Os sonhos são uma abstração enquanto não encaixam na palma da nossa mão. Uma vez aconchegados no nicho dos possíveis, uma vez batido o record, a insatisfação, tinhosa e insaciável, prossegue o seu rumo, a vida retoma o seu caminho e ritmo e o coração volta a bater descompassado. Tudo se reequilibra de novo no rotineiro insucesso do quotidiano. Todos os olhos e aspirações ganham poiso lá mais à frente, no insondável desejo de qualquer outra coisa e isso estava a acontecer de novo. Com sorte, um novo sonho toma o lugar do anterior. Como sempre acontece. Tudo como sempre em todo o lado e a qualquer momento. Tudo igual. O cansaço de uma nova linha de partida, sempre a somar peso e responsabilidade aos ombros vergados pelos (in)sucessos prévios. Sempre mais fatigante do que o cansaço da chegada ao triunfo ou ao fracasso. A desilusão. A frustração. O fogo fátuo. Inspira. Sossega um pouco. Mas a batida no peito que não permite repouso. O desassossego que não esmorece. Expira. A vida que não para e os outros de atalaia, a observarem o que se segue. A farejarem o ar em busca de vítimas, de mais uma oportunidade de escárnio. A tua reação. O teu próximo passo. Ansiosos de te ver derrotado, de te baixar a crina da glória, indefeso, no chão da vida. Sequiosos das tuas lágrimas, do teu segundo lugar.

Mas ela sabia que não há respostas erradas quando se segue o coração. Quando a alma não se apequena, quando a emoção garante acertos no peito, ‘ticando’ certos em cada quadrado. Sempre que a coragem exibe o seu melhor timbre, não há enganos, não há erros a declarar na alfândega do deve e haver. Tudo certo, mesmo que errado. Tudo certo mesmo que em desacerto. Tudo certo e com resto zero. Tudo certo, apenas. Tudo certo. Não há erros no coração, mesmo quando se ilude e embate de frente num maciço de betão armado, o coração tem sempre razão. Porque acreditar está certo e é bom. É encorajador e motivante e enche-nos de esperança e sentimentos verdes e coloridos. Acreditar já é conseguir, mesmo quando não se obtém. É chegar lá, mesmo quando não se alcança. Mesmo quando nos enganamos brutalmente, há acerto e concerto, porque houve amor na decisão e entrega de afeto e isso é gratificante para quem dá. Amor guiado por um fio de fé e de bondade. É disso que se fazem os sonhos e eram esses os ingredientes que ela amassava sem cessar. Músculos no braço de tanto amassar. Tendinites no pulso de tanto gesto repetitivo.

Os seus sonhos eram pequenos. Calibrados à medida das suas forças, à altura exata do seu receio de falhar. De falhar novamente. Pequenas bolinhas, arredondadas com a perfeição que o jeito permitia, e que acariciava com devoção. Pedaços de magia que lançava ao mundo, na esperança doce e tranquila de que regressariam com algo mais importante do que a vida. Batedores do mundo lá fora, em busca de alimento interior, de saliências na rocha do desassossego da vida, a que pudesse lançar a ponta dos dedos e soerguer-se mais um pouco. Chegar um pouco mais adiante e acima, a um pedaço de ar mais puro e fresco. Ficar mais próximo do alívio, quem sabe mesmo de uma fatia de paz, de uma migalha de felicidade.

Aprendera, com a fiada de sucessos e insucessos a que se chama vida ou apenas experiência – as queimaduras de óleo quente nas suas mãos eram disso prova bastante –, que os sonhos devem ter a medida exata da palma da mão. Não devem exceder, por um milímetro que seja, essa forma aconchegante, essa medição exata: a palma da mão, onde tudo cabe, mesmo quando tudo se escapa. A palma da sua mão era a medida do mundo inteiro. Um sonho de cada vez. Uma bolinha de farinha, amor e açúcar.

Sabia que os sonhos são uma hipótese apenas, uma suposição num livro de receitas. Sem de lá saírem, não passam de palavras ordenadas numa determinada sintaxe, respeitando a retidão gramatical e sucedendo-se por ordem de significado, mas ainda sem sentido. É necessária a vontade de ler e interpretar e ainda a vontade de combater a inércia, tantas vezes mais pesada do que os ovos necessários à sua realização, e avançar para a ação. Medir a farinha, ajeitar-lhe a água ou o leite, compensar tudo com as gemas… Sem se envolver na receita da vida, não há massa nem alento e mesmo quando o seu coração acompanha as rachas das cascas de ovos que vai sacrificando, mesmo quando a hipótese de sucesso parece tão distante quando a China, e são mais as lágrimas do que o leite derramado, há um livro que incentiva a terminar a receita e uns olhos gulosos que anseiam pelo resultado.

Conhecia ainda o prazer infantil daquele momento em que a canela e o açúcar, envolvidos numa taça, se derretem antes mesmo de tocar a superfície escaldante do sonho fumegante, acabado de sonhar. Nada se compara a um sonho morno, acabado de sair do forno da imaginação, naquele ponto exato em que já não queima a ponta dos dedos, mas ainda escalda na boca, onde provoca esgares e a sôfrega necessidade de procurar ar fresco. As caretas que se fazem…

Tinha sonhos às carradas. Tantos e tão poucos. Muitos e nenhuns. Para si e para os outros. Não eram sonhos muito hábeis. Falhavam bastante. Uns ficavam demasiado massudos, com uma consistência pesada e difícil de digerir. Outros resultavam demasiado leves, ocos, sem propósito, nados-mortos no insucesso de mais uma fornada. Outros, lindos e auspiciosos, calibrados na exatidão da sua quente e esperançosa palma da mão, acabavam queimados. Talvez com o excesso de esperança. Quem sabe com o lume demasiado alto do forno das expectativas. A medida certa era um pesadelo.

 

Não desistiria. Não era essa mulher. Não era orgulho, era fatalidade. Era essa a sua massa. Mesmo que o quisesse, toda ela era sonho e vontade de sonhar. Meter as mãos na massa era a sua missão diária. Todo o seu material genético se orientava para a paisagem onírica, para os ‘ses’ da vida, E se um dia conseguisse, um único dia, um sonho ímpar e solitário, dourado e brilhante, já valeria a pena. Porque não sonhava em vão, não pedia pechisbeque ou paixonetas. Os seus sonhos eram altos, tão altos quanto a sua generosidade, tão elevados quanto a sua gentileza. Tão amplos quanto o universo. Por vezes, mais do que muitas, cedia os seus sonhos, partilhava os seus desejos e tudo aquilo que tinha. Estava segura de que os seus sonhos eram infinitos, uma linha sem termo de pedras que a água nunca submergiria e que lhe permitiria, com os pés mais ou menos molhados, seguir o seu trilho, a sua jornada. Sem paragens outras que não sejam para elevar ou baixar a temperatura do forno ou acertar o ponto da massa, que aí reside toda a arte, ainda que a magia nasça no coração e disso tinha ela muito. Disso tinha tudo. Por isso, ali estava, de pé, sempre. Mãos na massa. Olhos na frigideira. Atenta ao óleo quente. A fritar sonhos. Sempre para ali a fritar sonhos.

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