Etelvina sentia o pico de adrenalina a percorrer-lhe o corpo e o coração a bombear felicidade a cada batimento descompassado. Tudo numa histriónica arritmia. Tudo ao rubro, incluindo as suas faces. Não as via, mas sentia-as. Febris, roborizadas. Felizes. Com o dedo percorria os símbolos da raspadinha. Um enorme pedaço de cartão que bem merecia o nome de raspadona. O dedo, titubeante, temia ter-se enganado nas anteriores cinquenta verificações. Ora, o avião, três vezes, o número mil, três vezes, o diamante… Faltava a porca, cinco, e os porquinhos… Queria muito, mas não conseguia acreditar. Cem mil euros espreitavam-na pelos quadradinhos na forma daqueles bonecos de recorte quase infantil. Uma quadrícula abençoada. Os bacorinhos eram particularmente enternecedores, bem como a jovem mãe porca. Este era o início de dia que aguardara toda a sua vida e que há muito ressoava nas páginas dos horóscopos que semanalmente consultava. “Plutão está na casa de Saturno, um sinal de boa-venturança e ainda melhor vizinhança.” Estas as palavras dedicadas a Capricórnio esta semana e tudo batia tão certo. A raspadinha tinha sido comprada na papelaria que habitava o rés-do-chão do prédio onde vivia. Era a casa e a vizinhança. O dinheiro era mais do que boa-venturança, e os sinais tinham nas suas mãos formas divertidas, como animais de quinta, meios de transporte e pedras preciosas. Plutão que se mudasse definitivamente para Saturno.

By Vivian Maier
Precisava de passar novamente o dedo pela grelha de figuras. Reler o pretendido. Verificar o verificado. Apetecia-lhe gritar, mas foi com a voz sumida e disfarçada num rasgado e tímido sorriso que se dirigiu à D. Josefa. Ela que a ajudasse a confirmar se era verdade. Que lhe tinha saído a sorte grande das raspadinhas. ‘La gorda’, como diria a sua avó basca. Estava rica? Seria? Não havia porquinhos a menos? Havia total concordância de imagens e números? Tudo se repetia como pretendido? Como a vida era maravilhosa! A primeira vez que gastava cinco euros numa raspadinha – acautelava-se sempre com raspadinhas mais baratas, que os euros estavam pela hora da morte – e fazia um retumbante bingo de mais de cem mil euros. Havia descontos, ainda, avisou D. Josefa, mas ainda assim, para quem nunca tinha conseguido ultrapassar os mil euros de poupança, aquilo era o Evereste das suas finanças. Algo jamais alcançável, por mais poupada que fosse, por mais que escalasse. Mesmo que deixasse de comer, jamais chegaria a uma verba tão milionária. Ocorreu-lhe, ao pensar na palavra, que era, daí em diante, isso mesmo: milionária. Não com o volume de dinheiro e de poder que se imagina quando pensamos em milionários de verdade – que o Bill Gates era pessoa para ter muito mais do que isso e tudo era contabilizado em milhares de milhão e verbas ainda mais altas –, mas ao ter mais do que um milhar, era-se literalmente milionário. Não era altura para a contrariarem nesse dado, nem se alterarem vocábulos e significados.

By Vivian Maier
Sentia, antes de mais, urgência em gritar aquilo. De ir para casa. Rir e chorar sozinha. Rodopiar e pintar os lábios. Sim, tamanho sucedido merecia um tom amora silvestre, um lollipop pink, ou mesmo um rouge cherry. Etelvina vibrava. Tinha frio, tinha calor e colado no rosto aquele sorriso pateta que não conseguia desmanchar nem com pensamentos azedos. Planeava já o futuro. O próximo e o outro, mais distante. Pediria sigilo à D. Josefa, se bem que sabia muito bem o que isso significaria: que não diria a mais de cinquenta conhecidos e clientes da papelaria, até porque ter uma raspadinha premiada com tamanha quantia era bom para o negócio. Não poderia impedir que a outra falasse, mas não podia deixar de pedir discrição. Já estava arrependida de ter pedido a sua ajuda na reconfirmação do resultado, mas, de qualquer forma, teria sempre de a informar a fim de receber o dinheiro, não era? Poderia ser de outra maneira? Desconhecia-o e, de qualquer forma, já não fazia diferença. Estava feito. Não se pode perder tempo com coisas que não se podem alterar, que se colam já ao passado com garras de facto e assumindo-se como história comprovada. Nada diria a quem quer que fosse e mesmo se confrontada, diria apenas que, sim, que tinha ganhado um dinheirito, mas nada do que por aí se comentava. Antes fosse verdade. Esse seria o seu guião e dele não se afastaria. Não deixaria o trabalho de caixa de hipermercado. Nem pensar. Além de lhe dar um extra mensal que não podia rejeitar, que o dinheiro voa, mesmo para quem não viaja de avião. Serviria ainda para corroborar a sua história de que não estava rica. Quem, no seu juízo perfeito, ganhando uma supimpa raspadinha se sujeitaria ainda a oito horas de pé, a passar alimentos e outros bens de primeira e segunda necessidade pelo leitor de códigos de barra e a limpar passadeiras de borracha todo o santo dia, fins de semana incluídos? Era uma boa estratégia. Nem aos filhos diria. Nada a incomodava mais do que crianças mimadas e arrogantes, displicentemente convencidas por força do vil metal, que já nem de metal era, que tudo era agora um alegre faz de conta digital vestido de plástico. Apenas números e parcelas virtuais num extrato que já nem chegava em papel, e que tinha de ser consultado na aplicação ou no extrato online.
