Pois bem, comme d’habitude, era uma vez – mas também aqui, esteja à vontade para duvidar, pois vamos lá saber ao certo quantas foram as vezes. Porém, para comodidade de género, para maior identificação, e a fim de manter algo do original, aqui fica o clássico era uma vez uma menina. Ora, como as meninas se desenvolvem cada vez mais depressa e se atiram cada vez com mais empenho na estética adulta, a menina é agora uma gaja gira, com cabeça pensante, identidade própria e desejos de felicidade e independência bem definidos. Certo dia, no Metro, a caminho de mais uma aula de pilates, que antecedia um workshop de cozinha vegana (favor googlar o conceito que agora não temos tempo para grandes parêntesis), a miúda gira encontra um tipo fascinante, com uma cabeça equina deslumbrante. Saca do seu moleskine, mete conversa e pergunta-lhe se o pode desenhar. Estuda Belas Artes e não imagina melhor objeto de estudo do que aquela cabeça de cavalo em corpo de homem, numa versão invertida e delirante de centauro.
Entre o malandro e o lisonjeado, ele lá vai dizendo:
– Sim, claro. Porque não? Mas tem de ser hoje? Não podemos marcar um encontro para amanhã? Em minha casa?
Desconfiada, mas inquietantemente determinada em fixar no papel aquele rosto, ela contrapõe, mas sempre aberta à negociação.
– Amanhã? Não me dava jeito… E não pode ser num jardim? Numa esplanada? Olha, na cafetaria do CAM? Conheces?
– CAM? Moro em Chelas. Temos lá uns graffitis bestiais, talvez te inspires… Pode ser lá?
Que tipo tão sem história, começa ela a magicar. Ou, então, que tipo tão fascinante. Estava indecisa. E ele tinha acabado de dizer bestial. Que palavra poderosa e tão a propósito. Também, em que outro lugar poderia ela encontrar tão fascinante personagem? Só mesmo em ambiente de bairro social, onde as gentes se miscigenizam livremente e desse amor solto nascem criaturas exóticas, daquela beleza única que apenas abençoa os mais desfavorecidos, os mais livres. Romântica, avança ainda numa outra teoria. Podia bem ser um rico excêntrico, um artista solitário, que de tanto ver o mundo de forma diferente se tornara, ele próprio, distinto de tudo o resto. Um inadaptado em busca do seu lugar. Não se deu a mais trabalho.
– Ok – acedeu –Em Chelas. A que horas?
– Ah, pois, tem de ser noite cerrada. Trabalho, e tal, e mais isto e aquilo. Noite cerrada. Pode ser?
– Noite cerrada lá estarei – respondeu lacónica já um pouco impaciente. Mas aquela cabeça de cavalo era indescritivelmente excecional. Iria de uber e pediria que esperassem por ela. Isso. Estava já tudo decidido na sua mente.
No dia seguinte, já noite cerrada, ela lá está. Bloco de papel cavalinho, lápis, carvão… Tudo a postos. Ele também lá estava. À porta do prédio, como combinado, no meio de toda uma turma que a deixou boquiaberta. Havia um cabeça de corvo, um orelhas de elefante e, aquele que, de longe, mais a entusiasmou, um cabeça de boga. Seria muito rude pedir ao cabeça de boga que tomasse o lugar do cabeça de cavalo e explicasse a este último a urgência artística de desenhar o outro? Seria esfaqueada, só porque é isso que os jornais sensacionalistas dizem acontecer em Chelas por muito menos do que uma preferência artística? Seriam eles sensíveis à estética e à essência do belo? E se os juntasse num único quadro? Não, seria um desperdício.
– Posso retratá-los a todos. À vez ou em separado. Interessados?
Claro que sim. Até porque alguns deles não entenderam bem a expressão retratá-los e acharam que ela seria daquelas que tira selfies durante o ato sexual. Pelo que… Claro que sim.
