Não entendia tanto drama em torno de um assunto que apenas a si dizia respeito. Um assunto privado, praticamente íntimo. Porque haveria toda a gente de ter uma opinião sobre o tema? Porque debitavam postas de pescada para cima da sua vida? Logo ela que sempre soubera o seu lugar e esse era dentro das paredes da sua existência e não a espreitar a janela dos outros, menos ainda a dar-lhes palpites sobre decoração ou a criticar-lhes a escolha das cores das paredes. Não havia noções básicas de educação minimamente universais? Autoavaliem-se, autocritiquem-se, mas deixem os outros em paz. Que maçada de gente! Hipócritas desocupados. Se tivessem passado toda uma vida absorvidos com a urgência da fome e do medo da rua, não teriam tempo extra para opinar sobre a vida de terceiros ou segundos. Quando a fome é premente, apenas o estômago ocupa a cabeça.
Era nova, muito nova, tinha um corpo primaveril e a mente arguta para a necessidade – mais do que isso, para a urgência – da sobrevivência, quando aquele estrangeiro lhe prometeu a possibilidade de um sonho. Um ser, o primeiro, que olhara para ela como gente, como pessoa, como mulher. Até então, apenas um corpo, uma pobre, uma miserável transparente, daquelas que os olhos alheios trespassam, sem ver, sem reter a opacidade de outro ser vivo. A pobreza é invisível aos olhos de todos. Apenas os pobres conseguem ver os outros pobres e mesmo dentro da pobreza se vão estabelecendo hierarquias. Há aqueles que subsistem, os que sobrevivem e aqueles que nem isso. Os que ainda têm teto, os que não o têm e aqueles que nunca o tiveram. Os que têm família, aqueles que a perderam e os outros que nunca a conheceram. Os que conseguem o pão e o arroz quase todos os dias, aqueles que fingem ter e os outros, aqueles que peneiram o lixo, respigadores profissionais. Tudo isso e mais não sei o quê – que a soberba humana inventa escalões em quase tudo o que possa servir de distinção – e lá se vão atribuindo patentes de pobreza e de hierarquização. Somos uma espécie lamentável. Situada mais para o fim do que para o início desta tabela de importância humana, numa sociedade impiedosa, naquele Top Sem (com S e não com C) dos pobres de entre os pobres, claro que Clementina se sentiu humana quando aquele homem mais velho a olhou com olhos de quem a via realmente.
Claro ainda que se enalteceu com a sua proposta de comida diária e uma cama onde repousar as agruras de um passado de miséria e de um futuro que não se adivinhava melhor. Os pais incentivaram o romance e anuíram com alívio, aceitando de mão estendida aquilo que entenderam ser um dote pela mão e restante corpo e alma da filha. Sim, mais ainda pagando, mais valia que o homem levasse logo tudo, que naquele casebre ainda havia mais filharada a quem cuidar do destino. Clementina – porque era filha de um Clemente e de uma Argentina – achou que era feliz. Achou apenas, já que por total desconhecimento daquela despreocupação que permite exaltações de alma, achou que aquilo que sentia, aquela espécie de liberdade, era aquilo que os outros chamam de felicidade. Foi com aquele senhor mais velho, praticamente seu marido, para o estrangeiro e isso era triste e excitante a uma só vez. Tudo junto e baralhou-se achando, como dizíamos, que era feliz.
O sítio para onde foi não era, em nada, diferente daquele que conhecia. Quer dizer, era bastante diferente. Tudo era distinto daquilo que tinha conhecido até então. O clima era frio, inóspito e nada convidativo. As roupas que exigia eram feias, pesadas e escuras. As casas eram grandes, mas descoloridas. Aquecidas, mas pouco convidativas com as suas enormes trancas nas portas e gradeamentos nas janelas. Tudo lhe parecia a preto e branco. A pobreza tem a vantagem de ser colorida. Quem nunca sentiu a vibração de um bairro da lata, de uma corda de roupa de gente pobre a tentar esvoaçar ao vento, não percebe a alegria que isso pode trazer pelo garrido que cola na alma das gentes.
As próprias pessoas, todas bem alimentadas e agasalhadas, pareciam tristes e deslocadas. Saindo, apressadas, de uma casa para apenas entrarem noutra e isto sucessivamente. O dia todo. A vida toda. Coitadas. Porém, tirando essa primeira camada visual, esse polimento que inicialmente é esmagador, as pessoas, essas eram tão beras quanto aquelas que conheceu toda a sua vida, piores ainda, se possível. A forma como a olhavam era assustadora, Ela, que tinha passado da quase total invisibilidade para a opacidade dos olhares de estranhos, sentia-se esmagada com tanto escrutínio. Não apenas a viam como a olhavam e ainda sobrava espaço e tempo para a avaliarem. Tudo isto, sem a ela se dirigirem. Sem com ela falarem. Sem a conhecerem. Que era uma carteirista. Que tinha seduzido o velhote. Que pretendia aguardar a sua morte, senão mesmo apressá-la, para ficar de bem na vida. Que além dela o pobre coitado teria ainda de sustentar toda uma família de vira-latas, indigentes, criminosos… Para o muito que ouviu e o outro tanto que adivinhou não estava Clementina preparada. A pobreza cria uma carapaça nas pessoas, nega-lhes até a possibilidade de humilhação, mas não as deixa imunes à maldade e ao escárnio.
