O segurança da portaria foi simpático, mas claro que alertou:

– Têm de aguardar cá em baixo. Os serviços só abrem às 8h. Falta quase uma hora. Quando faltarem vinte minutos para as 8h, já poderão subir.

Agradeceram e voltaram para as cadeiras, poucas, do pequeno átrio envidraçado, agrupadas em módulos de três, mas disponibilizando apenas uma cadeira em cada um deles, devido ao distanciamento necessário e ainda mais rigoroso num hospital. Seguramente, uma mãe e um pai e uma filha. Sentaram-se, respeitando apenas uma cadeira de intervalo entre si, exceto o homem, que preferiu ficar de pé. Conversavam baixo. O homem saiu, forçando a abertura das duas portas automáticas, a primeira de acesso ao átrio interior e a segunda, que dava para a rua. Entre ambas, um pequeno intervalo de espaço, que servia de barreia à entrada de qualquer temperatura que se fizesse sentir lá fora, mediando amplitudes térmicas entre o exterior e o aclimatado interior. Vi-o andar, devagar, mas seguro, numa espécie de ronda de reconhecimento, ou de necessidade de se afastar dali, pouco que fosse. Subiu pela lateral da cafetaria, cujo acesso se fazia exclusivamente pelo exterior, e desapareceu pela zona onde imagino que fica o estacionamento dos utentes. Imagino, pois não conheço bem o território. Imaginei que deveria seguir-lhe os passos, ou assim o desejei, para ficar a perceber melhor a planta do local e para não ficar apenas ali, também eu à espera da hora certa. Mas fiquei. Fiquei apenas, no comodismo voyeurista de acompanhar, agora, os movimentos das duas mulheres que o homem deixava.

A filha – assumi que não me enganava, pois que as noras também têm os seus próprios pais com que se preocupar – retira uma pequena caixa da mala, remove-lhe a tampa azul-turquesa e oferece o conteúdo do seu interior à mulher mais velha, a mãe. Esta aceita a caixa, retira um lenço de papel de um maço que abre delicadamente e sai com a pequena caixa na mão. Bolachas, talvez, um pastel de nata ou queque. Não mais do que isso. Era uma caixa pequena. Na rua, come com delicadeza o pequeno lanche matinal, a primeira ‘trinca’ do dia. Muitas pessoas não conseguem tomar o pequeno-almoço logo que se levantam, e os nervos de quando se tem de ir ao hospital – seja qual for a razão, nunca é uma razão saudável, logo, nunca será uma boa razão – não ajudam o apetite. Porém, é necessário matar o jejum e é bem conhecida a importância da primeira refeição do dia, mais ainda em idades onde seguramente o estômago começa a sua rotina diária com qualquer tipo de medicação. A filha mantém-se sentada, a olhar, agora, o telefone, vigiando, de quando em vez, o exterior. Assegura-se, por certo, de que os pais estão por ali e estão bem. A mãe regressa. Logo depois, o homem também volta do seu pequeno passeio pelo perímetro hospitalar e senta-se na cadeira de intervalo entre as das duas mulheres, mulher e filha, na minha versão.

By Helena Almeida

Conversam. Olham relógios. Conferem horas. Aceleram a corda do coração. O homem retira o relógio de pulso, que a filha coloca no seu braço direito. Recebe ainda a aliança do pai. Retira dois dos anéis que tem no dedo anelar da mão direita, coloca a aliança do homem, que lhe deve vir imensamente gigante, a avaliar pelas mãos e dedos de um e de outra, e tranca-a com os seus anéis. Tudo a postos. Devem estar ali por causa do pai e devem estar ali para realizar um exame, que uma consulta não se escandaliza com joias ou adereços de medição de tempo.

Nisto, levantam-se. Eram exatamente 7h40. São rigorosos e exatos. Estão preparados. Prontos para dar o peito às balas. Se é para acontecer, que aconteça à hora prevista, sem sobressaltos ou surpresas. A horas. O segurança sorriu, um pouco meio contrariado, como quem diz ‘afinal, qual é a pressa de chegar lá acima?’ A filha não se comove com regras e repete o que o homem lhes tinha dito à chegada, que quando fossem 20 para as 8h, poderiam subir. Pois bem, faltavam vinte minutos para as oito. Era hora de subir. Afiançou ainda a jovem mulher que teria de acompanhar o pai – não me tinha enganado, era a filha –, pois que ele tinha dificuldades de audição e ela queria assegurar-se não apenas de que ele entendia o procedimento, como também de que ela ficaria a par de toda a situação. Sem problema. A mulher mais velha ainda tentou sensibilizar o segurança sobre o seu desejo de acompanhar o marido também… Quanto a isso não havia cedências. Um acompanhante apenas. A senhora teria de aguardar no átrio, numa das cadeiras.

