Linha 1

– Consultório de Evidências e Cartomancias da Angélica, em que posso ajudá-la?

– Bom dia. O meu nome é Idalécia e preciso muito da sua ajuda.

– Minha querida, estou cá para isso mesmo. Estudei quase duas semanas da minha vida, precisamente para poder ajudar o próximo e o distante. Não foi à toa que andei a queimar pestanas, se bem que isso deveu-se a um caso de violência num estádio de futebol, que envolveu petardos e dois ex-amantes, que agora não virá muito ao caso, ou vem, minha querida?

– Bom…

– Adiante, adiante, que já lá vai um minutinho de chamada de valor acrescentado. Diga, então, meu amor, o que a inquieta? Qual é o seu dilema?

– Gostava de…

– Alto lá, alto lá. Não estamos aqui para atender a gostos pessoais. Ou quer ver algum problema resolvido ou não quer ver qualquer problema resolvido! Vê como domino bem o português e toda esta questão da dupla negação? É para ver que está em muito boas mãos, minha amiga. Diga lá, então, mas com clareza, qual é o seu dilema?

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– Preciso…

– Lá está, novamente, com encanitamentos desnecessários. Aqui, não suprimos necessidades, apenas e tão-somente resolvemos problemas. E quando digo problemas, digo questões sérias, de vida ou de morte, de amor ou traição, de saúde ou doença. Seja clara, minha querida Idalécia, para que não haja mais confusões. Somos um gabinete seríssimo.

– O meu dilema é o amor.

– Vê?! Vê como não custa nada (além da chamadita eu cá vai somando e seguindo)? Muito bem, e qual a questão amorosa que a levou a telefonar e a gastar, até ao momento, cinco minutinhos de chamada de valor acrescentado à minha conta bancária? Sem rodeios, vamos lá.

– Desconfio que o meu marido me trai e gostava que me desse a certeza acerca dessa desconfiança e, caso seja verdade, que me ajudasse a recuperá-lo, a tê-lo de volta só para mim.

– Minha querida, vai ter de optar, ou quer ter a certeza, o que é um dilema, ou vai querer que lho devolva, outro dilema, e eu apenas resolvo um dilema por telefonema. É, inclusivamente, esse o nosso lema, tal como vem no anúncio de jornal, que deve ter sido onde a minha querida viu o número de telefone, certo?

– Ah, mas não acha que é apenas uma e única questão? Um problema único? Ele poder andar a trair-me?

– Não. São dois dilemas. Vamos lá, tem de optar. Posso aguardar, dar-lhe uma musiquinha, enquanto pensa, atender outro telefonema, no entrementes, e já voltamos à conversa. O que me diz? Deve ser o melhor. Não desligue que eu já volto a falar consigo.

– Cremilde, coloque música na linha um e passe-me a linha dois.

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Linha dois

– Consultório de Evidências e Cartomancias da Angélica, em que posso ajudá-la?

– Olá, preciso de saber onde deixei as minhas chaves de casa, pode ajudar-me?

– Bolas, que você é direto! Nem um interludiozinho para meio minuto de chamada de valor acrescentado?

– Estou sem tempo, sabe, e barrado à porta de casa e cheio de pressa para entrar, que ainda tenho um ‘arruzinho’ de pato para fazer…

– Disse ‘arruzinho’?

– Sim.

– Então, as chaves da sua casa devem estar no recreio da escola primária que você abandonou na segunda classe.

– Como sabe tudo isso?

– Meu querido, a Angélica sabe tudo. De qualquer forma, para que não vá em vão e a chamadinha não fique já por aqui, deixe-me deitar-lhe uma chávena de chá…

– Chá? Não gosto de chá!

– Meu querido, não é para si, nem sequer o poderia fazer, percebe isso, não percebe? Não estamos na mesma sala. O chá é para mim, que ainda não tomei o pequeno almoço e, assim, aproveito e leio-lhe as folhas no fim.

– Ah, claro.

– Aguarde só cinco minutos, a água já ferve é só o tempo de bebericar a infusãozinha.

…..

– A Angélica está de volta, meu amor. As folhas do chá, confirmam. Vejo nelas um edifício com traça do Estado Novo e este tem portas, logo, tem fechaduras, logo… tem as suas chaves. Vá lá ver e depois ligue-me. Não se esqueça de ligar, para a Angélica poder dar baixa da ocorrência, aqui no computadorzinho, ok?

– Com certeza. Muito obrigado. Salvou-me a vida.

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Linha 1

– Querida Idalécia, Angélia está de volta. Já decidiu?

– Sim, sim. Quero, para já, ter a confirmação da minha suspeita. Não, não. Faça já qualquer coisa para que ele só tenha olhos para mim, matamos, assim, dois coelhos de uma cajadada só.

