A Regra de Três Simples de Maria Francelina

Ela não sobrevivia três segundos sem atenção, três minutos sem um cigarro, três horas sem um vodka-qualquer-coisa, três dias sem ir às compras, três semanas sem um novo amante, e três meses sem umas boas pastilhas de qualquer coisa para combater aquela breve, mas intensa e persistente melancolia, ou seria apenas aborrecimento?

Numa existência desregrada, sem códigos ou ditames, estas eram as únicas leis, impostas naturalmente pela sua natureza volátil, a qual moldou ainda ao perfil hiperativo, para que nunca lhe faltasse energia para cumprir a sua cartilha dos Três. Assim, programou-se para ser gira, engraçada e divertida; para ser uma profissional altamente competente, a fim de ganhar dinheiro que lhe garantisse que nunca lhe faltava stock de cigarros e álcool, que poderia esbanjar dinheiro onde bem entendesse; ter relativo sucesso, de forma a ser atraente para homens e mulheres por quem se sentisse atraída; e autónoma para poder tomar tantas pastilhas e tão diversas quanto as que achasse necessárias e andar por onde quisesse e considerasse pertinente, independentemente de os lugares serem escuros ou escusos.

 

Sem olhares críticos, sem restrições, moralismos ou juízos de valor, que de entre todas as coisas com valor é aquela que menos valor tem. Ainda assim, um juízo de valor mal calibrado, pode maçar imenso e até doer um pouco, pelo que é sempre de evitar aquele olhar que julga sub-repticiamente ou que nos ajuíza de frente, como um espelho deformado onde não nos reconhecemos. Há embates escusados, como é o caso, ainda, de uma colisão frontal com um camião de 16 rodados. Mas essa era uma regra que não necessitava de recordar no seu manual de sobrevivência, já que estava incorporada no kit biológico. Rezava apenas para que nenhuma pastilha, um dia, esbatesse esse instinto primário que nos faz fugir de camiões ou qualquer outro veículo em andamento, rumando até nós.

Regendo-se apenas e tão-somente pela sua regra dos Três, Maria Francelina sentia-se livre de qualquer outra regra, dever, obrigação ou disciplina. Sempre que a situação a impedia de cumprir com a sua cartilha, que lhe limitava o número de cigarros, as doses de álcool, a rotação de amantes ou de alguma forma a sufocava, limitava-se a partir. A quebrar os ténues laços que a agarravam aos lugares e às pessoas, apenas cenários e elementos decorativos da sua liberdade. Nada mais, nada menos. A sua grande peça pessoal poderia ser encenada em qualquer companhia ou palco. O que importava era o guião e a encenação e tudo isso estava por sua conta. Protagonista central e exclusiva do seu enredo, do seu glorioso monólogo, Maria Francelina não cederia a caprichos histéricos ou dramáticos de outros atores ou diretores de cena na sua própria produção. Um patrão abusivo, uma mão a roçar o seu rabo, um olhar prolongado ao seu decote, um pagamento em atraso, um ambiente tóxico, um romance doente, um beijo mal dado, um amante desastrado, um quotidiano enfadonho, uma amizade interesseira, uma amiga invejosa, um enfado peçonhento e já ela levantava arraiais, espreguiçava as asas, desempoeirava horizontes e lá se erguia em novo voo. Essa instabilidade, no fundo essa inconsequente liberdade, essa consciente ausência de prisões eram o seu oxigénio e a sua única rotina. Agrilhoada ao que quer que fosse, definhava, mirrava, murchava e sucumbia. Não lhe era, por isso, difícil partir, antes, sim, ficar, sempre que sentia a falta de ar puro a encher-lhe as narinas e a alma.

“Isso é incapacidade de enfrentar a realidade.” “Isso é medo do confronto.” “Isso é cobardia.” “Isso é imaturidade.” “Isso é fuga para trás”, Isso é… o raio que os parta! Maria Francelina era a Kate e o DiCaprio na proa do seu amor próprio, mas bem capaz de avistar um floco de neve a cinquenta metros e um iceberg a uma milha de distância. Nada afundaria o seu barco e dividir uma tabuinha com almas perdidas não lhe suscitava qualquer empatia, nem mesmo cinematográfica. A sua era uma lancha rápida, de proa aguçada, capaz de romper qualquer maré e a rota seria sempre da sua conta e por sua conta. A tripulação substituía-a sem dramas em cada destino.