Pai e filha seguiram pelo corredor da direita, parecendo familiarizados com o local e saber qual o destino. Viraram depois à esquerda e foram até ao final daquele amplo corredor, ainda com indicações tatuadas no chão sobre zonas limpas e sujas, de uma época Covid-19 que ainda vivíamos, mas já não no pico do apocalipse que por ali se viveu em 2020. Cardiologia, segundo piso. Subimos todos no mesmo elevador. A filha, que havia chamado o elevador, marca o número do piso acionando os botões com o cotovelo. Chegados ao piso 2 indicou ao pai um dispensador de álcool-gel que estava numa das paredes e ambos desinfetaram as mãos. Porque os bons exemplos se devem seguir e replicar sempre que possível, fiz o mesmo. Além de que achei indelicado passar à frente da sua ansiedade e acabar por chegar à secretaria de cardiologia antes deles, que tinham, afinal, sido os mais matutinos. Não apenas tinham chegado ligeiramente antes de mim – vi-os caminhar à minha frente rumo ao hospital, depois de deixarmos o carro no mesmo estacionamento –, como eu não me sentia ainda preparado para o cateterismo, procedimento que ali me levava às 8h, daquela terça-feira, que oscilava entre uma abrasadora primavera e um enublado outono, com as temperaturas a acompanharem essa bipolaridade climatérica. O mesmo procedimento a que aquele pai se sujeitaria, pois para se estar no piso de cardiologia àquela hora, era para se ser cateterizado, quanto a isso estávamos conversados. Talvez viéssemos a ocupar a mesma cama ou maca, eu e aquele homem, a olhar os olhos dos mesmos médicos e enfermeiros, acompanhados pelos mesmos técnicos e auxiliados pelas mesmas mãos. Estávamos unidos por aquele pequeno pedaço de destino cardíaco, ali, naquele piso 2, onde nos desinfetámos antes de avançar pelo último corredor de acesso ao serviço de cardiologia.

By Nicolas Guerin

A filha dirigiu-se ao dispensador de senhas, preso à parede. Retirou a primeira senha do dia, mostrou-a ao pai e sentaram-se. Tal como lá em baixo, onde em cada set de três cadeiras encostadas à parede se podia apenas ocupar a do meio, eles sentaram-se nas duas da ponta, que exibiam indicações de proibição, deixando desocupada a cadeira do meio. Sendo família, era mais correto assim, caso contrário, se respeitassem a regra, ocupariam, apenas eles os dois, seis cadeiras e ao todo não eram muito mais do que seis os lugares elegíveis. Segui o mesmo procedimento. Senhas. Cadeiras. Sentei-me no seguinte grupo de três cadeiras alinhadas, o mais próximo do ocupado por eles, aqueles que agora já espiava. Não se tratava exatamente de curiosidade. Mais ainda agora que o quadro clínico indicava uma qualquer questão cardíaca a ser avaliada por um exame igual ao que ali me levava. Não era, portanto, apenas curiosidade aquilo que me atraía naquele singelo e banal quadro familiar. Era algo mais substantivo e egoísta. Toda aquela ternura e partilha de códigos de silêncio me enternecia e me fazia bem.  Aquela comunicação sem palavras emocionava-me. Acalmava a minha ansiedade. Mais do que isso, apaziguava a minha solidão. O meu medo, talvez. O receio de qualquer ato médico, por simples que nos seja apresentado, é sempre algo que nos ultrapassa, que não controlamos, que exige o nosso consentimento informado, já que qualquer consequência é assumida pelo paciente, o único que não domina a matéria ou a técnica envolvidas. Aquele amor – sim, era amor que eu testemunhava – era suficiente para aquele pai e ainda sobejava bastante para mim. A filha tinha voz de criança. Tinha doçura, compreensão e, apesar desse registo soft, tinha uma força extrema. Ela não estava ali apenas para garantir que o pai compreenderia aquilo que pudesse não conseguir ouvir, mas para assegurar que tudo, efetivamente, correria bem, já que afetivamente não podia correr melhor. Ela não estava ali por menos do que isso. Garantir que tudo correria bem.

