Celina descobriu cedo como fazer undo na vida. Aconteceu por mero acaso. Sem calculismos ou premeditações. Aconteceu apenas, mas aconteceu logo na sua fórmula mais correta. De forma pura. Genuína. Autêntica. Era a receita original. Sem necessidade de aprimoramentos. Já lá estava tudo. Um sorriso dócil, um pedido de desculpas sincero, ou percecionado enquanto tal, olhos brilhantes de súplica fixos no interlocutor, lamentando ainda mais do que as palavras proferidas, e o mundo retrocedia, voltando ao ponto exato onde estava antes da asneira dita, do erro cometido, da falha praticada, do golpe disferido, da injustiça incutida ou da palavra desadequada e inoportuna. Era a tecla undo do computador aplicada à vida. Com isso vinha a liberdade de ser, agir e dizer. Era incrível! Podia ser absolutamente livre. Ser exatamente como era e agir como lhe aprouvesse. Reagir como bem lhe sugerissem os apetites do momento e ditassem os caprichos. Sem reservas ou empatia, apenas vísceras a monte num turbilhão que podia chegar ao insulto, à ofensa. Pior. Podia chegar à insensibilidade, ao ‘quero lá saber’.
No seu caso, o undo tinha surgido de forma intuitiva. Natural. E era estupidamente simples, descomplicado e surpreendente até. Assemelhava-se a um simples rebobinar, que se podia acionar quase apenas com um único dedo, enquanto se fazia outra coisa em simultâneo. Um olhar doce, palavras poderosas e acertadas, como as que os argumentistas escrevem nos guiões que os atores hão de ler e interpretar, colocando nelas sentimentos inventados com ou sem método, e parindo-as sem dor, como se vindas do céu das palavras e de todas as letras do alfabeto. A chave estava na paixão e na entrega, como em qualquer bom desempenho. Só um bom fingimento gera no outro a correta perceção, o sentimento necessário, a empatia e compreensão. Por vezes, sentia, de facto, o que dizia, pois não suportava a mágoa e o desconcerto nos olhos dos outros. Dos seus interlocutores. Daqueles que amava, pois era mais difícil esquecer os olhares destes do que os dos desconhecidos que se cruzavam com a sua forma direta de falar ou com a sua ira e destempero. Finda a onda gigante soprada a vendaval e com coração de tempestade, surfava, então, a calmaria das pazes. Do undo.
‘Estou realmente arrependida’, diria. ‘Não sei o que me deu para ser tão irracional e maldosa. Jamais sentiria um milésimo do que te disse. Desculpa, ou morrerei.’ Não morreria. Ela sabia-o. Os outros também. Ela não morreria. Ninguém morreria. Ninguém morre por despejar a bílis. Parece mesmo que isso dá vida e fornece energia. Ninguém morre com a estupidez dos outros nem com a maldade verbal. Não vale um espirro sequer. Morreria, porém, algo de indizível, de pouco palpável. Algo lá dentro esmorece e morre de verdade, lá bem no fundo da alma, ou de qualquer outro recetáculo onde acarinhamos os que nos rodeiam, enquanto não chega ordem de despejo para um qualquer esconso num outro andar sentimental. Nesse lugar seguro e único no mundo, todos os dias brotam e morrem coisas. Pode começar por ser uma porção ínfima de qualquer nano-coisa. Uma quase invisível cerda, a retração ou dilatação de uma gotícula de amor, incluindo de amor-próprio, uma amostra de perceção de algo. Não se dá logo por ela ou, dando-se, não lhe prestamos atenção, aguardando que passe, porque muitas coisas passam mesmo, sem recurso a terapêuticas ou preocupações. Deixamos de pensar nelas e elas simplesmente se somem. Puff. Magia pura. Outras vezes, porém, a coisinha pequenina, como grão de areia em movimento e ambições de sedimentação, adensa-se, lembra-nos da sua presença, da sua inefável existência. Assim percebemos a paixão. Assim percebemos o fim do laço que nos une aos outros. Devagarinho, de forma insidiosa e pouco consistente, o grão de areia é promovido a cálculo renal, e erguem-se bandeirolas vermelhas a requererem intervenções cirúrgicas radicais, ainda que rotineiras. A pequena atração ganha perfil de amor de uma vida pelo qual tudo vale a pena, incluindo morrer, como defendem os corações românticos e os espíritos dramáticos. Enquanto isso, a pequena traição precipita-se no desfiladeiro da rutura e do fim e nada repõe a realidade anterior. Mesmo que o queiramos, simplesmente não acontece, porque nem tudo depende da vontade. Nem mesmo da nossa.
