Aqui há atrasado, Júlia ainda se recordava, tinha tido uma vida. Não era bem uma coisa em pleno, mas uma simpática aproximação daquilo que, por norma, se considera a existência humana. Havia uma família, pais, amigos, uma casa, a escola, roupa lavada, escova de dentes, telenovelas que se seguiam avidamente… Uma vidinha, vá. Na altura, era apenas sofrível para o seu espírito inquieto, menos do que isso para o seu coração palpitante, desejoso de aventura, ansioso de perigo, e um verdadeiro zero para a sua mente ávida de prazeres sintéticos. Tudo começou na primária, com uma fixação nas aulas de trabalhos manuais. Não que tivesse o menor jeito ou aptidão para manualidades, mas vibrava com o cheiro da cola. Não dos sticks de cola para papel, mas das bisnagas amarelas e letras pretas, que ainda nem sabia soletrar, e cujo odor tóxico a deixava louca. Por essa altura, os pais acharam que deviam levá-la ao médico. Um psicólogo, porque “a menina tem um amigo imaginário”. Ahahaha. Um? Tinha milhares! Por segundo. Ninguém entendia que vivia sob a influência dos seus tubinhos mágicos. Eram a sua verdadeira… coca-cola. If you know what I mean. O apelido ‘Agarradinha’ surgiu então. Uma ternura da avó, que se enternecia com a avareza da sua ‘netinha predileta’, já então uma deusa na arte do surripianço. Todas as moedas eram poucas para a maldita da cola, mas que a avó achava ser para o porquinho mealheiro, o qual a cândida menina ia enchendo de gravilha. Tinha o peso necessário e fazia um som equivalente ao do metal, o que alimentava os delírios financeiros da avó. Depois disso? Bem, foi um tirinho até aos sintéticos mais elaborados. Nada contra a Natureza, mas Júlia tinha um fraco pelo artificial. ‘Cenas’ hiper-processadas, cristalizadas, sintetizadas, hiperbolizadas. Essas, sim, eram as suas heroínas. O tempo da cola durou o tempo que tinha de durar e o que colou mesmo foi o nome ‘Agarradinha’ e a crença familiar de que tinham um anjo em casa. Até pela forma religiosa, quase beata, com que tomava a medicação que o médico, nesta fase, já um psiquiatra, lhe receitava devido a questões de dupla personalidade. Claro: personalidade 1, Júlia sem droga; personalidade 2, Júlia sedada.
O destino não podia ter tecido melhor enredo para o seu lado. Os pais, cujo amor e credulidade eram os maiores aliados de todos os seus vícios e mais um par de botas – Júlia era louca por botas, de verdade –, apenas se tinham empertigado ao conhecerem o primeiro e único namorado que lhes apresentou. João Ladrão. O Deus da cola, o rei do sintético, o autor de todas as suas ilusões. Insurgiram-se. Que era tatuado. Que era porco. Que era o diabo a sete, vezes nove. Júlia não era boa a matemática. Saiu porta fora para nunca mais voltar. Perguntou a João Ladrão se queria casar com a ‘Agarradinha’, ele grunhiu qualquer coisa que soou a um enorme e emotivo Siiiiiiiiiimmmmmmm. Provavelmente, foi mesmo um sim, pois só mesmo ‘Agarradinha’ entendia as complexas cadeias de raciocínio de João Ladrão. Casariam. O pior é que, agora, sem a almofada financeira parental, ‘Agarradinha’ sentia-se perdida. À sua maneira desprendida, João Ladrão só tinha olho (no singular, pois perdera a visão do olho esquerdo num dia de má trip) para ‘Agarradinha’. Ainda se recordava dela à janela da casa dos pais, garantindo a cada transeunte do sexo masculino que com ele casaria em troca de apenas 20 euros. Não era assim tão caro. Uma pechincha, na verdade, tendo em conta a beleza e bondade de Agarradinha. Claro que se voluntariou de imediato, não obstante ter de lhe pedir que aceitasse apenas cinco euros, que ele já lhe traria o restante. Por isso, apercebendo-se do estado de alienação e tristeza constantes da amada, desde que tinha abandonado o lar paterno, João Ladrão elabora um inédito e surpreendente assalto. Tinha tudo planeado ao detalhe. Conhecem aqueles artistas de rua que pintam o corpo e a roupa, de forma a camuflarem-se com a paisagem urbana, ou outra? Pois bem. João Ladrão tinha visto um desses artistas no youtube, disfarçado de fruta num supermercado e logo planeou a fuga para uma reforma em grande, e aos 25 anos apenas. Enfiar-se-ia numa mala de viagem, magnifica e maravilhosamente pintado de maneira a confundir-se com milhares de pacotes de heroína colombiana – havia que ter em atenção a origem da droga, por causa da cor. Não queria deitar tudo a perder por causa de um tom abaixo ou acima na pureza do produto. ‘Agarradinha’ faria a entrega e, logo que ela recebesse o dinheiro da compra, ele tinha apenas uma tarefa a cumprir: tomar um bom banho e pôr-se a milhas, ou seja, apanharia o autocarro ali no Arco do Cego. Sabia a quem interessa sempre droga em quantidade, conhecia os meandros do nobre métier… Nada podia falhar pelo que, nada falharia. ‘Agarradinha’ tinha-o olhado com adoração, quando João Ladrão lhe contou o estratagema. Como ele era inteligente e criativo. Como ele a amava. Não via a hora de ser a Senhora de João Ladrão. Sua esposa, como ele tanto gostava de lhe dizer ao ouvido.
