Era apenas um nano-micro ponto de ínfimo tamanho, mas ainda assim demasiado e irritantemente visível na sua nova blusa de seda branca. Seda branca. A estrear. “Dá para acreditar?” Ester repetia a pergunta olhando fixa e agressivamente aquele bico de agulha. Não passava disso mesmo. Um quase nada. Não chegava à patente de gota, nem sequer de pingo. Apenas um nico, abaixo de sarda, abaixo de quase tudo, mas tão visível e incómodo, logo acima do peito, onde o podia ver sempre. Nem precisava de baixar os olhos. A visão periférica permitia-lhe vê-lo sem o olhar. Exposto. Atrevido. Desafiante. Latente e latejante, como um coração que bate porque está vivo e assim se quer manter e disso precisa. O endiabrado saltava em frente aos seus olhos. Uma prova, nem isso, já o dissemos, que de tão pouco nem espaço deixava para cheiro ou sabor a café, de onde tinha partido num salto tão microscópico que só raras lentes o poderiam visualizar. Logo café, e com açúcar. Dizem que o açúcar torna a nódoa de café mais difícil de tirar. Tinha de agir depressa. O quanto antes. Ver-se livre daquele pequeno inferno. Conhecia-se muito bem. Demasiado, para saber que a sua mente em nada mais pensaria o resto do dia do que naquele germe que poluía a sua blusa de seda branca nova, a estrear nesse mesmo dia, e arruinada logo no início da manhã, quando ainda apenas tomava o café. Inferno! Tinha de tratar do assunto e já. No monitor do computador uma videochamada chamava a sua atenção, mas não o suficiente para que se sobrepusesse à verdadeira emergência do momento: a pequena e tinhosa nódoa de café na sua blusa de seda branca acabada de estrear e desse já arruinada. A par dela o resto do dia, caso não tomasse medidas imediatas. Drásticas se preciso fosse e seria, seguramente. Sabia-o bem. Dirigiu-se à casa de banho, sob acusações mentais de desastrada. Como tinha deixado que aquilo acontecesse?! Deve ter sido quando, estupidamente, soprou o café, demasiado quente para a pressa que tinha. Um salpico daquele tipo e com aquele reduzido tamanho não era fruto de uma gota que tivesse caído do fundo da chávena, que, de resto, limpou cuidadosamente, como sempre o fazia, já para precaver este tipo de incidentes medonhos.
Água. Quente, de preferência. Uma toalha bem limpa. Tinha de tirar a blusa. Esperava que a casa de banho do primeiro piso estivesse vazia. A do rés-do-chão estava sempre cheia. Havia quem precisava de lá estar e também quem aproveitava para pintar as unhas, maquilhar-se – coisa que não fazia em casa para poupar tempo de sono –, quem para lá fosse ter conversas que o open space não mantinha privadas… De tuto um pouco e agora ainda uma nódoa de café com açúcar. A inquietação e urgência que sentia não lhe permitiam aguardar pelo elevador. Seguiu direto para as escadas. Percebeu o estado de nervos em que estava quando reparou que já estava a desabotoar a blusa e ainda nem tinha chegado à porta do WC de cima. Era indiferente. Ninguém ainda no piso superior. Era sempre das primeiras a chegar, a par do departamento de televendas, adepto da casa de banho de baixo, a qual, por ser gigante, funcionava quase como recreio para as ‘barbies’. Havia quem lá mantivesse em permanência um secador de cabelo e uma bolsa de maquilhagem. Ester achava tudo isso uma perfeita idiotice. Normalizar, familiarizar a esse ponto o local de trabalho tinha implicações várias e todas pouco atrativas. Trabalho é trabalho, maquilhagem é maquilhagem. Jamais desejaria sentir-se em casa no local de trabalho. É importante manter o profissionalismo e esse só é real para a mente quando há diferenciação de barreiras. Quando as fronteiras são claras e percetíveis. Ali, ia para trabalhar. Não queria sentir-se demasiado confortável, para estar sempre alerta e desperta. Da mesma forma que não aceitava levar trabalho para casa. Dedicação, sim, sempre. Mas com hora e local marcados. Nada de baralhar conceitos.