Lá subiram, lá se explicou o pretendido, para desilusão de alguns, e lá se desenhou, e desenhou e desenhou… De tão excitada com o trabalho, que já imaginava exposto em galeria, no final também houve sexo e selfies e tudo o mais, para contentamento de todos.
A experiência era de tal forma brutal e extraordinária na sua vida que ela sentiu necessidade de partilhar uma confidência:
– Foi a minha primeira vez.
– Com um cabeça de cavalo?
– Com homens, ponto, e, claro, de entre estes, com um cabeça de cavalo e de boga e tudo o mais. Foi a primeira vez de tudo isto. E foi a primeira vez em Chelas. Óbvio!
– O quê, gostas de mulheres?
– Gosto de muita, muita coisa, de mulheres inclusive, sim. Isso espanta-te? Que pouco imaginativo!
– Não, não. É só que… Tudo bem, sem dramas.
– Ótimo! Porque gostava de guardar esta experiência na memória, num lugar bem especial e se fosse agora começar a ser julgada por ti, um estranho… Teria de te apagar.
– Claro, compreendo. Mas tudo bem. Gostei muito de te conhecer e gosto do que puseste no papel. És incrível!
– Muito bem.
– Já que fui tão especial para ti, podias fazer algo por mim. Por nós, na verdade. Temos todos este aspeto físico porque fomos alvo de um feitiço que nos deu traços dos animais que mais odiamos. Para reverter o feitiço precisávamos de fazer amor com uma mulher que verdadeiramente o desejasse e que essa mulher percorresse o mundo até gastar a sola destas botas de ferro que aqui temos.
– Ah, estou a ver.
– Como já cumprimos, graças a ti, metade dos requisitos, não poderias agora calcorrear o mundo, por montes e vales, avenidas e trilhos, até dares cabo destas botas?
– Amigos, se for de avião, jamais gastarei essas solas horrendas. Lamento.
– Podias prescindir do ginásio e aceitar este desafio como exercício físico, talvez…
O argumento era forte, avaliou. Sempre era menos uma mensalidade. Caminhar era ótimo e com pesos nos pés, ainda melhor. Lembrou-se logo do Ronaldo… Até podia fazer isso, sim. Sentia também que era altura de dar novo rumo à sua vida e mudar de ares, de país, de planeta, se possível, não era mau de todo. Respondeu:
– Cabeça de cavalo, adorei conhecer-te e teres deixado que te retratasse foi deveras significativo para mim, bem como o resto da noite e toda a experiência sexual com os teus amigos e tudo o mais. Vou pensar na tua proposta, é tudo o que te posso dizer.
Quando chegou a casa abriu imediatamente o roupeiro. Pragmática como era, tentava avaliar aquilo de que necessitaria levar na mochila para que andasse sempre gira, como gostava, mas sem carregar peso extra desnecessariamente, já que as botas pesavam horrores. Nisto, os seus olhos caem sobre os sexy Louboutin que acabara de comprar e soube nesse segundo que jamais se tornaria praticante da caminhada com sapatos de ferro, por mais exótico e excitante que pudesse ser ou por mais adeptos que essa nova modalidade pudesse vir a ter. Além disso, o feitiço não impedia aquela boa gente de ser feliz, além de que rosto algum se compararia ao fascínio daqueles traços animalescos, ainda para mais, tão expressivos no ato sexual. Paciência. E assim acaba a história da miúda com sapatos Louboutin.
Moral da história: Não subestimes nunca a importância de um bom par de sapatos na vida de uma mulher e jamais confundas marcas de calçado. Acreditavas mesmo que uma mulher se submeteria ao sacrifício de gastar solas de ferro por um qualquer malandro dado a feitiços e manhas? Chegaram mesmo a achar viável que uma mulher gastasse solas de sapatos por um cavalo qualquer? Não te humilhes dessa maneira!
Deixe um comentário