Também ela poderia dizer coisas tremendas sobre aquele senhor, quase seu marido. Poderia dizer que se aproveitara da sua pobreza e ausência de futuro, para conseguir uma mulher jovem, em idade de poder procriar, bonita e sexualmente apetitosa. Não fora a sua pobreza e jamais aquele homem velho conseguiria, entre os seus pares, mulher igual. Qual dos seus vizinhos estaria disposto e ceder-lhes uma jovem filha como ela? Quantos aceitariam que aquele avozinho satisfizesse os seus desejos íntimos e mais estranhos com as suas filhas adolescentes? Não lhe chamariam pedófilo? Tarado? Não interviriam as autoridades? O escárnio não cairia apenas sobre o velho senhor? Todos os pais querem o melhor para os seus filhos, sendo que a avaliação desse melhor varia conforme as necessidades de cada um. Mesmo aqueles empertigados, por outro lado, não aceitariam de bom grado e também eles de mão estendida, um velho na família se ele tivesse fama, estatuto e dinheiro? O que dizer ainda sobre o amor? Não é este de tal forma caprichoso e endiabrado que pode unir pessoas que jamais imaginaríamos juntas? Porque acham mais odiosa e recriminável a ideia de uma pobre se casar com um velho rico, ou apenas mais rico, quando aceitam como norma que os filhos de duas famílias ricas e poderosas ‘escriturem’ casamentos, mesmo quando não se amam? Há alguma diferença de moral? Não enchem os ouvidos dos jovens dizendo-lhes que o amor se constrói? Que se alimenta? Porque teria tudo isso de ser diferente com ela, Clementina do Rosário? Odiava aquela gente. Mesmo entre si, os ricos também estabelecem escalões e determinam critérios. Muitos não aceitam apenas como suficiente o facto de serem ambos do mesmo estrato social e bancário.
Exigem ainda que as jovens casadouras sejam bonitas, elegantes, magras e sofisticadas. Uma gordinha, ou feioza, ou desengraçada não é vista com bons olhos pelos top models das finanças e do social. Se os homens anseiam por mulheres estonteantes, porque recriminam as mulheres por quererem homens de posses? Não se trata do mesmo princípio? Isso vem das cavernas. As fêmeas procuravam proteção e bons genes, e eles mulheres férteis. Parecia a Clementina que tudo se resumia ao mesmo. Acontece que ela era pobre entre os pobres e isso nota-se nas pessoas, tanto quanto a sua altura ou a cor da sua pele. É uma marca indelével e absolutamente criminosa aos olhos de quem não passou privações. Colocam-se logo num patamar superior, onde pobre não cabe. Mas cabe. Até porque os pobres têm pernas com igual alcance e sabem e ambicionam subir degraus. Tantos quanto lhes for possível. Temos pena, mas é assim.
Não tardou a que Clementina encontrasse as suas próprias armas para se defender e até para atacar, sempre que achava conveniente. Uma das suas frases prediletas, a qual largava sempre que necessário era:
– Mais vale pobre do que idiota. Um pobre pode enriquecer, já um idiota jamais ganhará inteligência.
A qual rematava sempre com um retórico “Não acha?” Achavam, claro que sim, apenas não o podiam repetir. Clementina achava mesmo que Deus, em quem acreditava piamente, tinha uma regra de compensação. Aos pobres dava argúcia e um afinamento de sentidos e de esperteza que faltava aos mais afortunados. Havia quem lhe chamasse escola da vida, mas Clementina sabia que era Deus a colocar aquela gente arrogante no seu lugar devido, que era lado a lado com todos os outros.
Tentando ser imune e passar incólume a todos os olhares de reprovação que nela repousavam sempre que se apresentava com o seu velhinho, Clementina tratou de fazer feliz aquele homem. O primeiro que viu nela aquilo que ela própria suspeitava ter: beleza, juventude e caráter. Amavam-se com ternura e gratidão. Claro que num outro tipo de amor, a gratidão não é percetível, ou necessária, mas ambos agradeciam a sorte de se terem um ao outro. Ela experimentava privilégios e atenções a que jamais poderia aspirar de outra forma, e ele tinha a seu lado uma companheira jovial, divertida e que não se incomodava com a sua idade. Pode dizer-se que eram felizes. Ciente de todas as críticas, o velho senhor tratou de aumentar a autoestima de Clementina e começou por insistir na sua formação, levando-a até à universidade e ao altar, para calar outro tanto falatório por parte de moralistas e falsos cristãos.
