Ansiedade. O diagnóstico estava feito, antes mesmo de ter estado frente a frente com aquela inexpressiva bata branca com estetoscópio ao pescoço, moldada a um corpo humano pouco dado a conversas. Ansiedade. Meia dúzia de perguntas, todo o detalhe nas respostas e ei-lo, o diagnóstico: estado de ansiedade. Agravado com um claro esgotamento físico. O médico tinha acertado em cheio no seu próprio diagnóstico, alinhavado há muito, à bainha do seu louco quotidiano. Foi à consulta apenas para ver se apanhava o médico em falso. Caso este se aventurasse somente com a necessidade de exercício físico, uma dieta mais equilibrada e, acima de tudo, com a toma de um qualquer suplemento vitamínico, ele avançaria sobre a secretária, debruçando-se como os entendidos no instante da partilha de um segredo, e dir-lhe-ia das boas, e das más também:
– Ó doutor, mas não é óbvio, para si, um homem da ciência, que eu estou a viver em permanente ansiedade? Que me falta o fôlego e o tempo? Que me esgoto em suposições futuras? Que não chego para tudo? Que ligo e desligo, inúmeras vezes ao dia, o botão do pânico? Que médico é o senhor para não ver, sequer, o óbvio dos óbvios? Troquemos de lugar, por favor! Passe-me o estetoscópio e a bata branca, que o corpo humano para moldar tudo isso já eu tenho. Calço também as suas socas brancas.
Não teve, porém, de se debruçar sobre a secretária e dizer das boas, e das más, ao médico, em tom e no modo de quem vai partilhar um segredo. Era um bom médico de evidências, não havia dúvida. Ansiedade. Uma boa dose dela.
De súbito, o rosto fechado do médico traveste-se de simpatia. Correção. Era algo mais do que isso. Empatia, diria mesmo. Compreendia-o. Vestia a sua pele. Calçava ele os seus sapatos. Estava quase no seu lugar. Ele entendia, fosse por reconhecer nele o pânico de outros ansiosos que escutara daquele mesmo lugar, fosse por também ele viver a mesma angústia, com o excesso de turnos e de casos de igual seriedade e até de maior gravidade. Tipos suicidas, em meio ou fim de linha. Tinha para si que esse não era, ainda, o seu caso. Estaria no início dessa dolorosa caminhada de sofrimento. Um transtorno demasiado frequente nos dias que correm, e o facto dos dias correrem, batendo diariamente recordes planetários, não ajudava à cura, se é que esta verdadeiramente existe para a ansiedade.
Este é o tipo de transtorno que, uma vez aberta a porta, para sempre aberta. Fica sempre uma fresta, presa por vezes ao mero receio de que a porta se volte a abrir. O coração para, o ouvido coloca-se à escuta e todo o corpo se retesa para com ele escutar. Será uma corrente de ar? Estará a porta a bater? Ter-se-á aberto sem que disso déssemos conta? De onde vem esta brisa persistente? A porta abriu-se. O pior é a sensação constate, uma quase certeza: a porta vai abrir-se. Quando? Esta parece ser a única pergunta a precisar de resposta.
O médico, agora naquele papel amigável, quase de compincha, fala de igual para igual. Tuteia-o. Primeiro estranha aquele ‘tu’, mas logo ele lhe surge reconfortante. Próximo. Necessário. Escuta-o melhor assim. Ele é um ‘tu’ e não apenas um comum ‘você’ a somar a todos os outros vocês que por ali passaram, passam e passarão. Quis saber detalhes. Alguns mesmo íntimos. Se tinha ereções. Se a vida sexual se ressentia do seu estado. Se havia apetite. Se o saciava facilmente ou se se haviam alterado os limites da saciação. Se dormia. Que tipo de sono? Acordava muito durante a noite? Era um sono com ou sem sonhos recordáveis ao acordar? Se ainda se sentia um tipo funcional em todas as atividades diárias. Como era a sua higiene. Se fazia a barba diariamente… Um detetive não faria melhor. Claro que iria prescrever-lhe medicação, claro que as drogas funcionam, mas ele teria de participar, conscientemente, numa mudança de processos. Um novo agir. Um novo pensar.
– Escreve um diário. Podem ser apenas notas soltas, pensamentos. Pode ser na própria agenda que utilizas para trabalhar. Lembretes no telemóvel. Cria uma rotina de autoconsciência e vai perguntando-te algumas questões a cada instante em que a ansiedade assome. És feliz? Tens razões para ser feliz? Quais são essas razões? O que é verdadeiramente importante na tua vida?
