O primeiro reparo surge na forma de pergunta: Porquê bochechas? Há assim tanta necessidade de aproveitar todo o centímetro de matéria orgânica do animal? É assim tão imprescindível descarnar-lhe as faces? Só me ocorrem as pungentes criações de Francis Bacon – curiosamente também ele com nome de fumeiro suíno –, com os seus descarnamentos de genialidade talhante. Acontece que essas são para admirar, para embarcar em temas filosóficos sobre a moral, a beleza e a arte e discutir e argumentar sobre a vida e a morte até ser dia novamente, e não para servir como prato principal.
A outra metade da receita não é menos tétrica e macabra. É que não apenas nos remetem para as bochechas rosadas do bacorinho, como lembram a sua infância feliz, em pleno montado, comendo bolotas ingénua, despreocupada e alegremente. Como é que se passa de uma infância despreocupada e feliz como essa, com alimentos naturais e longe de rações rançosas e cheias de antibióticos, para bochechas servidas como prato principal? Porque nos informam sobre tudo isso? É cruel! Só falta acrescentarem o nome do porquinho na receita: Ora, aqui estão as Bochechas do Porco Preto Manelito Que só se Alimentou do Doce Leite Materno e das Mais Puras e Saudáveis Bolotas em Campo Aberto. Foi feliz, mas tivemos de o sacrificar e de lhe retirar as bochechas para deleite gastronómico aqui da casa.
Olhem, fiquei sem vontade de cozinhar! Vou antes revisitar a obra do outro Bacon, ler um livro ou encher as bochechas com um bom vinho.
Ingredientes:
– A obra de Francis Bacon. Não procure por períodos ou temáticas, referimo-nos a toda ela
– Um bom vinho, para esquecer o início e final de toda esta conversa
– Um livro incrivelmente absorvente, ainda que sobre microeconomia na Micronésia, que deite liminarmente por terra a imagem do porco preto Manelito na sua idílica pastagem diária
Tempo de preparação:
Esquecer demora o seu tempo, podendo mesmo nunca vir a acontecer. Não se torture demasiado e dê tempo ao tempo, tudo aquilo que não foi permitido ao Manelito. Pobrezinho!
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