Tinham sido muitos e penosos os anos de sacrifícios. Penosos e longos, que o que é mau custa mais a passar e tende a ser vivido de forma mais intensa. Tinham sido muitos. Demasiados. Na verdade, tantos quantos aqueles que já tinha vivido, consistindo essa sobrevivência no único feito digno de mérito. Eduardo tinha um olhar crítico e cínico sobre a vida, o mundo, as pessoas, alimentado por um misto de inveja e rancor por tudo e todos os que tinham e usufruíam daquilo com que apenas podia sonhar, quando tempo tinha para isso. Quando se procura pão, há pouco espaço para pensar em condutos e sofisticados brunchs, menos ainda para filosofias ou ambições. Quando o mais premente móbil de uma existência é o suprimento de alimento, ou qualquer outra aflição vital, a vida batiza-se de fome e a alegria barra-se de manteiga. Claro que, relativizando, uma doença terminal ou comprometedora de qualquer pingo de esperança no futuro era bem pior do que meras contas para pagar. Porém, Eduardo sentia na pele como a miséria hipoteca todos os órgãos vitais, incluindo o cérebro e a sua capacidade de raciocínio e discernimento. Acabando, no fim das contas, por redundar no mesmo resto zero. Nos dias em que havia dinheiro para um café, tomava-o na esplanada – + 50 cêntimos de serviço. Não hesitava em fazê-lo. De vez em quando, uma pessoa tem de se sentir gente como a outra gente. De vez em quando.
Mais valor, do que o pouco que conseguia com mil e quatrocentos biscates, tinha a solidariedade dos seus pares, que sempre lhe valiam. Nem todos, claro, que há pares desirmanados e gente ruim em qualquer estrato social, mas os suficientes e nas alturas críticas. A D. Susete, da pensão onde alugava um quarto, que mesmo não se fiando na sorte de Eduardo, lhe fiava, ainda assim. Do Carlitos da mercearia, graças a quem tinha aprendido a amar e a odiar salsichas em lata e outros mimos em conserva. Da Deolinda… Oh, sim, da doce Deolinda, para doses de quase amor, sempre com atenções especiais, promoções e chupões de desconto. Dos amigos de sempre e dos de ocasião, compinchas na necessidade e parceiros de partilhas. Uma cerveja aqui, uns serões de conversa e alento mais à frente. Gente simples, seus iguais. Todos juntos na luta diária de um presente que é apenas um pouco mais do mesmo do passado e provavelmente um pouco menos do mesmo daquilo que será num futuro cada vez mais incerto. Gente como ele próprio, sem grandes perspetivas ou sonhos, mas garra e tenacidade para se agarrar à borda do bote, que um homem tem de evitar as águas escuras e frias. Talvez devesse falar antes de família, pois só esta nos acolhe – quando acolhe – em qualquer circunstância. Isto tudo sem esquecer o bom do Isidro, da tabacaria, para mortalhas e mesmo algum tabaco nos dias em que o negócio corria melhor.
Aliás, Isidro foi a estrela da sorte de Eduardo, que viveu na tabacaria o melhor momento de toda a sua vida e não por conta de onças de tabaco ofertado, ou mesmo de algum haxixe, ou, em dias sem exemplo, uma boa erva partilhada com parcimónia, mas muito boa vontade. O que ali ganhou não se esfumaria tão rápido como um charro, nem poluiria os pulmões de Eduardo, ainda que também se pudesse considerar da família dos psicotrópicos, alucinogénios e outras substâncias ‘recreativas’. Num dia particularmente azedo para Eduardo, nitidamente subnutrido e com o ânimo em zonas negativas, Isidro condoeu-se particularmente com a sorte – mais certo seria falar em azar – daquele pobre homem. Ainda jovem, cheio de vontade de trabalhar, de lutar, mas sempre a ser derrubado pela aguçada foice da vida. Por alguma razão, ou várias, os empregos escapavam-se-lhe e com eles o aconchego do desafogo, o alento do prato, a segurança de um teto sobre o cabelo desgrenhado. Nesse dia, num gesto que, para o resto da sua vida, comoveria o empático Isidro, o dono da tabacaria foi um pouco mais longe nas suas benesses. Num gesto espontâneo, nada calculado ou programado, inspirado apenas pela dor que viu nos olhos de Eduardo, sacou de uma raspadinha das mais caras e, perentório, disse:
– Ó pá, é hoje que a tua vida vai mudar. Raspa lá isto! Ou muito me engano, ou hoje és tu quem vai pagar os cigarros e – piscando o olho a Eduardo – os extras.