Com Celina nada disso acontecia. Letrou-se em todo o tipo de teclados, qwerty ou azert, diversos códigos, do morse ao braile, todas as fontes de letra, e em qualquer espécie de formatação. Qualquer que fosse a situação ou tipologia, o resultado era o mesmo. Sempre que necessário, era só apagar e voltava atrás no tempo. Viajava para lá da indiscrição e tudo retomava a batida da prosa normal. Curiosamente, era sempre prosa. Era-lhe difícil conseguir a poesia e nisso começou a reparar, mas sem alarmes ou dramas. Prosa era mais direta. Não deixava margem para dúvidas, nem equivocava sentidos, nem baralhava significados. Tudo muito certo, claro e objetivo e sempre bastante esclarecido.
Celina era uma expert a quem o tempo, somado ao número de casos, aguçava o engenho e a habilidade. Tinha a vida presa por nós num extenso encadeado de viagens no tempo. Não se aventurava apenas no curto prazo, regressando alguns segundos ou minutos no tempo. Aventurava-se, sem pestanejar, em longos trajetos às arrecuas, gritando de entusiasmo com a ventania que lhe desgrenhava os cabelos e distorcia as bochechas. Recuos breves ou longínquos para voltar a ligar as pontas que haviam ficado soltas. Dava quase sempre por elas. Pelos locais onde o fio tinha sido cortado, com aguçados x-atos ou rombas tesouras. Com macabros bisturis ou alicates de poda. Por vezes, roía-o como fazia às unhas e peles dos dedos. Nada que não tivesse remédio, mesmo quando as pontas se encontravam já um pouco afastadas. Bastava um pouco de pressão, fazer com que se tocassem e logo encontrava energia para forçar o nó. Tinha até tipologias de nós. Alguns eram verdadeiras encriptações, nós de porco, daqueles que quanto mais pressão se faz na corda, mais eles se apertam. Outros, em situações menores, de baixa estima, ficavam um pouco laços, mas desde que não se abanasse muito a corda, resistiria ao tempo, desde que algum funâmbulo não se aventurasse em mais um qualquer record. Nunca acontecia. Os seus undos eram já de profissional.
Um dia – há sempre um dia –, estava em pleno processo de regressão temporal a uma pequena ferida, a que nem Celina tinha dado particular atenção, quando percebeu que não estava a conseguir que as pontas se tocassem. Sem isso, ser-lhe-ia impossível sequer tentar o nó. Não estava a compreender. Entrou em pânico. Carregava em ctrl+Z, mas não ocorria o previsível undo. Forçava as lágrimas, amornava ainda mais a meiguice do olhar, acentuava cada sílaba de des-cul-pa, trocava-a pelo mais dramático perdão e nada. Sublinhava absolutos, como ‘nunca’, ‘sempre’ e ‘jamais’. Nada encetava a marcha atrás, nada se movia na desfeitura da tragédia, nada facilitava a distensão das duas pontas até ao ponto de união imprescindível. Celina estava incrédula. Mais do que isso, confusa. Todos os seus recursos e capacidades se esgotavam. Carregava nas teclas com mais pressão. Seria culpa do gasto teclado. Seria falta de firmeza na mão. Soluçou de forma dramática. Nunca o tinha feito antes. Seguramente que funcionaria. Fê-lo, todavia, por emergência sentimental, por confusão pessoal, por estar a experimentar um ataque de ansiedade, até então desconhecido. Soluções de frustração e não já para remediar a situação. Era só mais um namorado. Arranjaria outro. Aliás, já tinha outro, daí todo aquele melindre. Claro que o outro não interessava. Este sim. Por isso precisava desesperadamente daquele nó. Mais do que qualquer outro. Dependeria daquela ligação? Soluçou de irritação, por já não conseguir viajar no tempo. Era uma viagem de poucas semanas, porque não estaria a resultar? Tudo em vão. Tudo vão, agora.
No cérebro de Celina emergiam já medidas de contingência, planos de B a Z e ainda estratégicas saídas de emergência. Treinava agora a técnica do copy-paste de todos os undos bem-sucedidos, os primeiros, os realmente sentidos e com sentido. Com real significado no seu peito, os que encontravam sinónimos majestosamente adequados no seu discurso e alguns ecos no peito. Replicá-los-ia para continuar a enozar a sua existência. Não vislumbrava outra alternativa. Copy-paste, copy-paste, repetia.
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