Não sabia há quanto tempo ali estava. Importaria isso? Já não teria qualquer interesse. Para quem quer que fosse. Nem mesmo para si. Ainda assim, perdeu-se estupidamente em cálculos através dos quais revia todo o trajeto desde que saíra de casa, tentando perceber quanto tempo passara. Quanto tempo passara desde que galgara o insignificante gradeamento, uma barreira praticamente infantil quando avaliada pelo desespero. Quanto caminho teria sido consumido/galgado pelos ponteiros do relógio desde que ali chegara, determinado, e se prostrara a olhar o negro do vazio que se alongava sob os seus pés. Tão negro quanto a sombra que o ocupava por dentro e que impedia a luz, qualquer luz de entrar. A sua escuridão era pior. Maior. Mais densa. A que o rodeava por fora acabaria em breve, dentro de alguma horas, com o regresso do dia. A sua manter-se-ia até à eternidade. Não era um acaso, antes uma condição. A condição do escuro no peito. A tenebrosa síndrome da sombra constante. Do escuro que não acaba nunca. Nem se desvia. Nem se compadece. Apenas intimida. Não investe. Não precisa. Basta lá estar. Basta ser. Ser e estar. Rarefazendo o ar. Oprimindo o coração, agora impedido dos seus naturais movimentos. O coração já não dilatava o suficiente para cumprir os propósitos vitais de oxigenação. Os pulmões espalmados. Comprimidos. Apenas uma breve fresta. Apenas algum ar. Apenas… A sua vida resumia-se a esse pequeno apenas. Ao susto constante. O terror funciona assim. Não precisa de nos tocar. De ferir. De arreganhar os dentes. Nem precisa de se fazer ouvir. A sua presença é quanto basta. A sua existência é suficiente. Mesmo na sua ausência. Assusta. Paralisa. Sufoca. Mata.

A sua sombra nem tinha rosto. Não precisava. Começara por se instalar sem que dela desse conta. Confortável, a sombra foi ocupando mais e mais divisões. Foi-se servindo do frigorífico. Ficou uma primeira noite, à experiência. Voltou repetidamente. Sem convite. Acabou por se instalar definitivamente. Não se recorda de quando a viu chegar com a bagagem de uma vida. Com a intenção de já não partir. Nunca achou que tal fosse acontecer, até que começou a perceber que teria de ser ele a mudar-se. Não havia mais espaço para ele. Nem tempo. A sombra esgotava tudo. Consumia tudo à sua volta. Começou pelo frigorífico, passou depois ao seu próprio apetite. Um dia, percebeu que lhe roubara as cores. Começou pelo verde. Depois o amarelo. Perdeu a conta logo que o azul se foi. Depois a música. Um ré aqui, um fá acolá e toda a escala sumiu num ápice. Não estava ainda alerta. Havia coisas ainda a distraí-lo, pelo que não percebeu de imediato que a sombra era cleptomaníaca. De nada precisava, apenas furtava por aborrecimento. Era apenas para se entreter. Começou a entender melhor quando ela, pouco depois, lhe levou as lágrimas. Nesse dia, incrédulo e assustado, e sentindo-se perdido, tomou consciência do roubo. Levou a mão ao bolso. Revistou a casa toda em busca do muito que já faltava. Vasculhou depois a alma e a devastação era já brutal. Uma pessoa que a recebera em sua casa, que lhe cedera espaço privado no seu peito, a quem confessara todo o tipo de aflições e pecados, frustrações e inconfidências tinha sido capaz de o roubar. De vilipendiar um mundo de franquezas e honestidade pura. Tinha tirado proveito da sua boa fé, da sua ingenuidade e extorquia-lhe, a cada segundo, um item precioso de cada vez. Um sorriso agora, uma boa memória logo de seguida, um propósito logo depois. Falsa. Mentirosa.

