Adorava o turno da noite. Não sabe até porque ainda lhe chamava turno da noite, já que não trabalhava a outra hora, pelo que era apenas o seu normal horário de trabalho. Tudo era diferente à noite. O gigantesco aeroporto tornava-se casa e a casa de verdade deixava de a atormentar. A violência verbal dos pais era abafada pelo atrativo som dos motores dos últimos aviões, ou seriam os primeiros? Os olhares abusivos do tio materno não passavam ali pelo detetor de merdas e o seu corpo era apenas seu. Ao regressar à falta de amor e de respeito, os desamorosos e desrespeitosos já lá não estavam, pelo que até a casa era agora um lugar melhor.
Sentia-se livre. Importante. Chegava a sentir-se gente. O balde, puxava-o em jeito de trolley e a esfregona era apenas a gabardina que balançava no braço, já que os aeroportos são quentes e acolhedores, não carecem de agasalhos. Os aeroportos são abrigos. Albergues de gente que não para no mesmo sítio muito tempo. Gostava do cheiro, das luzes e das lojas, do ambiente sofisticado e despretensioso e dos rostos dos estranhos. Todos eram mais felizes ali, ou apenas os seus olhos tudo viam com maior felicidade. Tudo é mais bonito quando não se tem medo. Quando não se receia ser acariciada por uma mão que se odeia e se esconde no escuro dos olhares indiferentes. Quando não se receia um grito que se aguarda a todo o instante, mas que, ainda assim, assusta e faz o coração minguar. Quando não se tem receio de ligar um interruptor e a luz não acontecer. Abrir uma torneira e a água não brotar. Quando não se receia encarar o rosto dos outros e os olhos podem circular sem restrições, sem medo que possam ser mal interpretados ou sequer interpretados. Ali, todos os olhares têm lugar.
Gosta da máquina de encerar. Guia-se como um carro para as bagagens e com ela em punho imagina-se facilmente que seguimos a rota dos passageiros, rumo à porta numerada, à manga instalada, ao avião em espera. Ali dentro, não precisava de bilhete para viajar. Para rumar àquele destino onde todos são gente, onde todos importam e se importam. Bastava-lhe o balde, a esfregona…
Tinha-se enganado. Deveria ir para as chegadas e não para as partidas. As chegadas também eram mágicas. Era ali que aguardava amantes e futuros filhos. Nos seus braços, as mopas eram ramos de flores coloridas, com delicados laços de seda, com que brindaria aqueles que esperava, aqueles que amava, aqueles que abririam braços e sorrisos logo que a descobrissem no meio da multidão de expectantes. Leria uma revista, comprada na tabacaria, logo ali no centro do corredor principal, enquanto vigiava o placar informativo que ia dizendo o número dos voos que iam aterrando. Um a um. Ligeiros atrasos, que aumentavam o formigueiro no estômago, mas nenhum cancelamento. Bastava ser um pouco paciente. Uma roda no chão. Era preciso apanhá-la, não fosse alguém tropeçar, partir uma perna, acionar o seguro… Uma roda de bagagem que já não partiria, que já não regressaria a casa. Também ela era essa roda destroçada, esmagada com o peso, com os encaixes desgastados de tanto uso e abuso. Pegou na roda com carinho. Era um pedaço de si. Não teve coragem de a deitar no lixo. Guardou-a no bolso da farda. Era uma rótula do seu próprio esqueleto. Não nos descartamos assim de um pedaço de nós. Quem sabe um bom cirurgião de mão firme… Quem sabe não voltaria a rolar.
Mais seis casas de banho e o sonho acabava. Apetecia-lhe alongar a limpeza, esmerar-se no desinfetante, redobrar cuidados com os espelhos e os secadores de mãos, sempre tão salpicados de manchas de água e calcário. Mas não era bom. A chefe entendia que era falta de eficiência e de prontidão. Nada de lentidões nem de desmazelos, recordava a cartilha do primeiro dia de curso para assistente de limpeza. Que dia glorioso. Esse dia era o seu passaporte, a sua permissão para viajar. Um sonho que vivia acordada. Pena que a foto não a beneficiasse. Mas isso era o de somenos importância. Mesmo de pés fixos no solo, mesmo que apenas os olhos acompanhassem descolagens e aterragens, só por estar ali, só por inspirar aquele ar, já se sentia pessoa e essa é uma passagem a que não se consegue pôr um preço. Esse é o bilhete mais desejado, o único com que vale a pena viajar. Nada é mais valioso do que sentirmos o brilho do nosso próprio olhar, ainda que este se reflita no balde de limpezas ou num breve reflexo de azulejo.
Apenas mais dois corredores e findava o seu dia, noite, de trabalho. Que pena. Era no preciso momento em que saía pela porta do pessoal, num acesso recôndito do espaço aéreo onde lhe era permitido viajar sem sair do lugar, que voltava a coisificar-se. Que voltava a ser coisa sem importância. Coisa sem valor. Apenas objeto. Mas regressaria nessa mesma noite e isso era magnífico. Estava sempre a partir e a chegar. Sempre em trânsito, entre a felicidade e a promessa desta. Apenas isso. Tudo isso. Bastava.
Pronto. Última passagem da mopa mecânica, últimos retoques do polimento. Desligou a máquina. Guardou balde e esfregona no interior da mesma. Encaminhou-a para os arrumos. A chefe chamou-a a um pequeno gabinete. Precisava de lhe dar ‘uma palavrinha’. Infelizmente, sabia bem o que isso queria dizer. Ninguém dá palavrinhas. Gratuitamente vêm palavrões. Já as palavrinhas… Essas custam caro. Têm um preço sempre acima da média que estaríamos disponíveis para pagar. Ela sabia que as palavrinhas são caras. Por isso tinha tão poucas palavrinhas. Tinha feito algo mal. O que teria sido? Percorreu o seu circuito de cor. Tinha cumprido todos os requisitos e coberto toda a área que lhe estava destinada. Tinha devolvido todos os bens encontrados… Seria a roda da mala que guardara no bolso e que alguma das câmaras pensasse tratar-se de algo mais? De algo com algum tipo de valor? ‘Uma palavrinha’. Ninguém dá palavrinhas. Ninguém dá seja o que for, sobre essa matéria sabia tudo o que havia para saber. Quando muito tiram-nos a ‘palavrinha’. Emudecem-nos. São sempre palavrinhas que nos tiram o pio. Por isso se diz ‘palavrinha’, para não se parecer abusador. Se fosse coisa boa, e a fim de parecerem generosos, de certeza que diriam: ‘Preciso dar-lhe umas frases’, ou apenas ‘algumas orações’. Já só na Missa, pensava ela, se davam orações, e mesmo isso não jurava, que já não punha os pés numa igreja desde aquele dia em que o tio materno…
A chefe foi direta ao assunto. Tinha a ver com o fim do contrato, mas ela não ficou para ouvir o resto. Tinha medo que lhe confiscassem o passaporte e estava quase na hora do seu voo. Tinha mesmo de partir. E isso era aquilo que mais queria. Ainda estava com tempo. Chegaria a horas.
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