– Hã, hã!! Estava a ser mais sensata quando pediu para ter, primeiro, a certeza. Assim, falamos agora uma meia horinha, que deve ser o tempo de lhe ler as cartas e, depois, caso se confirme, desliga e volta a ligar-me para novo dilema. Não é mais razoável? Imagine que o pobrezinho, afinal apenas a ama a si e a ninguém mais? Não seria cruel partirmos logo para a matança de corujas e leite de burra para a mezinha?

– Pois, não sei, talvez tenha razão…

– Claro que sim, a Angélica nunca se engana.

– Não é o Cavaco?

– Como?

– Não é o Cavaco quem nunca se engana?

– Eu também nunca me engano, ou prefere ligar ao Cavaco para que ele lhe leia a Maria? Hahaha, agora tive muita piada, não acha?

– Diga-me, então, se estou a ser traída ou se tudo não passa de imaginação e excesso de cansaço.

– Vou ler-lhe as cartas, minha querida. Vou tirar uma ao calhas. Cá está. Esta parece-me bem. A carta diz e passo a citar: “Milézimo BCP extrato de conta, contrato número 78534…

– Desculpe-me, Angélica, está a ler-me uma carta do banco?

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– Claro que sim. Angélica sabe ler o passado, o presente e o futuro em qualquer tipo de carta. Tirei esta formação, precisamente por correspondência, e nunca, nunca falha. Agora atrapalhou a leitura, vou ter de me concentrar de novo e tirar outra carta. Desta vez, não me interrompa, está bem, meu amor? (Concentra-te, Angélica, concentra-te…) Nova carta. “Querida Maria dos Anjos, fica sabendo que não vou mais aguardar que saldes a dívida colossal que tens comigo e que dei entrada com um processo em tribunal a fim de reaver tudo aquilo que me deves…” Ora, cá está: incompreensão, envenenamento, a maldita inveja e injustiça. Minha querida, as cartas não mentem. O seu marido tem outra mulher, mas ama-a a si. Vejo ainda que alguém próximo está envolvido em tudo isto, mas para saber melhor, teremos de voltar a falar, porque atendemos apenas um dilema por telefonema, certo, minha querida?

– Mas…

– Um muito bom dia para si, agora mais calmo, já que tirou esta dúvida da sua cabeça, agora já tem certezas, e fico a aguardar que a Idalécia me volte a telefonar. Beijinhos meu doce.

Linha 3

– Consultório de Evidências e Cartomancias da Angélica, em que posso ajudá-la?

– Boa tarde, preciso da sua ajuda urgente.

– Primeiro tem de ajudar a Angélica. Qual o seu nome e idade, minha joia? Sem um mínimo de dados, não conseguirei entrar em contacto com as energias superiores.

– Chamo-me Gertrudes, tenho 39 anos, sou anorética, vivo com os meus pais e sou frígida.

– Minha querida, mas isso são demasiadas questões para um único telefonema. A Angélica apenas resolve um dilema por telefonema, como é sabido. Quer então, resolver os problemazinhos de saúde, não é? A anorexia ou a frigidez? Ou prefere o amor, a fim de sair da casa dos pais?

– Nada disso. Estava apenas a dar-lhe o meu BI, por assim dizer. Convivo bem com todas as minhas idiossincrasias, senhora D. Angélica…

– Dr.ª, minha querida. Dr.ª Angélica, tenho diplomas que já nem me cabem nas paredes da marquise. Então, diga lá que não entendi. O que pretende?

– Dr.ª Angélica, estou sem ideias para o jantar, é isso que me apoquenta, e já estou a entrar numa espiral maníaco-depressiva que, por norma, sei bem onde conduz: a ataques de pânico que me imobilizam por completo. Tem solução para o meu problema? É um caso seríssimo, bem sei, mas ouvi falar tão bem de si que…

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– Minha querida. É um dos mais complexos dilemas que recebi nos últimos anos, devo dizer-lhe, mas estou cá precisamente para o impossível. O possível é para o comum dos tipos. Bom. Dada a dificuldade do tema, terei de lhe deitar os parafusos. Pode demorar, vai ter de ser paciente.

– Compreendo, eu aguardo o necessário, mas atente nas horas, pois se for algo de difícil confeção posso entrar em hiperventilação devido ao stress.

– A Gerturdres não me pressione dessa maneira. Quer rápido ou bem?

– Desculpe, é que sou muito ansiosa e com tendências depressivas, nem sempre me controlo.

– Pois bem, mas vamos com calma que eu sou um ser hipersensível e com laços com o universo espetral, que não se rege pelas mesmas leis de trânsito que nós, só para lhe dar um exemplo. Vou buscar a caixa de ferramentas, já volto a falar consigo. Vou deixá-la com o som das baleias para acalmar, ou prefere um relato de futebol do Artur Agostinho?

– Ah, não tem o tema do genérico daquela novela do ‘Sinhozinho Malta’? Isso costuma acalmar-me.