O médico lá continuou e Manuel, sim, assim se chama o paciente, Manuel, que inicialmente começou por desligar o botão, pois tudo lhe pareciam balelas infantis, começou a achar uma certa lógica na simplicidade de tudo aquilo. Terapia não era o seu género, pelo que, porque não falar consigo mesmo? Autoavaliar-se, vigiar-se, prevenir os momentos piores. Concentrar-se em pontos de felicidade e bem-estar. Claro que isso é fácil para quem não vive ansioso, porque uma vez em plena crise o cérebro mal se lembra que existe, a própria respiração deixa de ser automática e todo o corpo se concentra para não morrer asfixiado. Mas se criasse uma certa rotina de autoanálise… Porque não?
– O principal, é aproveitar o momento. O agora. Utilize o passado para se compreender e para tentar perceber os momentos mais sensíveis, aqueles que antecedem as suas piores crises. O que lhe sucede antes? O que se repete, ou que tipo de padrão consegue encontrar? O que espoleta os seus medos e pânicos? Pode e deve colocar metas para o futuro, caminhar numa direção, uma rota de felicidade ou apenas de bem-estar. A conclusão de um livro, um projeto de bricolage que ocupe o seu cérebro com atividades que não lhe são rotineiras, um novo desporto, uma caminhada ao fim do dia… Não deixe de sair com os amigos, mesmo quando não lhe apetece muito. Adote um cão a quem se dedicar. Nada melhor do que amor puro e descomprometido, como aquele que só se estabelece com um animal. Não se isole, mas também não se contrarie em demasia. Importante é que aprenda a viver o momento. O agora. Não stresse com ninharias.
Já começava a lengalenga que o fazia desligar o interruptor da sua atenção. Não tarda nada e lá viria o ioga ou até a meditação, como métodos auxiliares. Não vieram. Pelo menos, não os escutou. Porém… O exercício de se dedicar mais ao momento, ao segundo, ao instante, dele ter consciência e tentar aproveitá-lo, parecia-lhe importante e deveras desafiador para que o seu cérebro hiperativo se pudesse debruçar nele. Estar mais consciente do tempo, das batidas do relógio, do tic-tac da vida, isso era fascinante. Restava saber se conseguiria chegar a esse refinamento de atenção.
No final da consulta, agarrou-se à prescrição médica como um náufrago a um pedaço de madeira podre do qual toda a sua sobrevivência poderia depender. Não seria o suficiente para sustentar o seu medo, mas teria de servir e um homem desesperado consegue coisas incríveis. Quando nada se tem a perder, tudo há a ganhar. Mais banha da cobra motivacional, mas que, não obstante soar a slogan de um qualquer guru do momento, continha uma enorme verdade, daquelas que apenas um desesperado compreende em toda a sua plenitude. Ainda bem, todavia, que tinha surgido da sua mente e não tinha sido incluída no discurso do médico. Não teria gostado disso. Como era da sua lavra, aceitava-a como lema a não descurar.
Manuel, um pouco mais em paz com o seu transtorno de ansiedade, apenas retomou o seu plano de autocontrolo, depois de se assegurar de que o seu cérebro recebia doses confortáveis de algumas ‘inas’ (serotonina, dopamina, sertralina, fluoxetina, paroxetina…) ou de ‘ams’ (lorazepam, diazepam, clonazepam, alprazolam…). Essa escolha tinha sido tomada pelo médico, as drogas seriam agora tomadas por si.
É sabido que este tipo de medicação antidepressiva não tem efeito imediato e que só o somatório de tempo e, com ele, do aumento residual das substâncias ativas poderão surtir algumas melhorias. Pelo meio, Manuel recordou sempre a necessidade de criar, para si, uma via alternativa, um processo de autocura e busca interior, capaz de o deixar apto a segurar o momento, o agora, cada segundo isoladamente e perceber o colar de contas que a linha temporal é, na sua essência. Uma espécie de ‘Manuel de instruções’, brincava sem grande apetite de risos. O tempo não é uma linha contínua, para quem consegue perceber esta adição de horas, que são feitas de minutos, segundos, nanossegundos… Como qualquer linha, no meio de dois pontos cabem sempre mais pontos, daí, em Matemática, uma reta ou linha serem sempre infinitas. Há sempre espaço para mais um, como na casa da sua sogra, mulher dada à adoção de comensais e que, não fora ser de outras eras, e, aos olhos das maleitas e parafilias da contemporaneidade, dir-se-ia uma feeder (pessoa que tira prazer ao ver outras comerem). Pois Manuel passou a observar-se, a si, à sua vida e ao seu tempo, com olhos de mecânico, com pinças de relojoeiro. Afinaria o seu relógio com exímio rigor, com cautelas cirúrgicas. Apuraria o ouvido para detetar o mais distante tic, ou tac desse tempo de foge, na sua corrida que tem uma única direção: o depois.