Da torneira, a água tardava em sair quente. Estaria sequer ligada a água quente? Passado um minuto – Ester era craque a medir o tempo sem recurso ao relógio – pareceu-lhe um pouco morna. Não o suficiente, mas era um começo. Com um pedaço de papel de limpar as mãos – nada de toalhas por ali, caro, como não lhe tinha ocorrido isso –, embebido naquela água tépida, dedicou-se com prazer à tarefa de esfregar aquele grão de areia. Grão de areia e como quem diz, era já um nicho de vários grãos de areia… De repente, entre o ir e vir da sua enérgica esfrega, já se podia falar de um grão de café. Aquilo crescia que nem tumor maligno em terreno fértil. Tinha em mãos uma erva daninha. Uma silva temperamental. Como se atrevia a crescer, assim, desmesuradamente à sua frente. Entregou-se à tarefa com delicadezas domésticas, mas se era de uma batalha que se tratava, tomaria medidas mais eficazes. Acima de tudo, mais energéticas. Novo pedaço de papel. Maior. Mais amarrotado. Mais áspero. Mais água. Mais quente, agora. Mais força no pulso.
Ester dedicou-lhe algum tempo sem remover a mão nem refrear o movimento. Fez mal. Tão mal. Depois de retirar pequenos rolos de papel – bem que podia tê-los previsto e evitado, mas era tarde para lamento –, achou que o ponto tinha desaparecido. Não chegou a sorrir, pois logo percebeu que aquela bolinha devia ter uma densa consistência e continha mais café e açúcar do que imaginou. Todo o seu corpo de nódoa se tinha transmutado. Não tinha desaparecido. Não se tinha dissolvido na água. Não se tinha agarrado, em desespero, ao papel molhado. Tinha-se apenas transferido para outros locais. Tinha alterado a sua forma, o contorno do seu corpo inicialmente esférico. Era agora uma ampla auréola em torno do pedaço de tecido que, pelos seus cálculos, contornaria o local onde devia ficar a sua mama esquerda. Uma sinalética inacreditável para o sítio que mais gostava que passasse despercebido, mais ainda em dia de reunião de grupo. Com a palma de uma mão cheia de sabonete líquido e o tecido já bem encharcado, esfregou até ter espuma. Não muita. Não a ideal. Mas também não tinha os produtos necessários. Era lutar com o que tinha à mão. Enxaguou, apenas para perceber que uma percentagem de tecido alucinantemente maior, muito maior, se apresentava no tom bege. Como é que aquele ponto ridículo conseguia continuar a produzir café para transformar toda a zona superior esquerda, aquela que já chegava ao pescoço da blusa, num degradé de amarelos, numa imitação provocadora de uma aurora boreal de café? Ester enlouquecia. Estava tomada pela fúria e pela frustração.
Nem vacilou, nem pensou, nem sequer planeou. Era a única coisa, na verdade, que lhe restava fazer. Encheu um dos lavatórios de água quente. Despejou para lá tanto sabonete líquido quanto conseguiu. Colocou toda a blusa de molho. Esfregou freneticamente. Voltou a deixá-la de repouso. Voltou à carga. Sem paragens. Sem descanso. Encheu o lavatório do lado e abasteceu-se de mais água quente. Começaria a operação enxaguamento. Torce a blusa. Vai mudá-la para o lavatório do lado, onde a água estava mais quente. Atira a blusa lá para dentro. Um fio de seda fica preso numa das unhas, entretanto partida ou lascada, nem sabia. Ao retirá-la, com os níveis de irritação próximos da histeria, viu nova nódoa. Os seus olhos já projetavam raios luminosos, de ódio e acidez. Uma nova nódoa ou a mesma noutras coordenadas? Aquilo era demoníaco. Parou. Ester não conseguia acreditar, nem sequer respirar. A blusa estava rasgada. Onde começara por estar a nódoa, o tecido estava puído e esgaçado, e aquilo que lhe parecia uma segunda nódoa era um claro rasgão. Agora, sim, a sua blusa de seda branca inutilizada. Nem sequer lhe permitia sair dali. Toda encharcada. Como iria à reunião?