– Você já me está a enervar e deitar os parafusos requer toda a minha concentração. Vai ficar com o que houver, que isto aqui não são discos pedidos, está bem, meu bem?

(Meia hora depois, já com o almoço tomado)

– Gertrudes? É a Angélica. Trago-lhe ótimas notícias. Os parafusos foram claríssimos. Corriam para as porcas que nem loucos, nunca tive uma sessão assim. Resultado, pode ir desde uma bela pá de porco no forno a uma apurada carne de porco à alentejana.

– Que maravilha! Salvou-me a vida, só lhe digo.

– Ainda bem, é que fiquei exausta, mal consigo falar, como se percebe. Fique bem, Gertrudes e caso queira resolver algum outro dos seus milhares de dilemas, não hesite em voltar a ligar à Angélica, está bem?

– Não se apoquente e será mais breve do que imagina. É provável que tenha um jantar fora, ainda este ano, e não sei o que levar vestido. Falaremos então, não tenho a menor dúvida. Obrigada. Agora, tenho mesmo de ir ao talho.

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Linha 4

– Consultório de Evidências e Cartomancias da Angélica, em que posso ajudá-la?

– Bom dia. Chamo-me Odete e tenho um dilema.

– Diga, então, querida Odete.

– Estou a sofrer muito de amor. Desconfio que sou lésbica, mas amo muito o meu marido. Sinto-me tão perdida e baralhada! Por um lado, um desejo selvagem que anseia por novas experiências, por outro, a doçura de um casamento perfeito. Tão perfeito que gostamos ambos dos mesmos desportos, dos mesmos vestidos, de sapatos de salto agulha, de renda de bilros – somos, de resto, exímios artesãos…

– Troca de roupa com o seu marido, minha querida?

– Sim. Acha estranho? Alguns dos nossos amigos não entendem bem a dinâmica do nosso amor, mas a verdade é que me sinto muito feliz.

– Não acho, de forma alguma, estranho, apenas perguntei, porque nesses casos o mais eficaz é lançar as conquilhas e, neste momento, só tenho lingueirões, que sobraram do jantar de ontem. Não me pode ligar amanhã?

– Não. Amanhã, temos um workshop de maquilhagem e o meu marido e eu estamos ansiosos, além de que é o segundo de três módulos. Não vai dar para perder a marcação.

– Ah. Compreendo. Já sei, vou deitar-lhe esponjas de banho. Sabe que a Angélica é mulher de criatividade e cheia de recursos.

– Esponjas de banho? E funciona?

– Claro que sim! Há que saber lidar com as forças do universo. Como lançar esponjas soa parecido a lançar conchas… Além de que funcionam muito bem na ausência de fusos…

– Não queria dizer búzios?

– Não, minha bolachinha de manteiga. Fusos. Fusos horários. Não há melhor para casos como o seu, de indefinição de sexo. Também funciona lindamente para situações de cálculos renais.

– Ai, sim?!

– Nem imagina como, Gertrudes! Aguarde-me, então, terei de pedir a todos os vizinhos do condomínio, para recolher as esponjas mais indicadas. Tenho de respeitar uma certa calibragem, sabe?

– Claro que sim, fico a aguardar.

(Treze horas depois e uma sesta pelo meio)

– Gertrudes, está aí?

– Angélica?

– Dr.ª Angélica, se não se importa, que isto dos títulos, mais ainda quando são do tesouro, são para levar muito a sério, não lhe parece? A mim, sim.

– Dr.ª Angélica, temi que algo lhe tivesse acontecido.

– E aconteceu. Não encontrei esponjas em número suficiente e em tamanho indicado. Tive de lhe deitar gin.

– Disse gin?

– E, isso, funciona?

– A Gertrudes já me começa a maçar com tantas dúvidas. Se não confia, pode ligar para aquelas bruxas fanfarronas da televisão, é isso que quer? Olhe que, por mim…

– Não, não. Não se enerve. Era apenas mera curiosidade e incredulidade.

– Você quase nem merece a carraspana que tive de apanhar, a fim de me tornar eu própria a esponja e poder deitar-me às forças do universo. Valeu a pena. Entrei num transe incrível. Vi tudo. Estive olhos nos olhos com todos os seus chakras, que lhe mandam cumprimentos, já agora. Do outro lado do universo trago a resposta a esse seu gigantesco dilema. O maior das últimas 13 horas, só lhe digo…

– Resolveu outros dilemas enquanto eu aguardava?

– Quem disse? Gertrudes, o seu discurso começa a incomodar o meu lado místico, a resposta que trazia começa a perder a força com tanta suspeita e insinuações indiretas…

– Por favor, não se irrite. Tenho muito poucos filtros e isso, como vê, por vezes interfere. Não dê importância e diga-me, por favor, qual a resposta.

– Mudança de sexo.

– Como? Mudança de sexo? Para quem? Para o meu marido, ou para mim?

– Tanto faz, não lhe parece, amor?

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