A agência estava calma. Tão calma que José Boga conseguia distinguir aquela espécie de ruído que o pó faz ao cair, suavemente, sobre a superfície de madeira dos móveis, conduzido, quase parecia, pelos raios de sol que se filtravam pelos estores entreabertos. Tanto a secretária, sobre a qual esticava as pernas ao bom velho estilo de Marlowe, como a cadeira rotativa e a estante onde arquivava, em dossiers, toda a papelada, eram de madeira de castanho, sólidos e sofisticados, e com o necessário ar de aspirantes a móveis verdadeiramente de qualidade, por onde passam as mãos e o conhecimento de experientes mãos marceneiras. Funcionava às mil maravilhas. Aos olhos dos clientes que jamais distinguiriam natural de artificial, davam ao escritório o desejado ar de bem-sucedido detetive privado. Na perspetiva de possível clientela rica e instruída nas questões madeireiras, indicava a sua boa vontade denunciando, em simultâneo, as origens humildes e a necessidade de ganhar mais dinheiro. Uma garantia, segundo os mais endinheirados, de que tudo faria para lhes agradar, sem recorrer a maçadores e entediantes conceitos morais ou maçadoras questões de ética.
Estava tudo estudado, que de marketing José Boga sempre tinha entendido um poucochinho. Todavia, em abono da verdade, toda a decoração do seu gabinete resultara de um ótimo pacote num alucinante leilão de desapropriados. Todo um lote por menos do que pagaria numa qualquer loja de luxo, como a Ikea e o Aki. Nem hesitou. Gastou, depois, outro tanto, bem se lembrava, para que uma empresa de mudanças levasse tudo para aquela nobre zona da cidade. Ainda reclamara com os fulanos.
– Se fosse para Xabregas, cobrariam um preço bem mais acessível, mas assim que ouvem falar em Cova da Moura, acham logo que somos todos ricos.
Olhava a biqueira coçada dos seus ténis, enquanto o seu pensamento se desviava para uma premente tarefa, na sua agenda de detetive privado: mudar a bicha do lavatório da casa de banho do escritório. Mesmo com a porta fechada, conseguia ouvir o incomodativo e demoníaco pingo-pingo. Orgulhava-se dessa sua recente investigação, a de descobrir o que andava a enferrujar a bicha e a torneira adjacente. Nem queria acreditar nas fotos e nas filmagens resultantes de horas de vigília. A responsável por toda aquela destruição, equivalente a €10 na drogaria do Manel Zarolho, em equipamento de substituição, era a própria água. Verdade, verdadinha. Parece que a água oxida metais como o ferro. Quem diria? Então oxidar não vem de oxigénio? É certo que a água também se dá com algumas moléculas de oxigénio, mas se não tivesse comprovado a coisa por si mesmo, teriam de abrir a cabeça a José Boga antes que aceitasse a verdade de tal afirmação. Enfim, mais experiência e mais um caso resolvido no seu vastíssimo curriculum de detetive privado. Era isso mesmo que podia ler-se, em grandes letras néon, na fachada do edifício, no qual ocupava quase todo o rés do chão direito. Um apartamento discretíssimo, para garantir total privacidade e assegurar anonimato à seleta clientela de José Boga. Sim, porque de discrição percebia ele um poucochinho, como muito se orgulhava.
