Se não entrasse vivalma dentro de cinco minutos – tinha dito a si mesmo que se atreveria a tanto –, enroscar-se-ia nos arrumos do pequeno armazém das traseiras da loja, paredes meias com esta, para uma sesta ou algo parecido, com o corpo amparado pelos rolos de tecido que ali se guardavam. Por norma, restos da coleção anterior, rolos com pouco tecido – os quais mal daria para uma minissaia, razão pelo qual eram retirados do expositor principal, na loja, para não criar falsas expectativas a quem procurasse uma boa fazenda para um fato completo, de saia/casaco, ou outra peça mais gastadora de pano – e outros excedentes. O calor angustiante, de um agosto excecionalmente quente e sem vento, triplicava sufocos no interior da loja. Não obstante o gigantesco pé direito, ou talvez por conta deste – uma vez que se forrava de metros e metros de tecidos, toneladas e toneladas de rolos de matéria-prima, que exigiam prateleiras de generosa e resistente madeira maciça, apoiada em profissionalíssimas estruturas de aço –, a ausência de ar condicionado, preterido pela cândida D. Prudência em nome das, em seu entender, sempre fiáveis ventoinhas, que, na verdade, já nem as moscas conseguiam afastar, a loja, às 15h, ditadas pelo enorme relógio de parede, era uma verdadeira estufa. Com a agravante de que, no final de agosto, já muitas das peças expostas exibiam a pura lã e a terna caxemira, rainhas da estação fria que já se antevia. Tudo junto, e era um inferno para os sentidos.

Ainda que arriscando o emprego ou, pior do que isso, que aquele emprego não era fonte de enormes orgulhos profissionais, um raspanete de D. Prudência, Gaudêncio sabia que iria acabar a babar-se para cima de alguns rolos de tule – aquele que melhor disfarça a baba. Teria apenas de chegar suficientemente desperto ao armazém para conseguir evitar atirar-se sobre as sedas selvagens ou as popelinas de cores sólidas. Caminhar em direção aos tons pastel, era o plano. Por sorte, e obsessão estética de D. Prudência, tudo era um bonito degradé, mesmo na zona de arrumos. Para não se sentir tão mal com a decisão consciente de dormir durante o expediente, Gaudêncio entrou num dos seus jogos habituais. Render-se-ia sem remorsos à sua dominadora sonolência, se não entrasse vivalma nos próximos cinco minutos, como se isso, em termos de lógica, justificasse o que quer que fosse ou dissesse algo em termos de causalidade óbvia quanto aos minutos que se seguiriam a esses primeiros cinco. Estava já na fase 3, 2… quando sente a irritante presença de uma enorme mosca, vulgo varejeira. Costumam entrar, avaliar o terreno e optar sempre por sair sem grandes demoras, ao contrário das muito estúpidas e resilientes moscas vulgares, de menor porte, mas mais profunda paciência para espaços fechados, mas esta varejeira parecia saber ao que vinha: fugir a todo o custo das temperaturas exteriores, capazes de estorricar asas de insetos sem necessidade de lupas fritadeiras. Estava, portanto, no compreensível dilema: seria uma mosca varejeira uma vivalma? Que estava viva, quer os seus olhos, quer os seus ouvidos, bem o testemunhavam. Mas teria alma? Contaria para o esquema mental, para o plano de desculpas infantil de Gaudêncio? Era uma criatura de Deus, ou da Natureza, contra tal facto argumentos não havia. Não era, todavia, gente, a quem dar atenção, uns arrastados boas tardes, dois dedos de conversa e ainda acertar no tecido pretendido, com o padrão desejado, na cor que se levava em mente. Tudo coisas muito vãs, mas demasiado exatas, dependendo do ponto de vista – se do cliente, se do vendedor, ou melhor, do atendedor, que vender era algo a que Gaudêncio tinha pavor –, para que delas desse conta cabalmente uma mente entorpecida pelo sono.

Com o enervante som do zumbido daquela gigantesca mosca, o sono também já se tinha reduzido, muito lamentavelmente, uns valentes 15%, o mesmo valor da estonteante promoção que abençoava as sedas sintéticas neste fim de estação quente. Um fim apenas visível no calendário, já que nos termómetros a coisa não esmorecia. Gaudêncio debatia-se com este dilema existencial, sobre o que decidir em relação à atribuição ou não de alma às moscas varejeiras, se contariam outros seres vivos que não apenas humanos para as suas contas de deve e haver, se acabaria de vez a sua contagem, ou se concederia à mosca a possibilidade de alma e sentimentos compatíveis com o termo vivalma.