Por razões demasiado óbvias, o senhor morreu bem antes de Clementina chegar sequer à fase madura da sua vida, deixando-a numa situação financeira confortável. Nesse ponto – como é curiosa e falsa a natureza humana –, muitos dos anteriores delatores de tão escandalosa e escabrosa situação ‘amorosa’, passaram a lançar-lhe olhares gulosos, incluindo vizinhos casados e patrões empertigados, julgando-se acima do defunto apenas por serem, imagine-se, mais novos. Clementina podia ter vida curta, estaria ainda no início dos 30, mas curta não era a sua experiência ou memória, pelo que desdenhou de todos aqueles homens de índole duvidosa, gozando o prato com calculismo. Só à conta de alguns mal-entendidos que alimentou, foram três casamentos muito católicos à vida. Uma inocente mensagem no atendedor de chamadas dos vizinhos da moradia mesmo ao lado da sua, lançou napalm num casamento de fachada. Nele pedia desculpa por não poder aceder aos insistentes convites para jantar e se encontrar com o vizinho. Sonsa, dizia, na bem planeada mensagem, agradecer toda a boa vontade que o homem manifestava em ajudá-la a ultrapassar o luto, mas não achava nem decente, nem oportuno sair naquela fase dolorosa da sua vida, além de que as pessoas poderiam não entender a bondade daquele tão prestável vizinho.
Noutra situação, com outro prestável ‘amigo’, que considerou mais útil animá-la do que ficar em casa junto da mulher acabada de dar à luz gémeos, deixou propositadamente uma écharpe perfumada esquecida do carro, certa vez que aceitou uma das inúmeras ofertas de boleia. Nem meia hora depois, sem que desse tempo a que a mesma fosse descoberta pelo homem e entregue sem que a mulher deste desse conta, tocou à campainha de casa do dito casal e, com a maior descontração, relatou o sucedido e, se não fosse incómodo, ele que visse se a écharpe não teria ficado esquecida no carro. Aproveitou ainda para dizer à mulher a sorte que tinha por ter um marido tão gentil, um homem que se tinha mostrado incansável em dar-lhe a mão desde que ficara viúva. Agradeceu os mil agradecidos e saiu de lá com um largo sorriso no rosto. Do terceiro nem Clementina deu conta, já que a primeira a perceber o interesse do marido naquela jovem viúva tinha sido a própria mulher do fulano. Apenas mais tarde, numa investida frontal, o próprio lho confessara, enquanto quase mendigava um lugarzito na vida de Clementina. Os anos de abastada tinham-lhe ensinado tanto sobre a natureza humana quanto os de pobreza sobre os mesquinhos mecanismos que a fome tem para nos moldar.
Rebentou o escândalo e a inveja quando Clementina começou a ser vista com um homem mais jovem. Habituada a não ligar a esse tipo de detalhes, a ainda muito sedutora viúva tinha-se apaixonado por um rapaz. Um jovem músico em início de carreira e de vida. A diferença etária não se comparava àquela que separara a sua juventude da velhice do seu primeiro marido, mas numa mulher tudo pesa mais, tudo é mais criticável, e o caso foi tão repudiado como teria sido um qualquer caso de incesto ou violação. De tal forma que muitos dos até então amigos se afastaram de Clementina. Nada que ela esperasse, mas também nada que verdadeiramente a chocasse. Não se casou com o jovem, até porque não queria voltar a ser mulher de quem quer que fosse. Era agora e pela primeira vez independente. Sim. Na sua vida, a verdadeira independência surgiu apenas depois da viuvez. Enquanto esteve casada, e ainda que amasse o marido, sentiu sempre o peso da gratidão, uma certa ideia de subserviência. Um sentimento bastante feminino. Ensinadas que são a achar-se de menos e a serem, de facto, tratadas de menos em relação aos homens, quando as olham de igual para igual, acham sempre que isso é um extra a agradecer ao homem. É pena. Bem o sabia. Mas tinha sempre sentido esse qualquer coisa. Agora, queria apenas ser desejada e poder, também ela, ajudar outra pessoa a conseguir os seus sonhos, ou, pelo menos, a dar-lhe apoio na sua caminhada. Também era amor. Tanto que durou cerca de dez ou mais anos, que o amor não se contabiliza dessa forma, por mais que se insista. Durou bastantes felicidades, dizia antes Clementina. O seu músico foi tocar para outras bandas, mas mantiveram-se sempre por perto. Sempre em contacto. Sempre a apoiarem-se e amarem-se, mas de outra forma, não obstante algumas recaídas sexuais e, até, eventualmente reprováveis, mas isso são outros quinhentos e Clementina não é mulher de preconceitos, nem de trocos como já se percebeu. Com este jovem amor, recuperou parte dos anos que lhe tinham sido roubados.