Mais uma gota captada pela sua audição lupina. Não tinha como abstrair-se daquela tortura auditiva. Apetecia-lhe tanto ir substituir aquela maldita bicha como subir a bainha a umas calças de bombazine beringela que passava a vida a pisar. Sabia, porém, que mais ano menos ano teria de se decidir a fazer qualquer uma destas operações. Um desperdício para um crânio como o seu, mas tarefas indispensáveis na vida de um voluntarioso solitário. “Laços do ofício”, como não se cansava de repetir com os poucos botões restantes no seu parco, mas estilizado, guarda-roupa de aromas vintage. E por isto, entenda-se odor de naftalina, única a quem confiava as suas lãs, já que José Boga estava longe de estéticas vanguardistas e fashionistas e ainda mais distante de tendências hipster. Na sua mente observadora e estratega, tendência era apenas a inclinação de um plano, e os seus tendiam sempre para curvas desastrosas, ainda que jamais o conseguisse ver. Tão orgulhosamente solitário quanto ele próprio era o neurónio que ocupava aquele espaço esconso no seu cérebro. Era, todavia, um soberbo e obeso neurónio, quase burguês, embrenhado a cada segundo numa azáfama multitasking, que transformava em músculo intelectual todo o inicial tecido adiposo. Ora dava o alarme respetivo às necessidades fisiológicas, para logo correr a informar que havia um banho a tomar, um telefone a tocar, alguns sorrisos para distribuir aos rostos mais familiares… Era tamanha a carga horária que tudo estava restringido aos mínimos olímpicos: três idas diárias à casa de banho, quatro rostos conhecidos, um banho quinzenal… Racionalizar custos e recursos cerebrais. Foi a solução encontrada para manter tudo em dia. Não era um luxo de cérebro, e apenas não era arrumado por umas décimas, mas era deveras funcional. E de funcionalidade, Zé Boga percebia, já se sabe, um poucochinho. Tão poucochinho que aceitava como razoável que a definição de multitasking fosse fazer muitas coisas num único dia e não muitas coisas em simultâneo. Aliás, desconhecia esta última palavra e estava disposto a perder a vida apostando que não estava, sequer, grafada em dicionário.
Estava prestes a dar em doido com o gotejar da torneira sobre o encantador chão de linóleo do piso. De tal forma que quase se levantou. Felizmente, não chegou a fazê-lo e logo deu graças à sua brutal intuição, pois que o ruído que agora inquietava o seu sobrelotado cérebro era, no fim de contas, o toque do telefone fixo. O único, de resto, que se permitia ter, a fim de que nenhum dos seus passos pudesse ser vigiado pelas pessoas que habitam Internet, um país novo de que agora todos falavam. Quase esteve de voo marcado para Internet, mas logo percebeu que quem caía nas suas redes jamais de lá saía e a ele, José da Boga de seu nome completo, não o apanhavam assim de qualquer forma. Nessas férias, recorda-se bem, foi pela primeira vez à Baixa da Banheira, com visita opcional ao Vale da Amoreira. A margem sul, descobriu então, eram as suas Bahamas. Que povo encantador, que tradições tão castiças, que cozinha deliciosa. Quando se reformasse, e tendo em conta o pé de meia que já tinha acumulado, não duvidava, acabaria lá os seus dias, vivendo como um gay (Nota do autor: José Boga tinha dificuldade em proferir e distinguir os erres), fazendo jus ao que por aí se dizia. Não sabia bem porque se referia a expressão à vida dos gays, mas se isso era bom, pois não seria bom de mais para si, amante das coisas boas da vida.
No meio de tanto pensamento agradável, daqueles que colam sorrisos tolos na boca de toda a gente viva, Zé Boga quase perdia o último toque do telefone. Ainda bem que atendeu a tempo. Do outro lado da linha, a voz sedutora de uma mulher. Ligava-lhe de Cascais e foi assim que percebeu finalmente o que era a linha de Cascais. A vida não parava de lhe dar lições. Queria muito encontrar-se pessoalmente com ele. Um caso sério, informou. Escusava de lho dizer. Os seus eram todos casos de vida ou morte pois, por norma, quem lhe ligava estava quase sempre vivo e quem procuravam quase sempre estava morto ou para lá caminhava.
– É a história da minha vida, minha querida –, replicou Zé Boga, com um certo agastamento pendurado na sua voz grave e séria, próxima da de um declamador afetado.
Comunicou longamente com o seu neurónio e lá encontrou espaço livre na sua agenda para daí a muitas horas, já que tinha de passar pelo talho do Tó Bifanas, após o que tinha de cumprir o vital compromisso de um duelo de bisca lambida com um detetive rival, que costumava roubar-lhe o crédito da maioria dos seus casos. Tinha de estar fresco para a jogatana.
