No seu minúsculo berço, os Segundos choravam a bom chorar, se bem que o mais correto seria a mau chorar. Não que chorassem mal, até mostravam alguma perícia e certo pendor para aquela atividade gutural, que já lhes parecia vir da mais recôndita gruta gástrica, tal era o empenho e o esforço despendidos em tal tarefa. Mau, apenas porque isso estava a stressar a pequenada mais crescida, que tentava dormitar na divisão ao lado, com os Minutos já em plena crise de ansiedade. Paredes meias, estava o quarto de Hora, a qual se arreliava soberanamente sempre que a apressavam a levantar-se. O pai Dia não ficou indiferente a tamanho desassossego e apressou-se a ir acalmar as impacientes crias.
– Deixem os minutos dormir mais um pouco, que ainda nem sequer é hora do leite, menos ainda de irem para a creche. Vá, sosseguem e nada de choraminguices. Já vos venho buscar!
Fechou a porta do berçário, ao mesmo tempo que lhe escapulia um enorme bocejo matinal, que afagou com a sua enorme mão direita. Pé ante pé, para evitar que o avô Tempo – que tinha um péssimo despertar – acordasse com tanto alvoroço, foi acalmar, de seguida, os Minutos.
– Meninos, aguardem mais um pouco, bem sabem que não nos podemos adiantar à Hora, que tem privilégios de mais velha no uso do WC, ok? Podem começar por fazer alguns alongamentos, para que tudo bata certo e cheguem ao fim de mais esta etapa ainda com energias. O turno da noite deve estar a chegar, vá, acalmem-se.
Por ser rapariga, e ter uma natureza mais lânguida do que os irmãos mais novos, Dia aproveitou para anunciar a Hora que despertasse e avançasse já para o banho, enquanto ele preparava o pequeno-almoço de toda aquela gente, incluindo do avô Tempo, que apreciava um calmo e longo repasto matinal. Tinha ainda de aquecer a sopa, já que os Segundos e Minutos noturnos, não tardariam a chegar a casa e esses, após uma longa noite de atividades várias, não se satisfaziam com meros cafés com leite ou cereais. Pensou mesmo em preparar-lhes umas tostas, mas cansava-se só de pensar que só para os Minutos seriam precisas 60, fora os mais pequenos… Sentiu-se cansado só de pensar nisso. Desistiu de imediato. Nada de tostas. Cereais com mel e banana e uns batidos de fruta para os que se preparavam para sair, e uma bela e substantiva sopa para quem estava prestes a chegar.
Todas as manhãs o mesmo suplício e ainda a preocupação sobre se chegariam todos bem a casa, que isto de deixar os jovens sair à noite apoquenta qualquer pai. Claro que estavam com a mãe, Noite, mas eram demasiadas crianças, algo poderia acontecer ao abrigo do escuro, sem esquecer que são crias frenéticas e imparáveis. Enfim… Nada de se preocupar por antecipação, coisa que, de resto, era uma impossibilidade temporal, à qual sucumbia de quando em vez, ao cabo de milénios de convivência com os histéricos humanos. Ouviu o chuveiro, ótimo, Hora já se estava a despachar. Seguir-se-iam os Segundos e, por fim, os Minutos, sendo que estes já não requeriam tanta atenção. Os mais pequenos é que eram endiabrados. Saíam à mãe. Sempre a fazerem birra para se deitar, sempre rabugentos ao levantar. Era de uma natureza mais sensível e volátil, mas eram os seus pequerruchos e sem eles, nem os Minutos já sobreviviam, tão apegados que eram. Um pouco mais distante era a Hora. Mais nariz no ar, mais vaidosa, por vezes até um tudo nada distraída. Mal se dava por ela e já se tinha ido embora. E, depois, de cada vez, tinham de ser os 60 minutos a procurá-la, pois sabia sempre onde se esconder. Nem sabia bem onde. O certo, e estava bem ciente disso, é que era uma família unida e feliz. Qualquer disfuncionalidade era logo reparada e tudo era cumprido com rigor, e máxima vigilância.