Embriagou-se pela primeira vez, deixou de se aprisionar nas horas, soltou-se de amarras e foi, pela primeira vez, jovem, livre, descomprometida e sedutora.
Sempre vista de lado. Sem nunca aceitarem o seu devido lugar da vizinhança, quanto mais na sociedade, a estrangeira Clementina, viúva alegre de um velho e amante escandalosa de um miúdo, percebeu que de nada valia afastar-se do preconceito. Ele estaria sempre por perto. Moraria sempre na casa ao lado, ou no andar de cima. Aquilo que as pessoas sabem não lhes agrada e aquilo que desconhecem recriminam. Uma tristeza. Mas nada que a impedisse de seguir caminho. Ganhava o seu sustento, o que lhe permitiu superar a verba que o seu único marido lhe tinha deixado. Nada devia ao mundo. Sustentava aqueles que na sua família continuavam a lutar com dificuldades e ajudava todos os verdadeiros amigos. Apenas três, para usar de rigor. Todos conheciam a sua história, o seu percurso e a forma corajosa como jamais se vitimizara, não obstante o muito que tinha perdido, a começar pela infância, passada com o estômago no lugar do cérebro, e a acabar na família, deixada para trás. Tão para trás que já quase não era sua.
Ainda jovem, e cada vez mais bela e sofisticada, a agora bióloga, continuava a ser insistentemente cobiçada. Se a vida lhe tinha ensinado algo, era que a felicidade tem de começar em cada um. Que não pode nem deve estar na mão de terceiros. Tudo começava e acabava nela própria, pelo que jamais procurou no amor aquilo que tinha conseguido, sem o pedir, com o seu velho marido: paz e tranquilidade para poder pensar noutras coisas que não a mera urgência de sobreviver. Também não voltou a buscar a leve alegria da paixão e do sexo, como tinha conseguido com o seu jovem amante. Agora, queria apenas ser ela própria. Sozinha, como, na verdade, sempre se tinha sentido. Viveria agora em conformidade com essa certeza constante, a da sua eterna solidão. Aquela a que, na verdade, todos estamos confinados. Qualquer ser humano, não obstante aquilo que os outros nos podem dar, estrará sempre só. Assim se nasce e assim se morre.
Por isso, foi com naturalidade que, um dia, deu por si a aceitar os insistentes convites de um homem banal. Nem mais velho, nem mais novo, nem mais rico nem mais pobre. Apenas um homem. Um homem simples, despretensioso. Um homem, mas de todos os outros diferente. Era burro. Burro que nem uma porta. Assim falavam dele. O chamado calhau com olhos. Era uma forma de descomplicar a sua vida e de continuar a poder ser livre. Ele pouco entendia ou apenas não se preocupava. Sim ou não era tudo o que necessitava de dispensar do seu já vasto e elitista vocabulário para que se entendessem. Um homem, o primeiro na sua vida, que não lhe cobrava gratidão ou juventude, sexo ou sustento. Um homem para quem bastava que ela fosse ela. Que ali estivesse. As críticas, bem se vê, não tardaram. Como é que ela, uma mulher com o seu estatuto, inteligência e nível de vida se limitava a andar com aquele boçal, aquele mentecapto. Praticamente um matarruano. Um verdadeiro, perfeito e completo imbecil. Um tipo que não distinguia a parte dianteira da traseira de um carro. Nem queria acreditar! De repente, em nome de mais um pedaço de má língua e de possibilidade de a rebaixarem, lá estava ela numa espécie de pedestal social.
A que tinha começado por ser vista como uma arrivista, uma pistoleira sem escrúpulos que tentava sacar o dinheiro a um velhinho, e que logo depois se tinha entregado ao deboche de uma relação sexual quase proibida, era agora a elite do bairro, alguém que ninguém se prestava a ver andar com um homem tão abaixo do seu nível. Clementina do Rosário divertia-se à grande. Burros eram eles todos. Todos aqueles que dedicaram as suas vidas a avaliar a sua. Já ela, ela vivia a sua o melhor que podia, em busca apenas de uma fresta de felicidade. Um pedaço de céu a que chamar seu e só seu. Um rasgo de sol que lhe aquecesse os ombros. Os outros que fossem para o Diabo, com quem já deveriam estar a jogar cartas. Boa partida.
Moral da história: Não se meta onde não deve a não ser que deva mesmo, o que nunca é o caso.
Deixe um comentário