– Venha à meia-noite.
Do outro lado, a mulher pareceu surpreendida com a tardia hora para um encontro profissional, mas percebeu a agenda carregada do investigador. Era urgente, pelo que aceitou.
– Encontramo-nos logo, então –, confirmou a mulher.
– Logo? Não, refiro-me à meia noite de amanhã. Preciso sempre de 24 horas para recuperar de um torneio de bisca. Para mais lambida. Sabe bem o que custa lamber aquela bisca toda? Só amanhã.
Esclarecido o mal-entendido, lá agendaram o encontro para o dia e hora certos, que Zé Boga era homem de rigores metalúrgicos. Mas a mulher bem que podia ter ido nessa mesma noite. O detetive, que tinha perdido a noção das horas, ia já para cinco anos, no decorrer de uma perseguição desvairada a um grande bandido, alongou a hora da sesta para lá do desejado e quando chegou ao talho já o Tó Bifanas tinha a porta fechada. Tamanha contrariedade retirou-lhe a calma espiritual necessária para o duelo de cartas e desmarcou a contenda. Imaginava já o júbilo do rival, que devia andar com os nervos em popa, já que era sabido que ninguém lambia a bisca como Zé Boga e que as franjas estavam em vias de extinção.
Regressou ao escritório, o qual, após as 20h passava a residência oficial. Tal como na cave do Batman, ali, graças ao engenho e a mobiliário volte-face, tudo se transformava. A secretária em pechiché, a cadeira em mesa de cabeceira, a estante rebatia-se e deixava a descoberto uma cama ‘ring-size’ – porque era redonda, claro! –, e o armário/biblioteca abrigava, na parte de trás, um magnífico roupeiro, com as suas sedas sintéticas e as caxemiras poliesterizadas. Era o expoente da masculinidade numa vida sintetizada que girava em torno do culto da espionagem ao mais alto desnível. Sim, porque Zé Boga não se nivelava, isso implicaria admitir o mesmo resvés de todos os outros, ele exigia um plano inclinado, no pico do qual reinava, com a sua inigualável sabedoria e os seus inéditos conhecimentos. Afinal, “dos parcos não reza a história”, como gostava de citar.
Pontual, como um ponto, a mulher tocou à campainha na exata hora marcada. Ainda não tinha aberto a porta e Zé Boga, palavra de honra, já estava apaixonado. Pelas frestas da porta da rua antecederam a entrada da cliente noturna, moléculas soltas de feromonas e átomos de um perfume genérico que deixaram o exímio e treinadíssimo olfato do detetive da Cova da Moura, completamente enlouquecido. A informação que o seu intrépido neurónio deveria ter registado era: cliente pobre com intenção de seduzir para baixar o preço da consulta, mas um pequeno erro na inserção do chip na ranhura errada resultou numa forte atração física que já se dizia paixão antes mesmo do detetive abrir a porta. Menos mal, a mulher era deveras atraente (ou talvez não, quem acredita já no que o seu cérebro avalia?).
– Entre, loura, entre. Não se importa que lhe chame loura. Certo? No mundo da espionagem, quanto menos nomes, melhor. O segredo é a ama do negócio.
Estarrecida, a mulher parecia deveras surpreendida. Seguramente por causa da beleza de Zé Boga, disso, o próprio não duvidava.
– Desculpe, mas não esperava encontrá-lo de pijama! Vim à hora combinada, certo?
– Pijama? Este é o meu melhor fato de seda de três peças, loura. Lá por ser às bolinhas, pensa logo em pijama? Mas se é de pijama que me quer, façamos de conta que estou em trajes íntimos. Por mim!