Com a aproximação do ‘fecho do negócio’ os nervos apoderaram-se deles, mas nada que João Ladrão não controlasse nas calmas. Vamos ser ricos e nunca mais precisaremos de ninguém. Esta ideia era o seu alimento por esses dias, nos quais a droga se resumia aos mínimos olímpicos e ambos se entretinham com a medicação de ‘Agarradinha’ a dividir por dois. Como era má a matemática, resultava que ora ressacava um, ora ressacava o outro. Mas ‘tá-se bem, mimavam-se amiúde. No dia X, à hora tal – que nisto de planos, João Ladrão sabia bem como o segredo era a alma do ‘sócio’, pelo que mais não diremos – lá estava ele, todo dobrado e pintado como embalagens de droga em dia de entrega, em pleno Arco do Cego. ‘Agarradinha’, exemplar no seu papel de ‘correio’ ainda hoje não entende como é que os descobriram. Ela própria, que não via à sua frente outra coisa que não apenas o seu J. L., quase não o reconhecia, assim como estava, cheio de papel pardo e atilhinhos e foto adesiva… Ah, se calhar era fita e não foto. Também nunca foi muito boa a Português, a bem da verdade. Abreviando, que o serão já vai longo: ela lá conseguiu fugir aos tropeços, sabe Deus como. Para usar de rigor, Deus mandou dizer mais tarde nada saber e não estar a par de coisa alguma. João Ladrão, incrédulo e absolutamente convicto da infalibilidade do seu disfarce, nem na esquadra saiu do seu papel, o de papel de embrulho, precisamente. Só quando o mangueiraram, para grande humilhação sua, percebeu que tinha sido descoberto e tudo o mais posto a nu. Mas como é que eles tinham percebido? A nova polícia está muito bem preparada. Essa é que era essa. A nova sede da Judiciária já estava a dar frutos. Resignou-se. Apanharam-no a ele e ao Zé Manguito, o comprador, que, para a polícia, era, já há anos, apenas um nome fantasma que farejavam em pistas que culminavam sempre em becos sem saída. Felizmente, ‘Agarradinha’ estava a salvo e com a mala do guito. O que eram ótimas notícias. Quanto a si, João Ladrão optou por uma pose seráfica, fosse lá isso o que fosse, e privilegiou o silêncio. Porém, a dada altura, João Ladrão começa a perceber uma espécie de padrão na linguagem do adversário. O polícia que o interrogava não parava de usar uma espécie de código que ele tentava a custo decifrar.
– O que tu queres, sei eu! O que tu queres, sei eu! Isso é que era bom! Isso é que era bom!
Nisto, fez-se luz no enevoamento do precário sistema neurotransmissor de João Ladrão. O polícia citava canções da Dina. Ó pá! Tinha vindo ao sítio certo. João Ladrão sabia na ponta da língua todo o repertório da cançonetista. O interrogatório já estava no papo.
– Sr. Agente – disse em tom confidencial, semicerrando os olhos –, “Peguei, trinquei e meti-te na cesta. Ris-te e dás-me a volta à cabeça.” Hã? Que me diz a isto? E digo-lhe mais, “meu amor de água fresca”, hoje estou “Dinamite” – acrescentou com um piscar de olhos. Excitado com a descoberta da sua inteligência, em tom sussurrado, ainda rematou: “Teu corpo a dançar à luz do luar põe-me louca assim, lálálá, Pérola, rosa, verde, limão, marfim.”
– Então, estamos entendidos? – Perguntou ao agente com um segundo piscar de olho.
Em menos de meia hora estava frente a uma junta médica. Avaliavam, seguramente, as suas capacidades intelectuais, sobre isso não lhe ocorria a menor incerteza. Por esta não esperavam eles. Um tipo aparentemente simples que além de um original plano ainda desmontava em três tempos, ou menos ainda, enigmas e códigos encriptados que as academias ensinavam em segredo aos seus pupilos. Deram-lhe tudo aquilo de que precisava. Tinha-os na mão. Ele foi remédios, metadona, consultas… E, ‘bandeja’ no topo do bolo, para o esborrachar de vez: estava livre. Correu para os braços da sua ‘Agarradinha’ e viveram felizes em dias alternados até… um dia. A ele voltaremos mais tarde.
Moral da história: É sempre melhor ser-se inteligente e culto do que não e há que ter sempre uma ou outra estrofe da Dina pronta. Nunca sabemos quando vamos precisar de uma.
Gostei bastante! Para ajudar à festa, aqui vai (apenas para quem sabe decifrar códigos e assim…) ‘Eras terra cinza, lava ardente o fogo em mim …’
Alguém sabe quem escreveu?