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No escritório

– Eu trato de tudo. Não precisam de se preocupar com o que quer que seja.

Assim determinava o boémio do grupo pouco antes da hora de almoço. A conversa foi retomada no restaurante de sempre, a cinco minutos a pé do escritório, e o assunto continuaria a ser debatido ao longo da tarde, apimentado a cada coffee break, cinco ao todo. No final do dia de trabalho, o plano já tinha avançado para adjetivos como louco, desabrido e muy caliente. Ricardo, chefe do departamento de marketing e amigo dos tempos da faculdade de toda a equipa de criativos da agência, de que o próprio era dono, fazia anos dentro de umas semanas e, para se desforrarem do muito dinheiro que ele lhes ganhava insistentemente nas noites de póquer do grupo, bafejado por uma sorte absolutamente obscena, tinham decidido pregar-lhe uma partida de aniversário.

O plano atual estava já largas milhas a leste do ponto de partida: apenas uma prostituta a sair de um enorme bolo em plena agência. Caramba! Eram criativos. Publicitários. Não podiam ficar-se por tamanho jargão cinematográfico. A coisa tinha de ser de arromba. Um case study para toda a idiotice e estupidez no que a festas de aniversário dizia respeito. Haveria uma história. Mais do que isso. Todo um guião para decorar. Papéis para representar. Um enredo calculado e posto no papel. Linhas. Tempo. Falas e uma atriz convidada. Talvez dispensassem o ensaio geral mas não todos os outros que antecederiam esse hipotético e derradeiro faz de conta de toda a história. Jaime tinha tudo pensado ao pormenor. Entre os cinco, desde que o alinhamento fosse respeitado, haveria pouco ou nenhum espaço para erros dramáticos. Até porque era uma comédia, aquilo que já se erguia nas suas cabeças. O entusiasmo era tal que os olhos brilhavam e as mentes fervilhavam com ideias. Muitas delas aproveitadas, com sucesso, inclusivamente para algumas das campanhas publicitárias em que trabalhavam no momento. Jaime, o mais boémio do grupo de amigos e colegas era o mais entusiasta, mas cada um acrescentava, a cada dia que passava, mais uma ideia, mais uma achega. Aquilo que planeavam era já a sinopse de uma short story. Estiveram quase a fazer o story board da coisa mas, avaliando o trabalho e tempo que tal implicaria, tinham-se ficado pelas imagens nas suas cabeças.

Na véspera do aniversário de Ricardo, no final do dia, altura em que bebiam um copo, ou vários, antes de seguirem para as suas respetivas vidas, Jaime liderou uma pormenorizada recapitulação do guião. A Ricardo tinham dito apenas que nesse dia não se poderiam reunir na cervejaria do Sr. Zé, como de costume por esta e mais outra razão. Ricardo de nada desconfiou.

 

Na casa de Nuno:

O grupo juntou-se na casa do Nuno, por ser a que mais perto ficava da agência. Jaime tomou a palavra, como sempre fizera desde que se conheciam. Era o mais desinibido e louco do grupo e também um dos mais bem-sucedidos na vida. Não fazia parte do grupo original. Tinha estudado em Londres e mantinha uma intensa vida social da qual nenhum dos colegas fazia parte. Enquanto todos os outros cinco vinham da classe baixa ou média, ele dava continuidade a uma certa ideia de aristocracia que se julgava morta. Tinha mil e uma ideias, energia para as colocar em prática, uma pazada de dinheiro que com elas lucrava, uma casa de revista de decoração que, precisamente, apenas conheciam das revistas de decoração internacionais, e uma mulher, ao que constava, escandalosamente sexy. Era uma espécie de protótipo daquilo que qualquer miúdo quer ser quando for homem feito. Aquela espécie de liderança era incontestada, até porque o seu sentido de humor e humildade se sobrepunham a qualquer tipo de ego de campeão ou snobeira social. Era apenas mais um da malta.

– Então? Como é que é? Jorge.

Jorge começa a debitar:

– Há já uma semana que mandei marcar na agenda do Ricardo um almoço importantíssimo com a diretora de marketing e publicidade da Coca-Cola ibérica. Lamentavelmente, a única data possível para ela coincide com o dia do aniversário dele, mas claro que jamais se desmarcaria tal almoço, pois as verbas implicadas numa possível contratação da nossa agência, podem representar meio ano de salários, e nós não ganhamos pouco, como bem sabem. O Ricardo nem vacilou ou se atreveu a adiar. Desceremos todos às 13h em ponto. Reservei a melhor mesa do restaurante. A redonda, junto à janela. É de dez lugares e somos apenas sete, mas está tudo garantido com o chefe de mesa.

Jaime dirige-se a Luís:

– E tu?

– Já liguei para o serviço de ‘meninas’. Por volta das 13h15 estará uma das call girls mais requisitadas da empresa contratada à nossa espera. Seguimos com ela para a mesa. Fazemos conversa de circunstância, durante os aperitivos, ainda no bar do restaurante. Só começamos a falar de negócios quando nos conduzirem para a mesa. A rapariga foi altamente ‘briefada’. A avaliar pela foto que me disponibilizaram é um estouro. Tem um porte real e elegante. Muito discreta, mas de uma beleza estonteante, garanto-vos. Por aí, o Ricardo não vai desconfiar. Já durante o almoço, enquanto discutimos estratégias ela vai começar o ‘serviço’. Ela vestirá um fato de saia e casaco preto, como me informaram, e camisa branca. Muito profissional e discreto, estilo masculino.