Maria Francelina correu mundos dentro de mundos, conheceu todos os tipos de pessoas e pode mesmo ter ajudado a criar algumas categorias novas. Tudo mudava à sua volta exceto a sua cartilha dos três. Ainda não sobrevivia três segundos sem atenção, três minutos sem um cigarro, três horas sem um vodka-qualquer-coisa, três dias sem ir às compras, três semanas sem um novo amante, e três meses sem umas boas pastilhas de qualquer coisa para combater aquela breve, mas intensa e persistente melancolia, ou seria apenas aborrecimento? Essa matriz, como um farol orientador não se apagara e era o garante da sua argúcia e velocidade de resposta, em qualquer sítio ou circunstância. Começou, todavia, a dispensar alguma atenção. Cansava-se já bastante do excesso de atenção, ou apenas começava a receber menos dela e a ocupar um lugar mais reduzido da luz da ribalta, agora até já um pouco descentrada do seu ego. Tinha a certeza da primeira possibilidade, mas sentia alguma dificuldade e nostalgia em admitir a segunda. Estaria a perder o brilho ou o interesse em brilhar? Seria apenas uma questão numérico-temporal? Estaria na hora de dilatar os três segundos, primeira regra da sua regra maior? Talvez a primeira unidade temporal devessem ser os minutos e tudo seguir a sua lógica a partir daí. Ficou reticente. Não podia alterar uma regra de ouro, que tão preciosa tinha sido para a sua felicidade e independência e tanto proveito lhe tinha dado. Nisto, ficou às escuras. Percebeu que o foco que a iluminava no seu palco tinha diminuído de área, de diâmetro. A sua circunferência de luz tinha encolhido. Mirrado. Forçou um passo para a esquerda, a fim de voltar à luz e recentrar-se no seu ponto central.

Sentiu um ligeiro calafrio. Como quando damos por uma parte do corpo, ainda sem querer admitir que se trata de uma dor ou doença, apenas ainda um incómodo que nos recorda daquele pedaço de corpo, até então esquecido no adormecimento da felicidade geral da saúde plena. Um pequeno grão de areia que começa a sedimentar preocupações e tomadas de consciência dolorosas. Daqueles que quando voltamos a olhá-lo nos olhos já é uma pepita, uma pedrita. De início, não suficientemente grande para provocar colapsos repentinos, mas grande o suficiente para matar sossegos de supetão. Tememos, então, voltar ao contacto, cientes já de que para lá continua a medrar. A autonomizar-se. A agigantar-se no nosso medo e na inesperada mudança de segundos para minutos. Pode parecer pouco, porém é uma passada de gigante ciclópico, mas não cego. Em breve um rochedo, uma falésia e o seu precipício.

No centro de um foco de luz menor, adaptada ao seu novo tamanho, mais ajustado, talvez, às necessidades reduzidas de atenção, agora nos três minutos, se bem se recordava, começou igualmente a sentir o peso do ar quente e tóxico dos cigarros nos pulmões. Era o susto daquela pedra já não tão pequena quanto isso, a pesar sobre tudo o resto. Reduzir, diminuir, recalibrar e reajustar eram verbos desconhecidos que conjugava e tuteava agora num eterno gerúndio. Felizmente tinha o álcool, do qual ainda não se fartara e que ia bebendo, e como o gerúndio, neste caso, assentava tão bem. Bebia, todavia, cada vez mais vezes sozinha. A sua itinerância não permitia grandes enraizamentos afetivos. Por outro lado, e esse era um lado ótimo, deixava-a mais livre para conhecer novas pessoas e travar conhecimento em qualquer bar ou clube onde pousasse a sua curiosidade. Devia… Não, tinha de ser sincera. Já não era confidente da vodka. Era agora mais íntima do vinho, na sua versão tinta.

Maria Francelina encarava todas estas novidades interiores como trends, reinvenções da sua personalidade inquieta, fruto do seu espírito experimentalista, resultado de uma vida de errância. Era a vida a acontecer e a fazer das suas e se as regras eram suas, porque não adaptá-las à sua rebeldia, ao seu novo eu? Levou a mão à caixa das pastilhas. Estava na hora de mais uma. Estava leve. De dentro dela nem um som. Estava vazia. VAZIA. Como era tal possível? Há quanto tempo tomara a última? Como não percebera que era a última do ininterrupto sock? Porque não repôs a dose trimestral? Tentou recordar-se do que fez por ocasião da última pastilha. Costumavam ser noites de extravagância e engate, pelo que recordar-se-ia, seguramente. Porém, nada. Nada de nada de nada de nada. Nem uma lembrança, nem um grão de areia de reminiscência. Com quem estava? O que fazia? Em que data? Em que local? Num clube? Zero. Arrepiou-se. Seria uma qualquer demência precoce? Disparate. O seu cérebro era brilhante. A sua mente lógica e sem mácula. Melhor do que um mecanismo suíço.