Nisto, o Tempo passa a correr.
– Pai –, gritou Dia –, onde vai com tanta pressa? Tenha calma.
Calma, por seu turno, era coisa que Dia não tinha sempre que via o Tempo correr. Com a sua profícua idade, que já se perdia nos anais de várias eras, temia perdê-lo e perder Tempo seria absolutamente fatal para toda a família, fosse ele bom ou mau Tempo. Ele era o patriarca, o mentor do negócio relojoeiro da família, o guardião de todos os segredos… Impensável perder Tempo. Por isso, Dia se agastava tanto. Já não lhe bastava ser babá dos mais novos, como ainda cuidar do mais velho. O seu irmão Ano, bem que podia ajudar nesta tarefa geriátrica, mas vivia longe e, já se sabe, quem fica é quem cuida e se responsabiliza, que isto de relações à distância, bom, o Tempo que o diga. Mas não dizia. Gostava de todos os filhos por igual, muito embora Dia sentisse particular ciúme da irmã Década. Tempo exultava de felicidade sempre que Década se dignava aparecer, aquela vez sem exemplo a cada dez anos. Mas isso eram outros quinhentos. Agora, o importante era… Dia sentiu uma tontura. Levou a mão à testa e percebeu tudo. Estava febril. Não admira que o desgostasse tanto a ideia de tostas para esse pequeno-almoço. Avisou a prima Manhã. Ela que aguardasse um pouco mais para ver como ele recuperava. Preocupada, mas ainda não alarmada, Manhã disse-lhe para não se preocupar. Diria aos da noite para aguardarem um pouco mais. Todavia, ligou logo aos primos Tarde e Serão, pois mais valia prevenido do que remendado. Só em último caso avançaria com a notícia da provável gripe de Dia à Noite. Coitada, devia estar cansada, após mais um longo período de trabalho, e de nada servia preocupá-la. Dir-lhe-ia apenas para não ter pressa no regresso a casa. Ela sabia bem como fazê-lo sem que viessem queixas do departamento dos Humanos.
Dia, entretanto, tinha-se deitado um pouco, por conta das insistentes tonturas que ameaçavam derrubá-lo no Espaço – talvez consequência de quebra de tenção ou de uma eficiente alimentação, afinal, entreter tanta miudagem, era obra. Compreensível em toda a linha, não fosse o caso de não ter acordado. Nem mesmo com a enorme algazarra dos mais novos, ou o alarido histriónico de Hora. Abanões, gritos, encontrões, safanões, copos de água na cara… Só podia ter desmaiado ou, pior cenário ainda, ter caído em profundo esgotamento. Não havia como evitá-lo. O Tempo teria de agir rapidamente, acionando todos os seus truques, e a Noite teria de regressar sozinha, ainda, para cuidar do Dia. Desta vez, arrastando os pés, o Tempo, indivíduo temperamental e de humores variáveis, não obstante ser um tipo de palavra e o mais rigoroso de sempre, entra em modo meteorológico e escurece os céus com nuvens, trovoada e uma tempestade daquelas, para que a Noite pudesse regressar, sem que se desse pela falta do Dia.
– Vamos lá, então! – Repetia em tom bonacheirão o mestre de todos os climas.
Parece que foi difícil encontrar número suficiente de Nuvens, todas espalhadas por outros fusos horários, o sindicato teve de intervir… Uma maçada a juntar à aflição de ver o pobre do Dia inconsciente, de boca aberta e já em profícuo ‘babanço’. Lá por casa, já se vê, tudo parecia enlouquecido. Uns quantos pequenos detinham os ponteiros como podiam, outros excitavam-se com a chegada da mãe Noite, que quase nunca viam em doses suficientes para matar saudades, outros amuavam por ela ter voltado por causa do pai Dia e não para estar com eles… Reinava uma espécie de impertinência generalizada, bem pouco própria da família. Uma quase anarquia que assustou a Noite, atenta a todo e qualquer sinal de pânico. Aquilo era um atraso de vida e atrasos não eram permitidos. Noite não perdeu um segundo que fosse, estavam todos com ela, pelo que começou a colocar ordem no caos, estabelecendo uma lista de tarefas e de tarefeiros. Enviou os segundos para a rua, que estava na sua vez de brincarem lá fora. Os minutos que os acompanhassem, vigiassem e revezassem no momento exato. Hora… Não encontrava a Hora. Claro. Hora aproveitou para se plantar ao telefone, agora necessário, para ligar para as urgências e chamar o médico, mas nem foi preciso gritar. Bastou o olhar da mãe Noite para desligar.