O terror é isso mesmo. Uma presença. Uma ameaça. Uma ideia de ameaça em quem ninguém mais acredita exceto nós, que estamos alerta. Que sabemos e a sentimos. É apenas na nossa nuca que chega o bafo assustador da sua calma e irónica respiração. Só os nossos ouvidos estão treinados para o sussurro dos seus passos. Cadenciados. Sempre atrás de nós. Sempre lá. Os outros parecem parvos e estupidificados. Surdos e cegos. Insensíveis à devastação do fogo. Ao trilho de nada que ela deixa atrás de nós. Que ela coloca à nossa frente. Que ela impõe em nosso redor, num raio que se vai agigantando. Sem caminho para andar, presos de medo num pedaço ínfimo de chão. O único que nos resta ocupa o exato espaço dos nossos dois pés juntos. Não é muito. O pior é que não é suficiente, porque não nos aguentamos infinitamente de pé, imóveis no mesmo sítio, incapazes de voltar para trás, onde também já não há espaço, apenas vazio, percebemos, então, o óbvio. Já não temos caminhos. Não há saídas. O nosso trilho esgotou-se. Uma placa de néon sem cor e sem dramas avisa: Sem saída.

De costas para o gradeamento da ponte, onde se agarrava ainda com ambas as mãos, inclinou-se para olhar os seus dois pés juntos. Aquele era o derradeiro espaço que lhe estava destinado. A sua sombra, sentia-o, expulsava-o agora do seu próprio corpo. À memória veio-lhe o filme ‘All about Eve’. Se conseguisse sorrir, teria sorrido. Ele era a Bette Davis. De mansinho, um pedaço de escuro de cada vez, tinham-no expulsado da sua vida, do seu corpo, da sua existência. Talvez o tivesse percebido, mas não a tempo de o evitar. Talvez tivesse pressentido, mas não com a convicção necessária. Talvez o tivesse desejado… Era uma perspetiva interessante. Talvez o tivesse desejado. Talvez. Não sabia. Já não interessava.

Tudo acabaria dentro de instantes. Já tinha um pé no ar. Já tinha a vida suspensa sobre as águas escuras do rio. Era hora de maré baixa. Há que pensar nos detalhes. Pensou numa varanda ou num terraço. Considerou demasiado urbano e vistoso. Alguém teria, no final do dia, de raspar da sola dos sapatos restos viscosos da sua existência terrena. Teria de olhar a sua carne dilacerada, esborrachada, a sua massa encefálica por ali, a escorrer pela calçada, ossos expostos… Achou que importunaria demasiado. Nunca fora de dar nas vistas. Nunca fora de se exibir. Não o faria depois de morto. Pensou numa fina lâmina que lavrasse delicadamente veias e outras condutas do divino líquido, o qual correria para a água quente de uma banheira cheia, como rios rumo ao mar. Ao mar morto. Teria acabado de fazer uma piada? Não sabia. Não lhe agradou o conforto do banho quente. Era quase agradável. Pensou na linha azul do metro. Pensou na linha vermelha do metro. Não se decidiu pela melhor cor de linha, até porque já não lhe era permitido distinguir cores. Saltar, por saltar, que fosse sem público. Sem dramas para os demais. Sem possibilidades de socorro. Sem a hipótese de sobrevivência. Sem o risco de viver decepado e, assim, incapacitado para tornar a tentar. Seria um humilhante fracasso. Uma intolerável incompetência, falhar aquele que se pretendia o último ato em vida. Falhar o derradeiro plano. Não seria esse tipo de incompetente. A ponte. Teria de ser a ponte.

Reviu o essencial. Uma mensagem agendada para chegar a quem interessava na manhã desse mesmo dia. As contas em dia e tudo esclarecido ao advogado. O seu BI preso à roupa com alfinetes, para quando o encontrassem não terem de perder tempo a descobrir a identidade de mais aquele desgraçado. Adiara o mais que conseguiu. Pulgas, por quem ainda se esforçava, pressentindo o mesmo do que ele – seguramente que o tinha pressentindo muito antes dele, que os cães que nos amam são sagazes – morrera na semana passada, livrando-o dessa preocupação. Pulgas sempre o colocara em primeiro lugar. Mesmo a sua morte natural tinha sido uma oferta. Uma oferta soberba. A derradeira. A morte dele precipitou a urgência. Facilitou o agendamento. Com ele, talvez não conseguisse. Não poderia simplesmente tê-lo deixado com ela. Ela viajava demasiado, acabaria por entregá-lo a alguém que jamais o amaria ou compreenderia. Pior. Podia apenas, por ser mais simples e cómodo, entregá-lo numa instituição. Ela. Como ainda a amava. Mas não bastava. Já não era suficiente. Mesmo ela tinha perdido a cor e o som, como um desadequado aparelho de receção de imagem. Tinha ficado à sombra da sua sombra. No escuro. Como tudo o resto. Lamentava o bilhete que lhe deixara. Não estava bem escrito. Não estava à altura da situação. Não era o que pretendia. Era o que conseguira.