Era ela quem segurava na mão o envelope, semelhante ao que eu próprio levava. Uma espécie de guia de marcha, indicando que éramos as pessoas que ali deveríamos estar àquela hora exata, nem antes nem depois, para aquele exato exame ao coração. Como se alguém quisesse fazer-se passar por nós numa situação daquelas, e ocupar o nosso lugar na maca. Não há usurpadores de identidade na doença. Isso é coisa para cinema tortuoso. Existe um envelope, e é tudo. Tratando-se do coração, aquele quadro, pai e filha, não podia ser mais adequado e tranquilizador. Aquela filha asseguraria que também comigo tudo correria bem. Pelo melhor, pelo menos. Ela levanta-se, o pai diz-lhe para deixar a pasta transparente com o envelope consigo. Ela acede. Vai ao dispensador de álcool-gel e desinfeta as mãos. Regressa à cadeira. O homem repete os gestos da filha e regressa também à cadeira, enquanto roda as mãos uma na outra. A filha, de novo com o envelope nas mãos, fazendo as vezes de pai. Fazendo as vezes que o pai certamente tantas vezes terá feito por si numa outra vida anterior a esta que agora têm. A filha no lugar do pai. Ao comando das operações. Zelando. Aguardando. Serena. Segura. Não seria aquele exame a levar-lhe o pai. Apanhei boleia nessa certeza, puxando um pouco da mesma para o meu lado. Não seria aquilo. Talvez outra coisa. Talvez lá mais para a frente, mas não aquilo, ali, agora.

By Raymonf Depardon

Pelo corredor, vindos do elevador que ainda há pouco nos trouxera aos três, começavam a chegar vozes presas a corpos de pessoas que pelas roupas, lancheiras e outros sacos, e principalmente pelas socas de borracha coloridas, se percebia pertencerem ali, ao hospital, àquele piso. Médicos, enfermeiros, auxiliares, administrativos. Sucediam-se os bons dias e o som tecnológico emitido pela fechadura eletrónica sempre que alguém acionada o código de acesso à cardiologia. Quer dizer, à enfermaria de cardiologia, no limite esquerdo do corredor, que me aguardava a mim e àquele pai, e por onde entrariam todos os pacientes a caminho de exames como o nosso. Quem se dirigia à direita, às consultas, não necessitava de acionar códigos e os seus passos simplesmente se perdiam para lá daquela entrada. De entre todo o suave rebuliço de início de turno naquela parte do hospital, maioritariamente silencioso, um som se começou a destacar. Vinha do início do corredor, saído da boca do elevador. Uns tacões que gritavam atenção e chamavam os olhares. Sobre eles, na verdade os saltos agulha de uns sapatos de camurça vermelhos que não imaginaria encontrar ali, uma jovem mulher balançava, compassada e orgulhosamente, o seu corpo sedutor, envolto nuns jeans skinny e numa blusa de verão atafulhada sob um blazer também ele justo, talvez até demasiado pequeno.

Não demorou a perceber-se que fazia parte do secretariado e que em seu redor esvoaçavam muitos colegas, homens e mulheres. Elas mais estridentes, dedicando-lhe inexplicáveis elogios de como estava bonita. Custou-me a imaginar que a cena se repetisse diariamente. Assumi que ela se apresentasse por norma muito pior ou com tão menos elegância que aquele fosse um dia inédito de guarda-roupa exuberante. A jovem mulher dos sapatos vermelhos de salto agulha percebia o efeito que causava, estava ciente de que gerava um certo frisson destoante, pelo menos, e não parava quieta, fazendo ecoar o barulho dos sapatos entrando e saindo do seu gabinete, mostrando-se ocupada quando não estava, a avaliar pelo silêncio dos telefones e pelo tempo dispensado a todos os colegas que paravam ali numa espécie de ritual de início de dia. Parecia ser um dia extraordinário. Uma frase, proferida pela jovem mulher de saltos agulha vermelhos, que era quem empregava um tom de voz mais alto, esclareceu toda aquela agitação – a mim, pareceu-me agitação: “A minha chefe diz que não me quer fardada!” A mulher repetiu a frase mais umas duas vezes, parecendo justificar com uma ordem superior a sua indumentária, destoante de todas as dos restantes funcionários, independentemente da profissão. Percebe-se que quem troca umas socas de borracha e um uniforme sem graça por uns sapatos agulha vermelhos para ir trabalhar, estava desejosa de receber tal indicação por parte da hierarquia. Percebe-se também que os restantes colegas acabassem de ver uma pessoa bem distinta daquela que todos os dias se assemelhava às restantes e que, de repente, parece a única pessoa a cores num filme a preto e branco.