Sabia que teria de se decidir rapidamente, em nome do sagrado descanso pós almoço que todo o seu corpo reclamava. Com o fervilhar de tanta cogitação mental, podia acabar por despertar o cérebro mais do que o pretendido e bastante mais do que o necessário para a retemperadora soneca. Pior, podia até perder o sono e perder era um verbo que lhe era difícil conjugar e coisa que o tirava do sério. Lembrou-se de imediato daquela outra vez, em que deixara nas mãos de um novo post no seu feed do ‘Feice’ – Gaudêncio referia-se ao Facebook, apenas como ‘Feice’, escrevendo-o tal e qual como se pronuncia – a decisão de convidar ou não a portentosa colega Paulina para almoçar um desses dias. Se o dito apresentasse coisas ‘fofas’ como gatos ou cachorros, convidá-la-ia, caso contrário, não o faria. Enquanto aguardava, acabou por perder a noção das horas e o autocarro das 20h30. Uma dupla perda que o deixou neurótico durante quinze dias, nos quais manteve o pensamento obsessivamente preso a esse dramático acontecimento. ‘Porque tinha a Guida de dar conta de toda a sua vida a cada instante? Não fosse ela e provavelmente teria sido brindado com gatitos a fazer das suas para as câmaras.’ Este o pensamento com que se fustigava e razão pela qual se desamigou de imediato da prima Guida, que boicotou o provável romance que poderia decorrer do almoço com Paulina, caso aquele tivesse sido feito e esta o tivesse aceitado. As probabilidades estavam seguramente do seu lado, mas lá teve o dente do siso de Guida que se interpor entre Gaudêncio e o seu destino amoroso. Voltou a sentir no estômago aquela versão de ódio e impotência e temeu estar a perder definitivamente a vontade aguda de se atirar para cima de rolos de refrescante e delicada cambraia.

Tinha algum tempo, não havia necessidade de grande stress ou ansiedade. Paulina estava de férias e, com aquele calor, D. Prudência não voltaria à loja antes das 17h, com as prováveis brisas de fim de tarde que vinham do rio, quando vinham, era certo. Clientela, também não seria de esperar, sem bem que a enchente de turistas levava sempre meia dúzia destes aborrecidos incautos a quererem espreitar estas pequenas relíquias do comércio local. Sempre com os seus mapas e pequenos guias e de câmara em riste. Uma gente calamitosa, lamentava-se Prudêncio. Mas esses bem que poderiam encontrar a loja vazia sem que daí adviesse grande mal ao mundo ou prejuízo para a loja. Ninguém leva de souvenir um pedaço de tecido para a sua terra, se bem que seria algo que facilmente se acomodaria nas malas ou mesmo mochilas. Pensava já fazer um brilharete explicando esta possibilidade de aumentar o negócio à patroa. Bastava convencer os camones a comprarem umas belas fazendas de fabrico nacional, ou nem por isso, que o turista não é pessoa muito exigente. O melhor seria aguardar que Paulina voltasse de férias para apresentar esta sugestão na sua presença e deixar claro aos olhos dela quão inteligente e dedicado ele era, se é que o era de facto. Ele próprio tinha tudo menos certezas acerca do seu emprego. Podia mesmo esperar uma das visitas de Camilo – Camilo, isso era lá nome de homem, ponderava Gaudêncio –, um destes novos alfaiates da contemporaneidade vintage, com os seus visuais dandy e apalermados e barbas de impossíveis recortes.

Eram dois coelhos que matava de uma só vez: Paulina, que perceberia como era destemido para o negócio, e o palerma do Camilo, eterno fã de musseline, que comprava a rodos (como se não houvesse outras fibras no mundo, razão pela qual, interiormente gozava com ele chamando-lhe MoçoLina ou, em horas de maior fervura, ChitaMan), sempre cheio de ar quente e olhos lânguidos sobre a bela Paulina, junto de quem se armava forte e feio, sussurrando-lhe coisas em francês. ‘O Idiota’, disse Prudêncio em voz alta, não se contendo ao relembrar esses episódios. Idiota e mau caráter, sempre a gozar com ele, Prudêncio, que se considerava, sem grandes exageros, o príncipe das fazendas. Esse tal Camilo, certa vez, entra na loja, todo ele e acender e a apagar, num fato de xadrez vermelho garrido de três peças e calças muito justas e arregaçadas, coisa inédita e inexplicável num fato, e abaixo da bainha destas uns sapatos de atacadores que usava SEM MEIAS, e lá começa de cochichos com Paulina. Cheio de boa audição e com vontade de atacar o Mister Musseline com um rolo de brocado de seda bem pesado ou com uma peça de honrosa chita de Alcobaça estampada em cretone de algodão, Gaudêncio percebe que o idiota fala de lãs com Paulina, mas dando sempre à conversa um tom de sedução que o tirava do sério. Paulina toda risinhos e o fulano a adjetivar a lã de terna e coisas similares. Para evitar mais atrevimentos, Gaudêncio coloca com estrondo sobre o balcão, as mais recentes fazendas de lã e diz-lhe que é tudo o que têm. O que se seguiu foi humilhante e embaraçoso. Paulina não parava de rir e Camilo, explicava, num irritante tom paternalista, que não falavam de lã terna ou qualquer outro tipo de lã, mas que ajudava Paulina a descarregar uma nova app de lanterna que ajustava a intensidade da luz, para quando regressava demasiado tarde a casa…