Tudo igual. Até porque não queria começar a esbanjar a fortuna em ténis de marca e outras insignificâncias juvenis, que só vestem vaidades, nada mais. Muitas vezes, dependendo das modas, nem do frio protegem, apenas se mostram ao mundo em contas de Instagram mal-amanhadas, para inglês ver. Lancheiras preparadas em casa, férias na casa dos avós, no Algarve – bem bom, que é para onde os estrangeiros veem, ou vinham, antes disto do vírus, que tudo estragou –, roupa nas Primarkes da vida e, porque não era insensível e o dinheiro teria de servir para alguma coisa mais, além do óbvio desafogo, talvez um carro novo, ou quase, pequeno e económico, para não dar nas vistas, pago a prestações, pois claro, e um ou outro extra para os miúdos, sob pretexto de algum bom comportamento, desempenho escolar ou data especial. A si, ofereceria a possibilidade de passar a pintar o cabelo no cabeleireiro e já não em casa, que já lhe faltavam braços para tal tarefa. Pintar a casa era outra das benesses. Nunca mais ergueria um rolo de tinta aos tetos. Isso fê-la sorrir de felicidade de imediato. Como era bom ser quase rica.
A verba teria de ser muito bem gerida. Tudo muito acautelado. Tudo em segredo. Abriria até uma nova conta, num outro banco, numa localidade vizinha, para que o provincianismo local, mais os rumores de fortuna que seguramente sairiam da boca da D. Josefa, e o lado humano de qualquer bancário, não reforçasse a ideia generalizada de que estava rica. Todos os bacorinhos, diamantes e aviões daquele pedaço de cartão teriam de render o suficiente para durar até ter netos e bisnetos, e a todos poder ir ajudando com parcimónia e racionalidade. Não era uma má gestora de tostões, pelo que pretendia manter o estatuto com verbas mais avultadas. Estabelecido o plano de confidencialidade em toda a linha, determinada a contrariar e até a desmentir qualquer rumor que se atrevesse a dar conta da sua pequena fortuna, Etelvina assegurou os hábitos de sempre, com os modos de todos os dias. Sem tirar nem pôr. Sem peneiras ou extravagâncias visíveis. Mesmo o cabeleireiro e o carro poderiam bem chegar apenas no ano seguinte e nem um centavo gasto em guarda-roupa ou outros sinais exteriores de raspadinha vencedora. Ainda assim, sentia-se diferente por dentro. Mais calma e segura. Isto de saber que não falta dinheiro para a renda no final do mês, nem agasalhos para o inverno, aquece o coração e relaxa as preocupações. Em segredo, avançou apenas com seguros de saúde para ela e os dois filhos. A última peça do puzzle foi deixar de frequentar a papelaria da D. Josefa. Caso também isso levantasse falatório, diria abertamente que não gostou que se comentasse que tinha ganhado uma fortuna com uma raspadinha e que D. Josefa não o tivesse desmentido. Felizmente, não houve necessidade de tanto.
