cérebro não conseguia discernir.
– Na parede. Basta puxares pela pega. São beliches e não me olhes como se nunca tivesses visto um destes.
Beliches. Numa das paredes, a da esquerda, uma estrutura metálica cheia de tecidos pendurados, que mais parecia uma instalação ou um estendal de roupa escura, olhava-me com desdém. Tentei descortinar a pega a que Rita se referia. Era indiferente. Peguei simplesmente numa das barras cujo brilho metálico prateado sobressaía sobre o sombreado dos têxteis e puxei com toda a força. Não foi suficiente.
– Tonto. Tem de ser pela pega, para desbloquear as trancas. Aqui.
Rita pegou-me na mão e encaminhou-a na direção da alavanca. Duas camas sobrepostas tombaram em simultâneo, enchendo o quarto quase ao seu limite. De repente, a área parecia limpa, pois todo o lixo ficou tapado sob os beliches. Beliches. Como é que eu ia caber num beliche? Rita terá percebido o mesmo logo que avaliou, ao vivo, a minha altura e o tamanho das camas, que não distavam muito uma da outra. Eu percebi ainda outra coisa, havia bombons esmagados entre a roupa da cama e a parede. No meio de tudo aquilo que não conseguia ver, aquilo ficou-me marcado na memória. Talvez o cheiro a chocolate fosse mesmo de chocolate.
– A minha irmã é viciada em chocolates e só adormece com quilos de bombons.
Claro. A Rita tinha uma irmã. Um volume sobredosado de carne e mau-humor que andava no mesmo ano do que eu. Felizmente noutra turma. Uma refinada peça do mais cáustico sarcasmo, que lançava ódios à sua passagem, e com queda para o bullying. Provavelmente, uma proteção exagerada para evitar ser a vítima. Não era mal jogado e tinha o meu total respeito. Porém, jamais esperara ver como é que ela alimentava tão desmesurado corpo e também não estava preparado para o facto de ser dela o beliche superior. Não supus. Confirmei.
– Qual é a tua cama?
– A de baixo, mas acho que não vamos conseguir nem na debaixo nem na de cima. É melhor irmos para o quarto de visitas.
Quarto de visitas. Mas quem, no seu perfeito juízo, e com meia dúzia de trocos no bolso, optaria por ficar a pernoitar ali? Bom, refreei a crítica, já que eu era uma dessas pessoas. Naquele momento nada de mais importante havia do que ser frequentador da casa da Rita, sendo que isso implicava atividade sexual, a primeira, de resto, e isso é de incomensurável valor: físico, afetivo, histórico, épico… Sexo com a Rita, quatro anos mais velha. Um fedelho como eu sabia bem o valor daquela incursão naquele reino estapafúrdico. Um luxo. Percorreram de volta parte do caminho que já conhecia, mas depois enviesaram por uma marquise que, não fora a desordem, era um local mágico, com vidros a toda a volta incluindo no teto. O cheiro a chocolate intensificou-se ali, mais do que o de tabaco e o de laranja. Ao olhar o teto percebi, todavia, que o cheiro a chocolate vinha dali, e não era chocolate. Eram… araras. Muitas, soltas, loucas, barulhentas e curiosas. Entre o cheiro do granulado que se espalhava por toda a parte, o pó da casa, aquele que elas guardavam nas asas e as suas fezes, o odor era quase tóxico.
Aguenta-te estômago, que não tarda isto terá acabado. Talvez percebendo a vontade de fugir nos meus olhos, ou interpretando a transpiração das minhas mãos como sendo nervosismo, ou por causa da minha braguilha que voltava a dar sinais de vida selvagem, Rita antecipou-se. Puxou-me com força e empurrou-me para cima de uma enorme cama, que me pareceu repleta de chapéus de coco e cartolas. Tão absurdo que concebo a possibilidade de eu já não estar a ver o mundo corretamente por essa altura. Dentro de mim corriam, desencontradas e violentas, duas correntes de energia. Uma vulcanizava por entre as pernas e que eu tentava conter para evitar novo fracasso e dupla humilhação, a outra subia do estômago à boca e sobre ela não tinha o menor controlo. A pressa da Rita era comparável à minha, desta vez, felizmente, e a coisa estava a acontecer, julgo eu, que só a imagem do sutiã descaído de Rita já tinha retirado a cavilha e atirado a granada, pelo que a explosão rebentaria dentro de segundos. Enquanto tentava convencer-me de que era real e de que estava mesmo dentro dela e não apenas a ser patético entre as suas coxas, um grito uivante saiu-me dos pulmões. Ouvi-o como se tivesse brotado de outra garganta, proveniente de outra emoção que não a minha. O ar dececionado de Rita tinha mais informação do que um códice. Na minha memória gravei, e por lá se mantém intacto, o momento em que o desapontamento se tornou horror nos olhos azuis tornados pretos de Rita. Na altura não percebi logo, achei até que seria alguma tara da Rita, que me teria beliscado as nádegas, mas o olhar dela denunciava terror. Não aguentei a excitação. Não aguentei a náusea e não aguentei a dor das bicadas das araras nas minhas nádegas. De mim, e por quase todos os orifícios, mas não todos, felizmente, jorraram secreções, vómito e sons que ainda hoje me ocorrem sempre que ao nariz me chega o odor a cigarros, laranja e chocolate. Terão sobrevivido a tudo isto os chapéus de coco e as cartolas?
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