Agora, sim, a neura já roçava os níveis laranja, pelo que a sesta poderia estar seriamente comprometida. Mas ainda sentia que lhe faltavam forças para se enervar energicamente, o que era bom sinal. Cerrou os olhos. Confirmava-se, ainda estava capaz de cometer o belo pecado da preguiça e ‘assaltar’ o armazém para esse efeito. Terylene. Seria o mais indicado para a sesta da tarde. Podia ser ligeiramente quente, mas sendo sintético, nada se amarrotaria pelo que seria incapaz de denunciar a sua presença sobre o mesmo. Terylene seria. Nisto, a mosca, de novo a fazer-se notada. Maldita mosca. Com o pensamento no verme do Camilo, já se tinha esquecido desta. Mas ela ali estava, a zunir, batendo as asas fortes com desespero. Que bicho medonho, pensava Gaudêncio. Mas gostava, tinha de o confessar, do tom azul-cobalto daquele corpo alado. Varejeiras havia que pendiam mais para o verde, mas esta era de um fascinante tom cobalto. Paulina tinha uns sapatos daquele tom, bastante altos, com que chegava ao trabalho, mas que descalçava logo que chegava, trocando-os por umas bem mais confortáveis sabrinas, que a deixavam uns centímetros abaixo da altura de Gaudêncio, coisa que lhe agradava, pois havia uma réstia de machismo na sua maneira de ser que não permitia mulheres mais altas do que os seus parceiros. E se ligasse à Paulina durante as férias, para um café ou uma outra bebida na esplanada de um moderno terraço da moda. Não, era melhor agendar para uma pastelaria, não fosse o ambiente do roof top estar cheio de Camilos e gente demasiado freak. Uma coisa mais terra a terra, onde se sentisse mais à vontade para também ele lhe sussurrar coisas ao ouvido. Atrever-se-ia a tanto? Com um bom chá de camomila a acalmar-lhe os nervos, certamente que sim. Podia até ser num centro comercial, onde havia uma infinidade de coisas para fazer e zonas de descanso e gente, muita gente, pela qual passariam quase parecendo um casal às compras, o que disfarçaria o seu embaraço e esmoreceria a sua timidez. A fim de evitar grupos de pessoas em corredores mais apertados poderia mesmo colocar-lhe a mão na cintura, ou puxá-la pela mão. Tudo aquilo já lhe fazia ferver o sangue e coisas quentes era algo que deveria evitar a todo o custo, àquela hora e com as altas temperaturas naquele forno de estabelecimento. Até as ventoinhas já tinham desistido de girar, limitando-se agora a rodar muito lentamente e apenas uma pá de cada vez, mas esta indicação não deveria estar certa, deveriam ser os seus olhos a adormecer que já só conseguiam descortinar uma pétala da ventoinha.

Tinha mesmo de dormir. Já se sentia maldisposto com tanto pensamento e conjetura. Precisava de repousar o seu frenético cérebro e dar descanso ás pernas, todo o dia de pé. Porque se tinha metido naquele jogo e não decidido por si mesmo que iria dormir a sesta? Obsessivo-compulsivo. A razão, segundo o médico, era por ser obsessivo-compulsivo. O que sabia o médico? Bastava estar atento à internet, aos sites médicos, às novas e diárias descobertas científicas que desmentiam certezas clínicas atrás umas das outras, para se perceber que toda a gente era obsessiva-compulsiva e ele um ser humano normalíssimo. Podia decidir a sua vida sem necessidade de jogos ou contabilidades estranhas à sua vontade.

Nisto a mosca. Ainda a mosca. Duas portas abertas para a rua e a parvalhona que ainda não tinha saído. O que fazer com ela? Tinha ou não tinha alma? Era ou não uma vivalma que o impediria ou não de ir dormir a sesta no armazém das traseiras? Já sabia o que fazer. Se a mosca pousasse nos tecidos da nova coleção, tinha alma, caso contrário, se optasse por vaguear pela zona dos tecidos de fim de estação e das popelinas, não tinha e ele iria finalmente poder entregar-se à sua vontade. Não. Tinha de facilitar mais a sua própria vida. A varejeira apenas teria direito a alma se o primeiro local em que pousasse fosse uma peça de xantungue. Isso. Agora, bastava aguardar para ver. Mas isso apenas resolveria a questão da sesta. Mas, por exemplo, dando-se o caso de ela sair da loja sem pousar, o que é que isso diria em relação à sua alma?

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