Olhei para o pai e a filha e percebi que também ela, o pai não, mas a filha acompanhava esta novela com o mesmo interesse discreto do que eu. Claro que quando se aguarda, tem-se todo o tempo para observar e sempre é uma maneira de ocupar os nervos, de tentar distraí-los, pelo menos. Compreendido aquele breve guião, e tendo a mulher de sapatos agulha vermelhos passado de carteira na mão em direção aos elevadores – para tomar o pequeno-almoço, ou apenas beber um café e, de caminho, mostrar a mais serviços daquele hospital como agora se apresentava ao serviço, fresca e sedutora –, percebi que já todas as cadeiras disponíveis para acolher pacientes estavam ocupadas. A coisa estava a compor-se. Vi homens sozinhos e mais mães e filhas, mas nenhum deles destronou o meu interesse no pai e filha. A funcionária da secretaria – de bata e socas –, anuncia que quem está para fazer exames, os bem-sabidos cateterismos, não necessita de retirar senha, já que serão chamados pela equipa de enfermagem. As senhas, avisa, são para as consultas ou informações. A filha fala com o pai, debruçando-se ligeiramente sobre a cadeira que têm de permeio. Não consigo ouvir o que dizem, mas talvez adivinhe. Tão cedo que chegaram, tão céleres que subiram, tão prontos que sacaram da primeira senha, quando, afinal, a ordem não será a de chegada. Nesse caso, qual a ordem? Não tardou a que chamassem os dois primeiros pacientes para cateterismo. Uma enfermeira sénior com um dossier na mão e acompanhada de uma estagiária, repetia em voz alta um nome que lia nas folhas e olhava em redor. Uma pessoa levantava-se e dirigia-se a elas, altura em que se apresentavam e a enfermeira aproveitava para explicar o que se seguiria. Aquilo que ficava por esclarecer, aos restantes pacientes em espera, era qual o critério de chamada, na medida em que não era o de chegada, pois nem eu nem ‘o pai’ tínhamos sido contemplados por este primeiro chamamento. Percebi que a enfermeira explicava que as chamadas respeitariam também a disponibilidade de camas. Eventualmente também de equipas. Para já, seriam provavelmente duas, pois tinham chamado dois cardíacos. Não havendo reparações vasculares, talvez cerca de uma hora e pouco fosse o tempo previsto para cada um dos procedimentos. A serem verdade os meus cálculos, eu e o pai só entraríamos, na melhor das hipóteses na hora seguinte.

Percebi que pai e filha debatiam a mesma questão. Assim sendo, e não se respeitando horas de chegada, porque não determinar horas de chegada distintas a cada paciente, em vez de fazer com que todos acorressem às 8h? Não era maneira de gerir expectativas, nem parecia um procedimento adequado. Não poderiam avaliar previamente graus de urgência e de prioridades? Era o que era e nada mais do que isso, pelo que restava esperar. Com as entradas ao serviço completas, as saídas de turno também, voltou uma certa calmaria ao corredor. Quem aguardava sabia que teria de aguardar ainda mais, e os das consultas tinham uma outra sala de espera pelo que se dividiam pelo corredor e a mesma.

A filha dá o seu lugar a uma mulher que aguarda de pé. A mulher agradece, mas recusa, dizendo que está melhor de pé. O pai olha a filha. Aquilo que vi nos seus olhos pareceu-me orgulho, mas também pena por ter de ser a filha a oferecer o seu lugar, quando sempre foi ele a aguentar estoicamente de pé, o tempo que fosse necessário. Mas já não é assim, e o mais certo é que já não volte a ser assim. Mas está tudo bem. Há a filha. Haverá sempre a filha. Tive pena que a filha fosse daquele homem e não me ‘pertencesse’ a mim, ao meu coração. A filha fala com o pai. Pergunta-lhe se está bem. Começo a ler lábios e isso surpreende-me. Talvez esteja a ficar surdo e seja esse um claro sinal disso mesmo, já que a surdez é engenhosa e sabe bem disfarçar-se de entendida e perspicaz. Parece que o pai necessita de ir à casa de banho. A filha não hesita. Dirige-se ao guiché e pergunta se há casa de banho naquele piso. Explicam-lhe onde. Ela segue com o pai. Regressa depois. Passado pouco tempo o pai volta ao seu lugar também.

Nisto, uma mulher com duas canadianas. Esta aceitou o lugar. Como recusar? Duas canadianas! A filha agora um pouco mais perto. Ouço-a a falar com o pai.

– Estás nervoso?

Percebo a ternura, a vontade de apoiar e sossegar, mas também noto a surpresa e o choro escondido. Vejo ainda como o seu coração se aperta no peito, na mesma medida em que o meu encolhe igualmente, ao ouvir a resposta do pai. O pai, forte, seguro, de mãos grandes onde as da filha sempre se perderam. O homem de passo seguro, pulso firme e braço musculado que nunca deixou de segurar num aperto eterno a sua mão frágil e pequena durante toda a vida. Aquele pai que conduziu sempre. Que sempre sossegou. Aquele homem-casa que sempre fora colo, saber, segurança e abrigo. Aquele homem rochedo que eu conseguia perceber pela forma como aquela mulher olhava para o pai. Aquele homem forte, que eu via através do amor daquela filha, respondeu, remexendo as mãos como quem as desinfeta, e abanando um pouco as pernas:

– Um bocadinho.

Todos os corações daquele piso deixaram de bater naquele momento. Nisto, chamaram o meu nome.

By Raymond Depardon

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