– Estava a falar com o Cuco. Tinha de o avisar de que talvez me atrase um pouco, certo?
– Errado. O certo é que ninguém se atrase, um milésimo que seja, ouviu, menina Hora?
Ui. ‘Menina Hora’ era quase uma chapada na cara. Era o código familiar que gritava Atenção e impunha sentinelas. Hora corou um pouco e colocou-se de plantão, à janela, para ocupar o lugar dos irmãos, logo que chegasse a sua vez. Ao longe, na sua árvore de eleição, Cuco fez-lhe sinal para que se acalmasse. Cuco tinha o dom de a entusiasmar e de a acalmar. Ele sabia sempre quando fazer uma e outra coisa. Adorava-o. Além de que era bem mais descontraído e divertido do que toda a sua família, de rigores militares, sempre de régua e esquadro, a medir tudo com exatidões doentias e rígidos tic-tacs. Uma escravidão. Quase dava graças ao Relojoeiro Mor, o Deus dos humanos, pelo cansaço do pai e pela magia do avô. Sempre seria um dia distinto, mais livre, mais light, mais descontraído. Uma quase gazeta. Podia aproveitar para dar um novo corte ao cabelo e, até, quem sabe – a ideia entusiasmou-se verdadeiramente –, visitar a Manhã e a Tarde, sempre bem mais folgazonas do que os irmãos ou os pais. Elas tinham sempre mais tempo para si, e eram tão, mas tão divertidas. Com alguma sorte ainda conseguia ver aquele deus do Olimpo temporal, o sedutor e boémio Serão. Era um pouco convencido, mas a alguém com aquele corpo e aquela cara, perdoa-se qualquer peneira. Só de pensar nisso, já se distraía. E isso era coisa que não lhe perdoariam, nem sequer a Manhã ou a Tarde. Tinha de estar atenta. Odiava ser filha única. Única rapariga, entenda-se. Porque não tinha uma irmã, com quem dividir tarefas? Com quem partilhar a vida? Com quem trocar roupa e sussurrar segredos? Não. Como era apenas uma, só se safava à noite, em que os Minutos mais velhos se faziam passar por ela em alguns turnos, naqueles fins de noite mais chuvosos ou gelados, em que ninguém está tão atento. Fora isso, lá estava ela e o pobre Cuco, 24 sobre 24. No Verão, ainda era como o outro, mas no Inverno… Bolas! Era dose.
– Não te queixes. Os pobres dos Segundos, apesar de pequeninos são bem mais destemidos e sacrificados. A menina é que é uma mimada. Isso sim.
Caramba. A mãe parecia ouvir-lhe os pensamentos. Que horror.
Batem à porta. Seria já o médico? Não. Era o Espaço. Tinha ouvido a notícia e vinha saber como se deveriam coordenar para que aquela jornada não se distinguisse de todas as outras. O Tempo informou que a tempestade e o céu nublado, num opaco tom de negrume, se manteriam até que o Dia acordasse, sendo que o indicado seria juntar o Dia à Noite, a fim de que ele tivesse mais garantias de recuperar, principalmente sob os cuidados da mulher. Num prazo obviamente mais alargado, tudo apontava para que o Dia despertasse já em condições de trabalhar, avançando com a sua habitual alvorada. A prestável tia Aurora também poderia ajudar e já se mostrava disponível para se alongar um pouco mais. Tudo estava sob controlo, e até alguma neve poderia servir esse grande propósito, assim o Dia não piorasse. Conhecendo a determinação e a saúde de ferro jamais oxidado daquele pai de tantos, tudo sugeria que as melhoras não se fariam esperar. Um Dia de cada vez, como sempre, assegurava o Tempo, que nunca se dava por perdido, neste ou outros assuntos de monta. Sempre seguro e tranquilo. A essas características devia a sua infinita longevidade, sem princípio nem fim.