Eduardo nem uma moeda tinha para raspar a caspa de cima dos desenhos. Sem dizer uma palavra, fê-lo com a unha enegrecida do polegar direito. Mesmo com o cartão virado ao contrário, Isidro logo percebeu o que se passava. O seu coração bombeava contentamento em jatos descompassados.
– Meio milhão!!! Mei-o mi-lhão!!! Eduardo, estás rico. Estás rico.
Antes que Eduardo conseguisse processar a informação, que começou por aceitar como uma tentativa infeliz de Isidro para o animar, do escritório surgiu a Belinha, mulher de Isidro, que jamais aparecia em público, exceto por ocasião de alguma ausência forçada do marido. “Não gosto de pessoas”, confessou-lhe um dia entre inebriantes bafos holandeses, daqueles que podem suscitar confissões inesperadas. Eduardo compreendeu-a na perfeição, ele próprio começava a desinvestir na matéria humana. Belinha reconhecia todos os timbres e nuances de tom da voz de Isidro e percebeu logo quão genuína e histérica era a sua felicidade. Eduardo compreendeu que algo se passava de verdade e concentrou-se no pedaço de cartolina. Havia figuras repetidas e números que as acompanhavam e repetições que, a julgar pela cábula inclusa no papel, eram no número exato para determinar uma vitória. Meio milhão. Quanto era isso? Quando se está habituado a contar centavos, ver para lá disso exige binóculos de muito longo alcance e uma projeção mental que já escasseava à visão de Eduardo, que sempre vivera a olhar onde punha os pés e nunca para onde devia projetar os sonhos. A um pobre, mais vale pisar seguro e não partir uma perna do que encontrar cinco minutos de felicidade numa suposição de ‘faz de conta que sou rico’.
Pois parece que Eduardo era agora rico. Meio milhão mais rico. Passado o aparvalhamento dos primeiros minutos, em que mais do que celebrar a sorte e permitir-se sentir felicidade ou qualquer cheiro de alegria, se entreteve a confirmar e reconfirmar bonecos e a garantir que não havia enganos, que de pobre a rico vai-se bem, mas de rico a pobre não estava para isso, Eduardo começou de imediato a fazer planos à vida. Arriscou um abraço a Isidro e outro à Belinha, que logo o repudiou bruscamente. Além da Covid, havia a tal sua aversão a humanos e nem meio milhão alterariam a substância de Anabela Beirão. Findo esse atabalhoado momento de gratidão, partiu sem proferir uma palavra. Atordoado, Isidro e Belinha entreolharam-se desiludidos e inconformados. Jamais o exigiriam, ou sequer mencionariam, mas teria ficado bem a Eduardo anunciar logo ali a partilha da fortuna. Na verdade, nem a raspadinha tinha pagado. Tinha sido mais uma das generosas ofertas do proprietário da papelaria, é certo, mas o bem com o bem se paga e não havia agora desculpas de pobrezinho. Nada. Nunca mais nada. Eduardo simplesmente sumiu daquela vida, daquele bairro, daquela pele que antes ocupava.
Como a cobra, na sua muda sazonal, Eduardo livrou-se rapidamente de tudo o que tinha a ver com a sua vida passada. Nada magoou mais Isidro do que o dia em que um estranho lhe enviou, por transferência bancária o valor da raspadinha, em nome de Eduardo Monteiro Galhardo. Custou mais do que se tivesse mantido a dívida em aberto. Não era bem uma dívida efetiva. A raspadinha tinha sido uma oferta da casa, mas era manifesta e dolorosamente uma dívida moral e afetiva.
– Mal-agradecido. Ingrato e mau caráter. Nem se dignou a vir em pessoa pagar e agradecer, ou vice-versa, que a ordem dos fatores, nesse caso, seria meramente arbitrária. Era delicado e de bom tom. Serve-me de muito ser boa praça. Mais valia que a tivesse raspado eu, pois ficaríamos ambos bem, eu e ele, enquanto assim…
No bairro, durante meses, não houve outro assunto. A riqueza inesperada de um pobre diabo como Eduardo começou por alegrar os seus pares, precipitando uma corrida às raspadinhas de Isidro como nunca antes, mas logo o assunto ganhou nuances de incredulidade. Na sua precipitação em virar costas à pobreza, deixou pequenas dívidas de mercearia, um quarto malcheiroso na pensão da D. Susete, o coração partido (ou quase) de Deolinda e uma reputação miserável, que dinheiro algum reabilitaria por aquelas bandas. Nem um adeus, nem um obrigado, nem um auxílio a gente que também não era rica, mas que sempre se predispôs a auxiliar quem tinha ainda menos, como era, manifestamente o caso de Eduardo, que nada tinha.