Ester, mulher de Manuel, a primeira a dar pelos ainda insipientes sinais de estado depressivo – como inicialmente se lhe referiu – do marido, vigiava de perto, também ela, a evolução e os reveses do tratamento. Sentia-se absolutamente impotente, mas sabia que apenas a sua presença e uma cautelosa preocupação – daquelas que não questionam tudo a todo o momento – já era um escudo protetor que Manuel sentia em seu redor. De início, e por início entenda-se o princípio do transtorno de ansiedade, Manuel era um corpo pesado, cuja presença era demasiado notória na relação, a cada instante. Ora porque ele próprio manifestava o pânico de formas que eram novidade para ambos, ora porque a excessiva atenção dela reparava em coisas que nunca tinha visto, ou nas quais apenas agora notava, caso do sono inquieto do marido, as bruscas alterações de humor e um certo e assustador vazio no seu olhar, como se ele conseguisse ver através das coisas, ou, pelo contrário, como se não as conseguisse ver e por isso as fixava daquela maneira obsessiva e doentia. Decorridas algumas semanas, e ciente de que a estratégia de viver o momento, aproveitar e tirar partido de cada agora, faziam parte de um plano maior que também a ela poderia beneficiar, já que todos vivemos, hoje, em permanentes estados de stress e ansiedade, Ester planeava coisas a dois que visavam isso mesmo.

By Ed van ser Elsken
Andar de bicicleta no final do dia, foi algo que sugeriu desde logo, e atividade à qual se associou, a bem da verdade, com mais entusiasmo do que Manuel. Dedicarem mais tempo à confeção do jantar, tornando-o num evento familiar, com a inclusão de novas receitas e ingredientes exóticos, eram outra das ferramentas, que achou interessante incluir nesse plano maior. Começou a notar diferenças significativas, exceto o olhar distante de Manuel. Deu ainda conta de episódios bizarros. Manuel parecia desaparecer por breves momentos. Quando ela lhe perguntava onde se tinha metido ele respondia com aparente sinceridade:
– Mas eu sempre aqui estive!?
Estivera? Mas onde? A frequência destes episódios de rara passou a diária. Assustada, quase a enlouquecer, Ester recorreu, ela própria à psicanálise. É sabido que lidar de perto e com enorme envolvimento afetivo, com casos depressivos, não é fácil. A fim de evitar que ambos caíssem no mesmo fosso, Ester criou a sua própria rotina de sanidade mental, indo duas vezes por semana, a consultas de terapia. O seu maior receio era que começava a encontrar apenas explicações paranormais para as ausências do marido.
Um dia, no regresso a casa, não encontrou, como era habitual, o marido entretido com os primeiros preparativos para o jantar. Aguardou, para evitar pânicos desnecessários, mas percebeu que isso só aumentava os seus pavores. Ligou-lhe e qual não foi a sua surpresa quando o telefone toca na sala ao lado e de lá, respondendo à chamada, surge Manuel. Sempre ali estivera. Estaria a enlouquecer? Estaria ele a enlouquece-la? Mas se percorreu a casa toda… Manuel não se sabia explicar bem. Ele próprio parecia confuso, mas inesperadamente feliz. Dizia que começava a dominar o conceito de aproveitar o momento. “Vivo no instante”, era uma das suas frases mais frequentes, por esses dias. “Vivo no agora”.
– Mas eu pertenço ao agora, e não te vi!? Corri a casa toda à tua procura…
– Tens de encontrar o teu lugar naquele momento exato entre o segundo que termina e aquele que ainda não iniciou. É um lugar fugidio, exclusivo. Precisas de um certo nível de abstração, quase uma meditação e, de repente, estou lá. Não te sei explicar, Ester, mas tenho conseguido fugir para lá de vez em quando. Parece que quanto mais me acontece, mais fácil é que volte a acontecer. É um lugar especial, onde o tempo não é tempo e o espaço não é espaço.