Tudo bem planeado e ainda melhor executado, Etelvina vivia um dos mais tranquilos e felizes períodos da sua vida, cujos maiores tormentos se tinham ficado a dever ao marido e ao turbulento e conturbado divórcio. Etelvina tinha deixado andar, normalizando coisas que no peito entendia não serem normais ou, ainda que o sendo aos olhos de muita gente, coisas que a impediam de ser feliz. Um dia, deu por si a ter pena de si própria, por não ter a seu lado um marido que verdadeiramente a amasse ao ponto de a respeitar, um companheiro que se preocupasse com a sua felicidade, que a elogiasse e puxasse para cima. Alguém que olhasse para ela do mesmo patamar e não sempre de cima para baixo. Um homem que não a rebaixasse nem humilhasse. Não era preciso violência numa relação para que esta minasse a autoestima e corroesse qualquer possibilidade de felicidade conjugal ou pessoal. No dia em que compreendeu finalmente que aquilo que lhe ia no peito não era mais do que autocomiseração, Etelvina compreendeu o resto. Não seria feliz naquele casamento e não seria capaz, nem estava disposta a tentar mudar o marido. Ninguém muda ninguém a não ser a nós próprios e ele não reconhecia defeitos seus, pelo que jamais mudaria. Mudar-se-ia ela. Foi o que fez. Houve escândalo. Alguns gritos. Perseguições. Ameaças. Etelvina manteve-se firme. Aparou cada golpe como uma falésia no cimo da qual piscava um farol. Uma luz que nunca se apagou e que a guiou oceano fora. O tempo tudo amaina, mesmo a mais furiosa tormenta e, ainda que o mar nunca mais tivesse sido raso entre os dois, eram capazes de se cumprimentar sem nojo. Não tinha sido fácil para os miúdos, com cada um deles a puxar a brasa à sua sardinha, mas tudo tinha encontrado um eixo, manco aqui e ali, mas um novo eixo que tudo permitia rolar, embora com mais dificuldade, sempre que o piso se apresentava mais acidentado e se exigiam decisões tomadas a dois, sempre relacionadas com os dois filhos. Mas nada capaz de lhe tirar o sono.
Alguns meses após a divina raspadinha, como interiormente se lhe referia, Etelvina vê o ex a entrar-lhe pela porta. Divorciados há três anos e nunca tal havia acontecido. Ele aguardava pelos miúdos lá em baixo ou deixava-os à porta enquanto ela os aguardava na escada. Desta vez, subiu, aproveitando a entrada de um vizinho que o reconheceu e permitiu o seu acesso ao interior do prédio. As crianças ainda não estavam despachadas, pois era meia hora antes do combinado e Etelvina foi apanhada desprevenida com ele a tocar à campainha já à porta do andar. Até os miúdos vieram espreitar, tal a surpresa de voltar a ver o pai em casa, principalmente na casa da mãe, onde ele não era tido como bem-vindo. Logo aí, na cabeça de Etelvina, a porca torceu o rabo. A que se devia aquilo agora? Vai casar-se, pensou. Deve querer informar-me de viva voz. Os miúdos já lhe tinham falado, muito por alto, de uma amiga do pai. Alguém com quem, às vezes jantavam, tanto fora como em casa. Nada contra. Pelo contrário. Quanto mais depressa ele se acomodasse na vida afetiva, mais tranquila ela ficava. Menos hipóteses de voltar às perseguições, às loucuras dos primeiros tempos, em que não aceitava que ela não o quisesse mais, e em que se enciumava com qualquer coisa, mesmo com coisas inexistentes, que tudo o que Etelvina queria era sossego e não outro homem a julgar que lhe podia dar ordens. Não era completamente desprovida de romantismo, mas conhecia bem aquela geração de homens do seu estrato social, para acreditar que o ex-marido não era assim tão diferente dos demais. Um era quanto bastava. Claro que sonhava e imaginava coisas. Coisas boas e agradáveis, românticas e sensuais. Gostaria de as experimentar enquanto ainda era nova, ou perto disso, mas não a qualquer preço. E por falar em preço, pensou logo que talvez aquela visita inaudita trouxesse água no bico também a outros níveis. Afinal, não viviam assim tão longe que não lhe pudesse ter constado que a ex-mulher tinha ganhado uma batelada, que estaria rica, logo, mais desejável. Tendo em conta todo um passado em comum, ser-lhe-ia mais fácil talvez, voltar a fazer com que ela se interessasse por ele do que qualquer outro azeiteiro com interesses meramente financeiros, enquanto eles, além de uma longa história em comum, tinham dois filhos que os uniriam para sempre.