Zé Boga disfarçava, mas estava magoado. Magoado e excitado com aquela loura esfusiante no seu escritório/quarto, propositadamente deixado na penumbra para que a cliente não percebesse que a cama já estava pronta para que, logo que ela saísse, pudesse meter-se em vale de lençóis. Se bem que, uma mulher no seu quarto era coisa inédita e quase desejava que ela não quisesse mais ir-se embora. Mas isso também era preocupante. O que faria com uma mulher o tempo todo naquelas quatro paredes? Como ocupá-la? O melhor seria colocá-la na rua todos os dias por volta das 8h e dizer-lhe que só poderia regressar bem no final do dia. Isso seria uma boa possibilidade. Via-se, perfeitamente, a viver assim. O que acharia a loura de tudo isto? Só faltava que depois quisesse mudar de casa, e que não gostasse dos seus móveis… De roupa, estava visto, não entendia os mínimos exigidos. Ia perguntar-lhe tudo isto e mais um par de botas quando a loura toma a dianteira.
– Indo direta ao assunto, preciso da sua garantia de que o assunto que aqui me traz será tratado com o máximo sigilo.
– Conheço perfeitamente o Máximo Sigilo. Andámos juntos nas aulas de Kizomba. Todos lhe chamamos Max, mas somos amigos do peito. Quanto a isso esteja tranquila.
De olhos estupidamente abertos, a loura parecia perdida, mas logo se recompôs.
– Tem um humor curioso, quase desnorteante, confesso, mas percebe que nem sequer pode referir a minha presença aqui.
– Por amor de Deus. Sou um poço sem mundo, loura! E um homem sem mundo não tem a quem contar seja o que for, não lhe parece?
Loura inquietava-se, mas não podia voltar atrás. Não podia recorrer a alguém com mais créditos no mercado, sob pena de não conseguir a discrição que procurava, além de que a tontice do homem, podia jogar a seu favor, na medida em que a sua palavra, caso tivesse de o desmentir, teria mais peso do que a do detetive.
– Muito bem. Preciso que descubra quem me anda a seguir.
– Não é a sua sombra? As sombras fazem sempre isso e as pessoas tendem a ignorar o óbvio.
Loura, estarreceu. Seria o homem completamente estúpido? Como mantinha um negócio se não tinha cérebro?
Zé Boga avança a todo o gás fazendo bravata dos seus conhecimentos detetivescos:
– Também sente que é seguida ao meio dia?
– Ao meio dia? A qualquer hora do dia Sr. José Boga. Há já quinze dias que sinto uma presença constante no meu encalço.
– Bom, a hipótese da sombra está fora de questão, pois ao meio dia, quando o sol está a pique não teria sombra… Essa presença constante será Deus? É crente?
– Deus?
– A loura repete sempre tudo aquilo que lhe dizem?
– Como?
– Não questione os meus métodos, minha querida. Precisamos de eliminar o óbvio. Quando vai ao médico, com uma queixa qualquer, não tem de responder a uma série de questões que, por vezes, lhe parecem idiotas e que não levam a lado algum? Porque, primeiro, há que eliminar o óbvio, minha querida.
Loura tentava a custo continuar a acreditar que o detetive soubesse, de facto, aquilo que estava a fazer.
– Não será Deus, seguramente, pois sou ateia.
– Acredita, portanto, em ateus. Certo. Portanto, pode bem ser um deles a segui-la.
– Estou mais inclinada a acreditar que é o meu ex-marido, inconformado por não ter tido direito a metade da minha fortuna, a qual herdei do meu pai.
– Então, a loura é divorciada?!
– Sr. José Boga, pode, por favor, deixar de repetir o óbvio? Se tenho um ex-marido, é certo que sou divorciada. Avancemos, sim?! Preciso que se concentre. Pode aceitar o meu caso? Começo a temer pela minha vida. Porque estou a ser seguida? Qual o propósito? Quem me vigia? O que pretendem? Apenas assustar-me? Procuram uma oportunidade para me raptar? Pode ajudar-me?