Tinha por hábito comprar as pastilhas sempre que ia abastecer-se de outro dos seus vícios: botas e brincos, suas compras prediletas, às quais dedicava dias inteiros e consecutivos em busca de algo verdadeiramente apaixonante e inédito. Quando tinha feito isso? Há quanto tempo não o fazia? Então e os três dias… Precisava de botas e brincos pois a cada três semanas entregava-se a um novo amante e não gostava de repetir nem os amantes nem as botas com que os conhecia. Não acreditava. Que toda a Regra dos Três se esboroava como suflé intimidado e sensível com qualquer corrente de ar que tocasse um fio da sua superfície. Era preciso recapitular. Voltar a afinar o mecanismo, recuperar a regra, instituí-la com ímpetos de lei, forçá-la de volta à sua vida se necessário fosse, como tudo indicava que era. Não apenas necessário, como urgente.

Como é que era mesmo? Requeria atenção a cada três segundos, um cigarro a cada três minutos, um vodka-qualquer-coisa a cada três horas, não passava três dias sem ir às compras, três semanas sem um novo amante, e três meses sem umas boas pastilhas de qualquer coisa para combater aquela breve, mas intensa e persistente melancolia, ou seria apenas aborrecimento? Olhou o papel onde anotara tudo isso, como se não o fazendo não conseguisse alinhavar e recuperar as suas próprias normas de vida. Ficou escandalizada com essa necessidade de cristalizar o que devia ser puramente intuitivo e ficou chocada ao relê-las. Sentiu exatamente aquilo que se sente ao palpar qualquer coisa que se possa assemelhar a um caroço no peito, a uma ferida que avança pelo corpo, a um rio de sangue que não estaca e percebemos. Percebemos que deixamos de ser. Não apenas quem éramos, quem julgávamos ser, mas apenas deixamos de ser. Saudáveis, despreocupados, vivos. As suas regras assustaram-na tanto quanto uma dura palpação de uma qualquer massa indistinta de células num qualquer alojamento anatómico. Não era a mesma pessoa. Não estava minimamente capacitada para conseguir cumprir com tudo aquilo, naquela louca sequência, naquele ritmo desembraiado. Assustou-se. Para onde tinha ido? Onde estava ela agora, que já não ali, naquele corpo e naquela vontade ou disponibilidade para ser o que sempre fora?

Era agora outra. Outra pessoa ou outra coisa qualquer. Os amantes agradeciam-se quando os havia, que a companhia faz bem a ossos cansados. Os cigarros andavam a mirrar-lhe o fôlego e a carteira, já não tão abonada, e tudo era racionado com parcimónia. Não mais do que três por dia. Guardava as pastilhas para dias de festa ou tédio supremo, que a idade nem sempre nos retira o raciocínio. Apenas não conseguira livrar-se do prazer do álcool nem da dependência das botas. Podia morrer de fome, de Alzheimer ou de repente, apenas não valeria a pena viver sem umas boas botas para o inverno e outras para o verão.

No final, a Regra dos Três era bem simples: planos, só com a validade de três dias, que o quarto já fica muito longe e de quintas nunca gostou. Por enquanto, e isso era de suprema importância, sabia bem quem era: Maria Francelina e era ainda dona do seu nariz e de tudo acima e abaixo dele. Ah, e ainda tinha umas quantas regras a ditar o caminho e o modo como o desfrutaria.

Moral da história:

Não e ocorre uma brilhante, mas que envelhecer não tem piada, lá isso não tem! Ah, e Francelina é um daqueles nomes que não se esquecem. Perduram as imagens daquilo que foi e já não é e as memórias futuras daquilo que ainda será.

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2 Comments

  1. Jaime A.

    Conto fabulosamente escrito, com muito ritmo, muito imaginativo.

    • Marina Rocha Ribeiro

      Muito Obrigada, Sopro Divino!! Agora, deixou-me sem palavras 🙂

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