By Josef Koudelka

Escrito há um mês. Dobrado na sua carteira. Deveria ter perdido algum tempo a revê-lo. A relê-lo. A aprimorá-lo. Para que ela não sofresse tanto. Não ia ser bom para ela. Amantes desde sempre. Os primeiros um do outro. Para si, ela seria a primeira e a última. A única. Se tivesse lágrimas, choraria a dor que lhe causaria. Ela amava-o. Compreenderia. Compreenderia que ele não podia mais saber o quanto ela chorava às escondidas, o quanto ela sofria por não ser capaz de o ajudar. Por não ter sido capaz de encontrar o sorriso que ele perdera. Onde o perdeste? Diz-me, que procurarei. Perguntarei. Irei ao fim do mundo… O seu sorriso já não estava neste mundo. Já não podia ser encontrado. Era um bilhete de merda. Ela merecia tanto mais. O que ele lhe fez. O que ainda lhe faria. Mas ele não era capaz de mais. De nada mais. Ele simplesmente já não era. Ela merecia… Podia deixar-lhe uma mensagem de voz. Sim, tinha o telemóvel no bolso, com o GPS ligado, para que, caso ainda funcionasse após a queda, conseguissem localizá-lo com exatidão, quando a sua ausência levantasse suspeitas e se iniciassem buscas. Estava num dos bolsos com fecho do casaco e o casaco bem abotoado. Não perderia nem um nem outro na queda. A queda. Já ansiava por ela. A sombra que tomasse o espaço final dos seus dois pés juntos. Ela que tomasse esse pequeno espaço também. Bom proveito!

By Antonio Mora

Ela merecia outro bilhete. Um beijo. Uma explicação. Outra oportunidade. O escuro estava mais cinzento. O nevoeiro dissipava-se. O dia nascia. Em breve vê-lo-iam. O pé que se pendurava já no vazio recuou para junto do outro. Um último primeiro beijo. Uma hipótese de recomeço. Um melhor bilhete. Conceder a ambos a hipótese de realizar o desejo de envelhecerem juntos. Um português mais correto. Ela odiava maus português e era isso que ele lhe deixava. Não podia. Tentou virar-se. Galgar o corrimão. De volta para o tabuleiro da ponte. O telefone toca. Só podia ser ela. Desabotoa os dois botões de cima. Abre o fecho do bolso interior. Vai dizer-lhe que a ama e que em breve estará de volta a casa. Que foi dar uma volta de moto para espairecer. Que precisa de ajuda. Ela que compreenda. Ela que tenha paciência. Ela que o ame. Quer ser quem era. Quer tentar. Quer… Consegue agarrar o telefone. Afasta o visor um pouco mais. Sem os óculos… Quer ter a certeza de que é a ela a quem vai dizer tudo aquilo que, de repente, guardado há meses num local que ele já não encontrava às escuras, acaba por lhe chegar às golfadas ao cérebro, à boca. Na ânsia, sobe já uma perna. Ela salvou-o. Salvava-o sempre. Os dedos trémulos. Um vislumbre de sentimento. Uma certa vontade. O telemóvel cai no vazio. Estica a mão que tenta, tolamente, ingenuamente, agarrar aquela luz que se vai e que jamais alcançará. Aquela luz que já não se vê. Que já não existe no mundo do visível. Não podia ter tentado. A perna que tentava galgar escorrega. Não aguenta o repentino desequilíbrio daquele movimento brusco. Não encontra o poiso onde estava. O lugar junto do outro pé que também já lá não está. A humidade no metal. A mão solta-se. A outra, ainda a esbracejar no escuro em nome do telemóvel que acreditou ser capaz de agarrar. Caía. Sem o telemóvel no bolso, como planeara. Um plano fracassado. Um bilhete com erros de português. O nome dela no visor. Uma salvação que não acontecera. A água que nunca mais chegava. E se ela não lhe tivesse ligado? E se…

By Josef Koudelka

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