Berta Brites estava exausta. Farta de tudo até ao tutano. Farta, farta, farta. Apenas a balança do prazer não tinha com o que se fartar, nem mesmo com o que se satisfazer. Tudo o resto excedia os limites do suportável, puxando para níveis negativos o prato do cansaço e do desespero. Nada havia para contrabalançar o carrego das injúrias. Prisioneira num mundo que não tinha desejado, ligada a pessoas que não estimava e que dela se serviam sem pingo de empatia, usada como esfregona da sua própria vida, limpando nódoas negras, varrendo mazelas para debaixo da sua puída autoestima, dando brilho a faltas de ar crónicas, polindo insultos e desrespeitos sistemáticos. Como resposta a tudo isto, como se assim conseguisse um lugar cimeiro aos olhos de terceiros, que a distanciasse do que lhe pulsava lá dentro, corroendo-a e mortificando-a, Berta Brites ia sorrindo amargamente, como se tudo não passasse de um estudo sociológico, e, em simultâneo, um levantamento íntimo e pessoal, uma tese identitária que tudo o que estava mal na sua vida. De tudo aquilo que teria de mudar. A vida é demasiado curta para deixar de espreitar novas formas de tentar a felicidade, de testar o substrato da existência. O mundo anda por aí, nem precisaria de o procurar muito, ele vive mesmo ali, do lado de fora da janela… Porém, falar é tão fácil, mas como simplesmente apagar a sua vida e iniciar outra? Quem pagaria as contas, entretanto? Onde viveria enquanto buscava o seu micro paraíso? O que comeria? A quem recorreria? As coisas não mudam sem que as desejemos mudar, mas não basta estalar os dedos e fazer acontecer. Nem nos filmes acreditamos nisso.
Nisto, Berta Brites dá um grito que bem poderia resultar de uma incisão de bisturi profunda a sangue-frio, sem anestesia. Mais uma vez um preservativo no meio dos lençóis. Mas de onde vinha esta gente? Debaixo de que calhau continuavam a sair? Não tinham um pingo de decência? Era empregada de limpezas, não criada para todo o serviço e se eram suficientemente porcos e nojentos para não se preocuparem em dormir com os restos do sexo colados à pele uma noite inteira, não era ela quem iria torná-los higiénicos menos ainda decentes. Não estava para aquilo. Não havia luvas que amenizassem o nojo figadal que aquilo lhe provocada. Era o fim daquela linha inconsequente, daquele vómito de vida.
Seria tão melhor um emprego ao balcão, sem fardas de housekeeping, nem batas ou aventais. Sem a imperiosa necessidade de luvas para lidar com preservativos e escoamentos de sémen. Nada poderia ser pior, disso estava certa, enquanto lançava as suas preces a todos os deuses do Olimpo. Algum teria de lhe acudir, pois que o seu era um caso a merecer mão divina, para não ir mais longe, mas mais longe não se atrevia, pois que receava perder-se em caminhos desconhecidos, mesmo com todos os Wazes da vida, que a tecnologia também falha. Sabia também que enquanto a sua requisição chegava ou não aos ouvidos certos, era avaliada e encaminhada para despacho, o melhor – na verdade, o necessário – seria introduzir a sua própria autoajuda em todo este processo.
Berta Brites era nova e vistosa. Fresca e sedutora. Sabia-o e percebia-o bem no olhar de homens e mulheres, e no hotel de três estrela onde trabalhava, bem via como colegas e hóspedes a abordavam e cobiçavam. Tinha aquilo que muitos designam de sexappeal e começava, não apenas a ter consciência disso, como a aprender a utilizá-lo a seu favor. Era uma arma poderosíssima, muito eficaz e que lhe agradava esgrimir, por muito que lhe custasse utilizá-la para fazer valer a sua inteligência e todas as suas capacidades laborais. Por alguma razão que a desgostava, mas não sempre, tendia por natureza e quase compulsão para as queixas, as lamúrias, a típica vitimização, um choro aqui e ali e era assim que levava a sua avante, quando levava. Estava disposta a contrariar esse pendor provinciano, essa submissão ancestral ao patriarcado machista e heterossexual que adora ver uma mulher frágil em busca do perdão masculino.