– Mas sais de casa? É um lugar físico, mental? Do que me falas, Manuel? Preciso de compreender?
Ele não sabia o que mais adiantar. O que dizer. Como explicar. Ficava mudo, aquele olhar vago e, de repente, passava para o pragmatismo daquele outro momento.
– Fazemos o jantar? Estou com alguma fome.
O psicoterapeuta de Ester fazia-a racionalizar tudo aquilo, colocando-a a encontrar respostas para tudo aquilo que vivia. Lá no fundo, talvez por preconceito, Ester acreditava que o terapeuta achava que ela era louca e que necessitava de longos anos de psicanálise, que o marido deveria estar mais são do que ela. Isso desanimava-a, desmotivava-a, mas sabia, também, que se deixasse de falar com alguém neutro, longe do seu círculo de afetos, que, aí sim, enlouqueceria.
Manuel sentia-se cada vez mais capaz de sobreviver à catástrofe da ansiedade, de a vencer até. Conseguia, por períodos cada vez mais longos e relaxantes, imiscuir-se nos interstícios do tempo, nas frestas do relógio, precisamente entre o tic e o tac. O seu humor e autoestima subiam em flecha, não obstante um certo desnorte. Tinha encontrado o seu caminho, mas dele não conseguia falar. Quando a ele se referia, sabia-o bem, parecia um louco, um alucinado. Era como se descrevesse um sonho, com a agravante de que teria de convencer a sua interlocutora, a mulher, de que era a sua nova verdade. O seu novo mundo. O seu novíssimo cérebro. Tinha uma vida paralela. Mas poder-lhe-ia dizer isso sem a magoar de morte? Como andar paralelo à vida que ambos tinham construído, com amor, ainda para mais? Como excluí-la de tudo isto? E como levá-la consigo, se ele próprio não sabia como fazia para chegar lá, a esse novo lugar, a esse sítio sem espaço nem tempo? Mas sabia que havia por lá muitas outras pessoas. Talvez se encetasse conversa com elas, elas se recordassem ou soubesse de cor como passar para esse outro lado e, aí, ele poderia esclarecer Ester e levá-la consigo. Caso ela gostasse tanto quanto ele, poderiam mudar-se definitivamente os dois. Porque não? Manuel treinava, tentava estar consciente, tirava notas e descrevia os seus estados de espírito, mas logo que saltava para aquele intervalo de tempo, as coisas aconteciam de outra forma, não eram descritíveis. Não com recurso à nossa linguagem e às suas enormes limitações. Lá, uma casa não era uma casa, não tinha paredes nem arquitetura, mas era uma casa ainda assim, e protegia em todos os sentidos tal como uma casa das de cá deste lado, uma casa, mas não tinha forma, não esta que automaticamente lhe damos: quatro paredes e um teto. Uma janela, talvez e, definitivamente, uma porta. A comida alimentava, mas não era sólida, nem líquida… Não conseguiria passar a mensagem, ela teria de sentir por si mesma.
Era um universo distinto, à parte. De certa forma etéreo, mas muito real, sólido e consistente. Uma outra vida. A vida paralela, alternativa, que acontece antes do agora e depois do ainda agora. A lembrar o momento em que caímos precipitadamente num sonho, sem estarmos ainda em sono profundo e do qual saímos sobressaltados, como se fossemos cair. A queda parece real. O corpo defende-se. Mexe-se para evitar o chão. Chão que nunca lá esteve. Mas não caímos nesta dimensão, não obstante o susto que trazemos desse outro lado. O tempo e o espaço que permeiam a passagem de cada nanossegundo da existência. Outros eus que se manifestam em surdina, na clandestinidade, mas com alarve sonoridade para quem se queda nesse outro lugar, nessa outra hora, nessa falha do tempo.
Ester sentia-se mais animada. Achou o que todos queriam que ela achasse, que também ela se sentia esgotada e profundamente agastada com todo o sofrimento do marido e isso, estapafurdiamente, tranquilizou-a. Não só isso como é comum enraizar sentimentos de culpa por não se conseguir fazer mais ou melhor para ajudar aquele que tanto se ama.
– Manel, cheguei!
Não houve resposta.
– Ester, estou aqui.
Ester não ouvia. Não podia ouvir. Manuel não insistiu.
Em toda a casa, apenas aquele persistente tic-tac do relógio da sala, mas também esse Manuel jamais voltou a ouvir. Ele ficou com o silencioso traço que os separa. Manuel tinha aprendido a aproveitar o momento. O agora. O instante.
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