José Boga estava com dificuldade em acompanhar tantas questões? De espionagem, percebia ele um grande poucochinho, mas cachos de mistérios gramaticais levavam o seu tempo a ser decifrados. A loura era incansável. Tinha feito, o quê? Seis, sete, oito perguntas? E queria respostas prontas? Todas ali e agora? Seriam de escolha múltipla? Haveria respostas erradas?
– Loura, não. Como imagina, não posso comprometer-me sem profunda averiguação dos fatos.
– Não quererá dizer factos?
Loura já tinha desistido de, por simples delicadeza, fazer de conta que não dava pelas gafes do detetive.
– Não. Se disse fatos, é porque me refiro aos fatos. Que fatos veste a pessoa que julga que a segue?
– Foi há quinze dias que, pela primeira vez, achei que estaria a ser seguida. Estava nas Amoreiras, na fila da bilheteira – tinha decidido ir ao cinema – quando senti um intenso cheiro a naftalina colar-se a mim. Uma mulher, parecia uma doce avozinha, estava tão próxima que, quando me virei, acabei por socar-lhe o rosto com o cotovelo. Na altura, não dei a menor importância ao caso, mas o certo é que a senhora desatou a correr sem ligar aos meus chamamentos. Queria saber se estava bem, se precisava de ajuda… Acontece que, todos os dias, depois desse, continuei a sentir o cheiro a naftalina no meu encalço, mas não voltei a ver a mesma mulher. O cheiro vinha de pessoas diferentes…
– Que filme ia ver?
– Como?
– Estava na fila da bilheteira… Que filme ia ver?
– Acha mesmo que é importante…
– Loura, deixe que seja Zé Boga De-te-ti-ve Pri-va-do a decidir isso, pode ser? Quem é o especialista aqui?
– Ia ver ‘Cinquenta Sombras de…’
– De Gay, já sei. Bela porcaria de filme. Avisam logo que é um filme gay, na verdade com mais de cinquenta gays, e depois, nem um para a amostra. Uma grande deceção. Melhor, para mim, que sou muito macho, percebe, verdade? Sou todo macho e quase todo latino. Tudo de primeira…
– Você não existe.
– Agora é que disse tudo, loura. A trabalhar, não existo mesmo. Ninguém dá por mim. Nem podia, sabe. Quem trata das perseguições é a minha mãe.
– A sua mãe?
– A loura não desiste de me repetir! Deve ser irresistível, compreendo, mas devia conter-se mais. É um pouco desgastante, sabe? Sim, a minha mãe. Eu sou o crânio de todas as operações, como é bom de perceber, mas toda a gestão e perseguições são por conta dela. Foi ela quem, logo após o 25 de Abril, montou o negócio da espionagem em Portugal. Com a PIDE fora do caminho, havia um enorme vazio empresarial nesta área. Espertíssima, a minha mãe. Montou o escritório, ganhou nome, cativou uma excelente clientela, de que a loura será um ótimo exemplo, e aqui estamos, mais de quarenta anos depois e a prosperar como nunca. Já temos cerca de três clientes por mês, só para ter uma ideia. E gente da alta. Há duas semanas, só para perceber o nosso elevadíssimo nível, fomos abordados por um indivíduo da classe alta, com mais de sete apelidos, todos eles impronunciáveis e com consoantes duplas e tudo isso. Queria que seguíssemos a irmã, recém-divorciada. Pregar-lhe um valente susto, fazer parecer que seria seguida pelo ex. Fragilizada e sozinha, poderia depois extorquir-lhe o dinheiro da herança do pai, o qual ela açambarcara sem contemplar o coitado do irmão. Um homem seríssimo e muito justo. Queria apenas o seu quinhão, metade do pacote total. Mestre do disfarce, é a minha mãe quem anda atrás da boneca.
– O seu cliente chama-se, por acaso, Raimundo Maria de Todos os Santos Abençoado Bettencourt Celestino Trindade de Mello da Maya Nóbrega?
– Estou impressionado e não sei ainda como fez para descobrir tudo isso, mas, como imagina, não posso revelar-lhe o nome do meu cliente Raimundo. Que raio de detetive seria eu?! Não me deixo apanhar dessa maneira infantil, não lhe parece, loura?