O seu plano, assim o desejava, articularia ambas as estratégias, conforme o perfil do interlocutor. O primeiro passo seria atualizar o seu CV, melhorar a sua apresentação nas redes sociais e insinuar a sua situação junto de alguns contactos influentes que havia acumulado na sua, ainda não demasiado longa vida profissional, mas também já não tão curta assim.
Nisto, o telefone toca. Os deuses estavam atentos… e em linha. Surgiu a oportunidade de realizar o desejo de balconista numa loja de bairro de uma cadeia internacional. Melhor era impossível. O melhor de dois mundos: uma loja de rua, para ver os passantes e a luz do dia, e uma cadeia de renome. Nada mal. Berta Brites rejubilava. Quase não necessitou de lágrimas, nem de decotes demasiado embaraçosos. A vida sempre era bela. A sua era de fashionista começava agora e já se augurava esplendorosa.
A loja era elegante e, ainda que não sendo de uma marca premium – todos conhece os nossos próprios limites e a sua beleza não era de porte principesco, nem os seus modos elevados –, era uma ótima marca. Entre mulheres com ambições de se tornarem influenciadoras digitais, em busca de peças originas não muito caras, e homens em busca das mesmas, ou de se redimirem junto das suas legítimas com alguma oferta que merecesse perdão, a loja era um vai e vem de vida e agitação de gente mais ou menos gira. Os primeiros dias foram de êxtase e orgulho pessoal. Tinha chegado onde pretendia. Sentia-se no topo do mundo, ou, pelo menos, do bairro. De camareira a assistente de vendas que é como quem diz balconista. Diria que era um passo em frente. Pelo menos via os clientes mais vezes vestidos do que meio despidos. O pior – há sempre um pior em qualquer coisa, até mesma nas crianças, principalmente as que têm pulmões resistentes e berros desafinados – era… quase tudo. As horas infinitas de pé, os joanetes por conta disso, os turnos desarticulados com o seu relógio biológico, os colegas que não sabiam dobrar roupa, as prateleiras altas, a alergia às peças de lã, o cheiro a suor que alguns clientes deixavam na roupa que experimentavam e não levavam, as marcas de maquilhagem no decote de blusas brancas, as trocas manhosas de roupa que havia sido obviamente usada, os colegas enfadonhos, as pilhas de roupa para arrumar a cada segundo do dia, os intervalos pidescos, vigiados de perto por um supervisor que gostava de apontar para o relógio, fazendo-a sugar com maior fervor o seu cigarro eletrónico…
Não tardou a fartar-se muito daquela escravidão. Sentiu o que jamais havia suspeitado: saudades dos dias de camareira. Dos intervalos a experimentar a maquilhagem das hóspedes com uma das suas colegas mais divertidas, do silêncio do hotel, da paz que reinava naqueles corredores, dos horários certos, do quarto onde descansavam, da boa comida, da gentileza e das gorjetas de alguns hóspedes quando se cruzavam na ménage, ou quando lhe pediam algum extra… Não que pretendesse regressar a esses dias de camas por vezes nojentas, mas que não era assim tão mau, percebia-o agora. Não gostava de pessoas, o que se tornava cada vez mais claro, apenas nunca tinha tomado consciência disso, por nunca ter sido obrigada a lidar com massas e público enlouquecido em época de saldos.