Ele puxou do seu melhor português, demorou-se nas faces dela enquanto se cumprimentavam, o que acontecia pela primeira vez. Cheirava a perfume e elogiou o penteado dela – sim, já tinha cedido a uma ida ao cabeleireiro, mas tendo em conta que estava prestes a celebrar um ano de ‘divina raspadinha’, achou que não faria mal e ninguém se aperceberia –, que estava com saudades e que não a imaginava tão bem e bonita. Queria até saber se estaria interessada em os acompanhar. Que jantariam juntos num sítio de que ela gostasse. Que, enfim, pensava muito neles. Neles os dois. Naquilo que correu mal e no muito que sempre correu bem. A perspetiva de Etelvina colocava a percentagem na ordem inversa, mas foi abrindo os ouvidos, já que os olhos não os conseguia abrir mais do que já estavam. Quem era aquele ali à sua frente? Que avis rara era aquela? Que canção do bandido mais foleira era aquela? De onde vinha tudo aquilo? Então ele já não tinha uma ‘amiga’? Então ela já não era frígida, e mal-amanhada e uma bimba de aldeia? Etelvina não desgostava de um elogio, mas aquilo era outra coisa. E era por demais evidente, no entender da sua mente desconfiada. Se havia coisa que Etelvina reconhecia à légua, talvez por defeito profissional de uma caixa de supermercado experiente, era um ladrão, um vigarista. Há algo neles que se deixa cheirar e esse odor já era percetível nas suas narinas húmidas. Tal como os ilusionistas, fazem-nos olhar para um lugar onde nada de estranho se passa, para, iludida a atenção da audiência, executarem o seu truque descaradamente, mas sem que ninguém o perceba. Tão básico. O que ele não percebia é que naquele circo, para aquela espectadora, ele não era o ilusionista e sim o elefante, com o seu patético, deprimente e revoltante número de acrobacias. O que ele não viu, é que ela era a bailarina, a trapezista, que já rodopiava muito à frente daquele seu show de aldeia, que o dinheiro aguça a esperteza, mais ainda quando sai suado de uma raspadinha onde a sorte é ditada por uma porca parideira, aviões e diamantes. O que ele deixou escapar é que ela já tinha visto todos os seus espetáculos. E não era apreciadora do artista.
Num golpe de mestre, antecipando cenários e agindo com prudência, Etelvina não escondeu a surpresa de ali o ver e, sem que permitisse que ele fosse mais longe do que o hall de entrada, nem naquele discurso, desatou num inesperado pranto. Ainda hoje se questiona como conseguiu tal feito. Disse-lhe que não o esperava, mas que ainda bem que ele ali estava, que passava por enormes dificuldades, que estava na calha para ser despedida, que tinha dois meses de renda em atraso, que não sabia para quem se virar… Talvez ele, quem sabe, pudesse contribuir com algo mais para a alimentação e escola dos miúdos, que o mais novo precisava de um aparelho para os dentes, que andava deprimida e se sentia estranha, atormentada a toda a hora, com alguma tristeza e ansiedade…
Enquanto se queixava e lamuriava, entre lágrimas providenciais e soluços, Etelvina percebia os milhares de mudanças no rosto dele. Foi-se o charme, o olhar dengoso, as palavras gulosas, a vontade de toque, esvaiu-se até o perfume, consumido no alarme da conversa. Inconscientemente ele foi recuando, eliminando centímetros atrás de centímetros, até se colar à porta da rua. A testa começou-lhe a brilhar e junto dela as enormes entradas que já não eram bem na testa, mas mais para dentro. Era o crânio todo que já transpirava. Ele já suava do pensamento. Depois do assombro, o pânico. O receio de ter de desembolsar mais dinheiro, o que provavelmente qualquer tribunal permitiria naquelas circunstâncias, já que ele tinha engendrado um sem-fim de esquemas, concebidos por um advogado misógino, que conseguiu provar uma falsa bancarrota, mas que ela tinha ignorado, já que mais do que dinheiro, desejava liberdade e essa não tem preço. Um pouco antes da taquicardia ou um ligeito AVC que ela sentia a caminho do cérebro dele, o ex consegue articular uma espécie de pensamento que começa por balbuciar, numa das folgas dos soluços dela, agora já reais, nem ela sabia bem como nem porquê. Talvez fosse boa atriz, talvez a sua mentira servisse um propósito tão bom que todas as forças do universo contribuíam para a sua veracidade… Não interessava. O facto é que ela chorava de verdade e ele estava apavorado de forma ainda mais real.

By Noell S. Oszvald
– Ah, pois, que aborrecido… Não sabia. Imagina lá tu. Lamento muito. Que chato! Achei que estavas ótima e que, enfim, terias um bom pé-de-meia, falam mesmo que estás rica… Subi apenas porque estou cheio de azia e preciso de tomar um comprimido. Se me pudesses dar um copo de água.
– Ah, sim, desculpa o desabafo. Fui inoportuna. Água, claro, enquanto não a cortam, que também está por pagar, mas não te assustes por ser castanha, tem muito ferro, ou isso ou ferrugem, o que vai dar ao mesmo, não é?…
– Olha, deixa, eu faço isso no café lá em baixo.
– Ah. Está bem. Olha, e não te esqueças, tudo aquilo em que puderes ajudar… É para as crianças. Outra coisa, não voltes a subir. Não gosto de falatórios, sabes…
Moral da história:
Nunca inventar desculpas que envolvam uma falsa azia, pois ela pode tornar-se real e ter de tomar comprimidos de verdade. Outra coisa, na falta de medicação oral, as outras alternativas não são boas.

By Peter Linbergh
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