Ligaria a uma das barbies. Pediria um secador de cabelo… Não. Utilizaria o secador de mãos. Não estava para intimidades. Iniciou o penoso processo de secagem. Depois de secar a blusa, vestiria um casaco. Ter um casco no cacifo era o único elo de ligação com as barbies da empresa. Acontece que o ar condicionado nem sempre respeitava as suas necessidades térmicas e um casaco de malha que não tivesse de transportar diariamente de um lado para o outro, era precioso. A máquina de secar as mãos já não reconhecia nem detetava o movimento, de tão extenuada. Manteve a blusa o mais perto possível. Rodando-a. Espremendo-a. Queimando-a. Claro. Só faltava queimá-la, pois isso também aconteceu. Era a tal da Murphy. Acabaria nua. Irritada, Ester atirou a blusa para o chão, quase em modo de choro. Má decisão. O chão de uma casa de banho pública, por mais limpo que pareça nunca o está verdadeiramente, já para não dizer que dificilmente estaria desinfetado. No tecido húmido, tudo se agarrou à seda já nem por isso branca da sua blusa, a mesma que há apenas uma meia hora era ainda, branca e nova. Agora, era apenas um inútil trapo de seda com um buraco e um rasgão. Teria de servir de tapa-corpo até chegar ao casaco de malha, o qual a impediria de maiores humilhações até ao final do dia. Ir para casa, como uma menina desamparada é que não lhe agradava, nem lhe servia.
Ester chega a casa extenuada. Felizmente mais bem-humorada, mas nem por isso muito mais, do que se sentiu durante todo o dia. Logo que entrou em casa foi direto ao caixote do lixo onde depositou o saco plástico onde tinha mantido a blusa. O marido chega nesse instante. Pensou que ainda era cedo, que precisava de um pouco mais de tempo sozinha, para se recompor. Todavia, também lhe saberia bem partilhar aquela rocambolesca aventura. Depois de contada, de tão ridícula, por certo se sentiria melhor. Talvez até conseguisse rir de todo aquele crescendo de azar e insanidade. Quando se está irritado, de facto, não se tomam as melhores decisões. Já devia saber isso e reconhecer as suas irritabilidades. Tudo começou com um ponto impercetível, que sairia após a primeira lavagem, mas ela tinha de dramatizar, empolar e estragar uma coisa boa e nova. Só se podia culpar a si mesma. Disse ao marido que guardaria para o jantar a história da razão por que tinha saído de casa com a blusa nova e regressava com o casaco de malha que mantinha no escritório. Era boa demais para se desperdiçar sem os necessários sossego e atenção. Ester repara que o marido deixou o balde do lixo destapado. Vai baixar a tampa e vê que a manga da camisa que ele acabara de despir está a sair do cesto da roupa suja. Capaz de se rasgar. Aquele parecia ser o dia das camisas inutilizadas. Enquanto preparavam o jantar, Ester dá conta da manobra de sempre do marido: fazer-se muito interessado numa notícia do telejornal – que seguramente já leu em mais do que um site ao longo do dia –, para se esquivar de tarefas que ela, por falta de paciência e por maior eficiência, entretanto, acaba por fazer. Sempre coisas relacionadas com o jantar, a louça, a vida doméstica… Ester respira fundo. Vai mordendo os lábios. Sentam-se, finalmente à mesa. O joelho que Ester tem encostado à perna da mesa sente aquela reverberação de sempre que a tira do sério. Aquela batida ritmada que a enlouquece. O marido não para de bater com o pé no chão, o que faz com que o joelho toque num dos pés da mesa, tornando-se percetível a todo o ser vivo que esteja ligado àquela mesa de refeições. Aquele balançar compassado, aquele enjoo, aquele mareamento deixam-na tonta e irritada de morte. Ester sabe que tem de fazer algo. E já. Não pode perder tempo. Tem de agir depressa.
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