– Então é a sua mãe quem segue as pessoas?
– Sim, sim. Ela é a agente no terreno. Eu, por assim, dizer, sou o cérebro da operação. Começou por ser ao contrário, mas ela cedo percebeu que sou demasiado frontal para usar disfarces. Além de que utilizo métodos muito mais modernos. Por exemplo, negoceio sempre com o perseguido, a fim de nunca o perder de vista, compreende? Para quê arriscar-me a que a pessoa saia por uma porta traseira ou coisa do género, se posso negociar diretamente com ele um raio de ação e algumas estratégias? A minha mãe é demasiado old school para entender este novo milénio e, por exemplo, a reabilitação que faço a nível profissional dos meus disfarces de carnaval. Se me vestir de Batman, ninguém vai achar que está a ser seguido por um detetive privado, compreende, loura? Quando muito, por um extravagante da ‘vã guarda’, vá! Mas aceito que ela é muito eficiente no terreno, enquanto eu sou um génio no backstake – é uma receita de bife que está na família há já sete meses. Um outro segredo que guardarei com a própria vida. Preferencialmente não a minha. Mas este será o último trabalho da minha mãe. Depois de resolvido, tudo ficará a meu cargo, sabe? Diz-me ela que a espionagem perdeu o encanto inicial. Já não sente a mesma garra nem a paixão de quando começou. Confessou-mo recentemente. Está com receio de me passar a pasta, na totalidade. Sabe como são os pais, nunca nos acham preparados quando, na verdade, sou muito mais sagaz do que ela alguma vez foi.
– Acha?
– Não. Tenho a certeza.
– Não deixa de ter um pouco de razão, sabe? É que, antes mesmo de começar, já deslindou todo o meu caso. É a sua mãe quem me anda a seguir e a mando do meu meio-irmão, afinal. Na verdade, ele não tem direito a herança alguma, pois a fortuna que herdei era do meu pai e eu sou a única filha. O meu meio-irmão é apenas filho da minha mãe.
– Quer dizer que ele não tem pai? Apenas mãe? É uma criação genética? Só uma mãe. Nem dá para acreditar. A ciência é espantosa, não acha?
– Como? Claro que tem… Não interessa. O que importa é que você já me deu todas as informações que procurava. Foi, deveras, fantástico.
– A sério? Não lhe disse que eu era bom? Quer dizer que já me pode pagar?
– Hã. Ah, sim. Penso que sim, porque não? Mas antes preciso que relate tudo o que me contou ao meu advogado, pode ser?
– Advogado?
– Agora é você quem repete o que lhe digo?
– Não gosto de advogados, sabe?
– Não precisa de gostar. Basta que fale com ele.
O argumento da loura era forte, pensou Zé Boga, e de argumentos percebia ele um poucochinho. Estava bem visto. Falaria com o advogado, sem ter de gostar dele, evidentemente, receberia o dinheiro e tinha mais um caso arquivado. Perfeito. E pelo que a loura afiançava, o caso daquele outro cliente também ficaria resolvido. Estava quase a tentar perceber essa parte quando a loura interrompeu o trabalho do seu solitário neurónio, que teve de parar o raciocínio para se concentrar na pergunta que lhe chegava.
– Não receia perder o negócio, agora que a sua mãe pensa reformar-se?
– Não. E a minha mãe não se vai reformar. Ela sempre foi a face oculta de todo este negócio, é certo. Mas agora estou cá eu. Com uma nova mentalidade, novos métodos e um promissor futuro à minha frente. A minha mãe tem, é bem verdade, um raro faro para a espionagem. Sentirei a falta da sua experiência. Mas ela decidiu seguir o seu sonho de sempre e faz, agora, aquilo de que verdadeiramente gosta: é cabeleireira.
– Como? Cabeleireira?
– Não vamos começar com as repetições, pois não, loura?
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