Mal se fechou a porta atrás do Espaço, e toda a família temeu que o chato, cusco e interesseiro do vizinho Humano não tardasse a aparecer também, com a sua enorme irritabilidade, demandas e exigências, sempre a sugerir possíveis processos indemnizatórios, prejuízos financeiros e mais um rol de coisas disparatadas que nem dava para acompanhar. Da última vez foi porque perdeu a Hora, quando esta jura a pés juntos e sem figas traseiras, que estava no local combinado, no momento exato em que deveria estar. Que foi ele quem se desencontrou, que falou o compromisso.
– Dou tanto tempo ao Tempo, que não entendo estas falhas de contrato. –, reclamava o enervado do Homem. Dessa vez, foi preciso vir a Noite para que ele se acalmasse. A Noite e uma garrafa de vodka, claro, que subornar humanos também não é difícil nem sai assim tão caro.
Maldoso foi quando lançou a calúnia de dormir nas Horas, o que a rapariga jura ser mentira, que jamais dormiu em horário de trabalho. E nem precisava jurar, Hora está sempre acompanhada e há questões de género que impossibilitariam tal promiscuidade. Isto é apenas revelador da estirpe humana, sempre pronta a denegrir em nome de um qualquer proveito mesquinho e absolutamente irrelevante para o grande quadro da vida. Por sorte, havia muitos homens bons, determinados a cumprir propósitos maiores, aliando-se para tal, às grandes forças reinantes: Tempo e Espaço.
Outro episódio, este bem mais hilariante e que todos recordavam quando o divertido Serão estava de visita, foi quando, certa vez, o homem encontrou o Tempo, que corria o seu jogging habitual, e o pobre achou que lhe ganhava. Aquilo é que foi uma corrida de obstáculos digna de ser mundialmente televisionada. Era vê-lo a tropeçar nos pequenos Segundos. Isso e assistir às incontáveis quedas devido às rasteiras dos Minutos. Claro que, logo que a Hora se meteu ao barulho, o Tempo já se tinha perdido de vista e estava mais do que para lá do alcance do Homem. O curioso é que o Homem nunca aprende. Por mais que se lhe faça ver as coisas, ele teima que consegue. Corridas contra o Tempo como esta eram diárias e risíveis.
– Bom, quem sabe, um dia consegue mesmo. Não se esqueçam do que ele fez ao Espaço. Em apenas dois milénios conquistou todos os metros cúbicos daqui aos céus.
O alerta era repetido pelo avô Tempo, íntimo dos fastidiosos, mas inteligentes Séculos e ilustre convidado das míticas tertúlias das Eras. Sábio e experiente, andava cá há demasiadas unidades temporais para não conhecer bem a resiliência do bicho Homem.
Daí a necessidade de rigor, que instigava a família a superar-se na exatidão e na retidão, e, por isso também, a gripe do Dia era tão preocupante e geradora de caos, tranquilizáveis apenas pelas calmas palavras dos mais antigos:
– Há Tempo para tudo e amanhã haverá um novo Dia. De preferência, sem desmaios.
– Caso os houvesse – alertou o médico –, tudo se resolveria. É apenas uma questão de Segundos. Não deixem que eles o acordem antes do Dia ser Dia.
Nisto, a voz materna, e os gestos de maestrina a recolocarem cada um nos seus postos:
– Vamos lá, cada segundo e cada minuto, estão a ouvir-me? Em três, dois, um… Tudo na Hora.
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