O ideal, começou então a ponderar, seria voltar às limpezas, mas numa casa particular, de algum rico sempre em viagem, onde a casa acabasse por ser mais sua do que dele. Ah, isso seria o verdadeiro sonho. Pessoas q.b., trabalho calmo, um frigorífico sempre cheio, tempo livre, obras de arte pelas paredes, uma biblioteca bem fornecida, eventualmente um cão ou gato para tornar os dias ainda mais agradáveis. Um casal sem filhos era o seu objetivo. Apontaria toda a sua artilharia para uma dupla estéril. Bom, não estava segura de ser um plano sem mácula. Muitos casais sem filhos acabavam meio excêntricos, excessivamente apegados aos seus animais e até melindrosamente frustrados, o que podia resultar em temperamentos instáveis. Ainda assim, este era um cenário improvável, na medida em que reunia todos os possíveis e prováveis contras e, por norma, há percentagens de probabilidades a atenuar o pior dos cenários. Não devia começar a ser pessimista neste momento decisivo da sua vida. Impunha-se uma mudança e trataria de a colocar em curso. Olhou para o céu e acreditou que os deuses voltariam a estar consigo.
Nisto, o telefone toca e, do outro lado, uma amiga espalhafatosa dos tempos de escola retoma o contacto pois sabia que ela tinha trabalhado num hotel e ela sabia de uma casa ótima, onde precisavam de uma empregada com experiência profissional. Pagavam bem e eram muito ricos, pessoas influentes, até. Berta Brites soube, então, que era abençoada. Não apenas podia sonhar, como bastava pedir para que as coisas acontecessem. Estava segura de si e cheia de autoconfiança. Sempre a subir, como um balão de ar quente. Claro que o último desejo tinha sido uma descida brusca no seu bem-estar e uma pioria visível no seu estilo de vida, com horários estúpidos, colegas afetados e insuportáveis, gente louca por todo o lado… Nem queria voltar a pensar nisso. Agarrou na mala e sem mesmo trocar de roupa, saiu da loja ainda ao telefone, recebendo as indicações de onde e quando seria a entrevista para agarrar o emprego de sonho de uma casa particular, rica e sossegada. Provavelmente com vodka à discrição e festas sofisticadas, gente gira e até, quem sabe – sonhar só faz bem à alma – um candidato rico enamorado pelos seus olhos exóticos, com quem se cruzaria numa volta de canapés ou de recolha de copos, numa das receções do culto casal de anfitriões.
Foi mais ou menos assim que tudo aconteceu, só que não exatamente.
- Berta Brites conseguiu o emprego, claro que sim.
- O casal era rico, mas nem por isso sofisticado, pelo menos não ao estilo cinematográfico com que Berta os tinha imaginado.
- Não havia crianças, mas não faltavam birras.
- A vodka circulava, de facto, a rodos, acompanhada de muitas mais substâncias não contempladas no plano inicial de Berta Brites, em estado sólido, líquido e até em pó. E circulava em demasia.
- As festas eram demasiadas e infernais e terminavam, não raramente em orgias onde o tal preservativo que a tinha levado a deixar o adorável emprego de camareira num hotel organizado, seguro e tranquilo se multiplicava em número e absurdo.
Berta não deveria ter-se insinuado a alguns dos convidados nas primeiras festas. Foi mal-interpretado e de empregada de limpeza acabou em empregada ara todo o serviço e mais uma atração a somar às festas freacks e decadentes dos patrões. Sim, tinha agora patrões e não chefias e a diferença é abissal, como bem cedo percebeu a pobre B.B.
Tentou fugir, claro que sim, mas os códigos de segurança das portas mudavam a cada meia hora e não lhe eram facilitados, os seus documentos foram-lhe confiscados, bem como o telefone. Berta Brites viu-se escrava do seu próprio sonho, prisioneira do plano que ela própria tinha desejado.
Tentou olhar para o céu, em busca dos deuses amigos, mas não havia céu para onde olhar, num gigantesco apartamento que mais não era do que uma caixa-forte de um grupo de malfeitores que transacionava estupefacientes com as camadas mais influentes da sociedade, artistas, polícias…
Berta Brites acabou sexualmente explorada, viciada em álcool e não apenas e, em noites boas, sonhava com o seu pequeno hotel e três estrelas.
Moral da história
Cuidado com o que desejas, ou, mais corretamente, aprende cedo que não há empregos de sonho, apenas pessoas sonhadoras e pessoas insatisfeitas.
muito bom conselho