Em sua defesa, pelo menos perante a sua consciência, quando esta, ainda que muito raramente, lhe pedia acertos de contas, Eduardo tinha a urgência da fuga. De sair da lama, de evitar um passo em falso em direção às areias movediças da vida e correr o quanto antes até pisar terreno firme, verdejante e próspero. A imperiosa vontade de rumar célere na direção diametralmente oposta daquela que sempre fora a sua morada. Necessitava de colocar quilómetros de terreno e rios de perfume entre a sua vida anterior e aquela que a providência lhe servia de bandeja. Não podia vacilar. Não podia tropeçar. Não podia virar a cabeça e olhar para trás. Mesmo que não se transformasse em sal, algo de mau poderia acontecer e arriscar não valia a pena. Para já, a estratégia restringia-se à fuga. À enorme transumância da pobreza à riqueza. Eduardo procurava agora o seu novo meio, os seus novos pares, os seus novos iguais, o seu novo lugar. Procurava cores vibrantes, brilhos, joias, carros desportivos, gargalhadas despreocupadas… Percebeu de onde vinham e para lá seguiu. Despediu-se não apenas do passado, mas de si mesmo. Criou uma nova identidade. Moldou um novíssimo Eu e vestiu-o a rigor, em conformidade com os pavoneamentos da beautiful people, onde se acotovelava para ser notado e acolhido.
Eduardo não sabia, mas prontamente lhe ensinaram, de forma clara e brusca, que a acessibilidade, qualquer que seja, implica portagens, mimos, oferendas e bajulamento constante por parte de quem já lá está. Um estranho, mesmo com uma simpática autonomia financeira, não deixa de ser um estranho. Um alienígena. Alguém que não se conhece, sem um passado em comum, sem apelidos ou afinidades. Pior. Eduardo era obviamente um novo rico com ambições sociais arrivistas. Queria impor-se onde não pertencia e onde não era bem-vindo, que o que é novo nem sempre atrai. Enquanto avaliavam a dimensão da sua fortuna, o novo social ia atirando-lhe algumas migalhas. Meios sorrisos enquanto, em retorno, exigia mimos, pequenos pagamentos e faturas avultadas. Foi usado e esmifrado por uma classe caprichosa, exigente e desprovida de sentimentos e vazia de empatia. Algo que demorou a perceber, inebriado que estava com a sua nova situação de quem pode beber sempre o café na esplanada. Uma avaliação que lhe sairia cara, mas não mais do que uma outra bem mais preciosa e que Eduardo descurou: meio milhão é apenas meio milhão e quando só sai e não entra, o dinheiro esvai-se que nem areia, fina e seca, por entre os dedos das mãos, e que o maior segredo dos ricos é serem forretas, o que é um desafogado patamar acima de ser-se meramente poupado. Tudo isto mal calculado e, quando estava quase a ser tolerado, Eduardo já estava cheio de dívidas e a iniciar uma vida de esquemas mais ou menos fraudulentos, especializando-se em mentiras financeiras e arquiteturas fiscais.
Nem um ano, foi quanto durou a vida de pavão do pobre Eduardo. Quis tudo, demasiado cedo e junto de pessoas de quem, desde logo, deveria manter-se apartado. São sôfregos vórtices que tudo chupam para o seu interior, atirando para fora apenas os ossos e as espinhas. Tudo o que lá entra, de lá não sai vivo. Eduardo foi apenas mais um osso jogado para lá do círculo de cores vibrantes e de brilhos, onde, por um segundo, acreditou que pertencia. Não se valorizou. Não se cultivou, nem tirou partido do pouco que para si poderia ser tanto. Um dia, tiraram-lhe o carro, no outro desapareceu a casa e logo foi expulso do Olímpico, quando apenas mal tinha transposto a porta. Aliviado, pensou que tinha sempre para onde voltar: o colchão da D. Susete, os fumos do Isidro, os braços da Deolinda… Nunca nada lhe pareceu tão reconfortante. Nunca um deles lhe tinha recusado apoio, sendo os próprios a voluntariar-se para tal. Eduardo voltou, para descobrir que há uma primeira vez para tudo na vida. A Deolinda estava bem casada, D. Susete tinha quadruplicado as rendas e pedia cinco meses adiantados, além de que tinha tudo ocupado. Isidro tinha deixado de fumar e, estranhamente, todos pareciam não o reconhecer.
Moral da história:
Pior do que um homem pobre é um pobre homem que ainda por cima seja pobre.
🙂 muito bom, adorei
Muito obg, Luís. Já eu, adoro que estejas por aí!