– Perfeito. O resto, depende de como o Ricardo reagir aos avanços da Sr.ª Diretora. Teremos todos de improvisar, para só se desmascarar a cena bem no final. Que ninguém se ria.

– Isso vai ser o mais complicado, senão mesmo impossível. Não vou conseguir olhar para ti, Jaime.

Palavras de Diogo que todos os outros corroboraram.

– Então, é simples. Não olhem para mim.

– Isso não é nada simples – explicava Nuno. Será mesmo o mais difícil. Sabes isso.

Insuflou-se logo ali alguma confusão de todos contra um pelo que, ficou decidido que Jaime, a título de uma desculpa que tinham de inventar ali e agora, apareceria apenas no final da refeição, após receber uma chamada ou mensagem de algum dos outros.

– Ok. Terei de ir ter com a minha mulher ao hospital. Diremos que caiu de uma escada, no trabalho, e que, com receio de um qualquer traumatismo a firma fez questão que fosse vista, até por questões de seguros de trabalho e tudo o mais. Mas logo que possa aparecer, por favor avisem-me. Afinal, tive a ideia, montei o espetáculo todo e não vou poder assistir ao mesmo. Não é justo.

– No final – acalmou-o Carlos -, solicitamos o vídeo de segurança do restaurante. Vou já ligar ao Óscar, o dono. Mais tranquilo assim?

Sem dúvida. A ideia de ficar com um registo material do episódio, uma criação sua, que poderia ver e rever, acelerar ou ‘pausar’ para melhor avaliar as reações de Ricardo, de repente, pareceram a Jaime uma ótima compensação.

GATA BORRALHEIRA BY Johnny Robles 273b95b1503fa50dbdf1aae0819aa83b

No restaurante

Nessa manhã, do dia que mudaria as suas vidas, do dia em que deixariam de dirigir atores em anúncios para manipularem vidas reais – um poder de que se iam apercebendo conforme as horas passavam –, os nervos eram miudinhos, mas eram muitos. O bastante para poder gerar alguma branca, principalmente na ausência programada de Jaime. Já estavam reunidos no lobby da agência quando Jaime lá informa que terá de chegar mais tarde. Um pequeno acidente de trabalho com a mulher. Uma queda atabalhoada numas escadas. Uma ida ao hospital apenas por prevenção, mas a sua ausência a ser plenamente justificada. Tudo ok. Tudo a postos.

Às 13h15 em ponto, vinda do nada, uma farta cabeleira morena, um corpo nota mil e muitos, um rosto sedutor e uma agradável nuvem de suave perfume envolve o grupo. A mulher vinha armada de bâton e uma das mais caras máscaras da história dos rímeis, à prova de homens chatos e impotentes. Nisto repararia uma mulher. Eles eram homens e a luxúria não lhes permitia ver os detalhes, apenas sentir um total arrebatamento carnal, instintivamente sexual.

Todos, à vez, recuperam o fôlego apenas no momento exato em que os seus cérebros já não suportariam mais um nanossegundo sem oxigenação. Não têm dúvidas. Um fato de saia e casaco preto, camisa branca, uma pasta de computador e um excesso de feminilidade que nem a Coca-Cola poderia pagar. Pela mente de todos, exceto a de Ricardo, que apenas tremia de nervoso a pensar nos milhões que tal negócio poderia representar, passou a ideia de, talvez, um dia, quem sabe, contratarem aquela ‘executiva’ para ‘executar’ serviços particulares. Depois varreu-se-lhes. Tinham de se manter argutos e alerta. Afinal, era o aniversário de Ricardo e não podiam desmanchar-se antes de tudo acontecer. Let the games beggin, pensaram. A fulana era inteligente e encarnou o papel na perfeição. Tinha mundo, era culta e até deixava cair, aqui e ali, um certo sotaque castelhano, que denunciava, aos ouvidos de Ricardo, o muito tempo que passava em Madrid. Lá esclareceu a vontade, quase teima, que tinha de descentralizar certos serviços, optando antes por empresas portuguesas, a fim de retirar o monopólio espanhol em algumas negociações. Razão do porquê da escolha da AddMore – nome da empresa de Ricardo. Fingiu mesmo receber um telefonema, o qual atendeu em castelhano. Um achado. A mulher merecia todo o dinheiro que ganhara. Sim, em certos serviços, o pagamento é adiantado. Mas este estava a revelar-se um serviço sete estrelas.

Tal como combinado, logo que recolheram os pratos das entradas, Maria – assim se chamava ou, pelo menos, assim era o nome desta personagem –, começa a insinuar-se a Ricardo. Fixa-o languidamente nos olhos. Fala com as mãos. Mexe de forma despreocupada no cabelo levemente perfumado. Os seus pés começam por subir pelas pernas de Ricardo, passaram a fixar-se na zona da braguilha, enquanto ela rodopiava a língua de forma estupidamente sedutora, sem que a narrativa profissional fosse interrompida ou sequer comprometida. Ricardo transpira de forma já abusiva, mesmo para uma situação destas. Pede licença. Vai à casa de banho. Maria segue-o. Assedia-o no corredor. É o tipo de mulher que não aceita nem está habituada a que lhe digam ‘não’. Quase entra para a casa de banho dos homens, não fosse um outro cliente estar a entrar nesse preciso momento. Que mau timming, caramba! Ricardo, o único solteiro do grupo bem que podia ter aproveitado. Em nome da empresa, claro. Na mesa ninguém ousa falar, não fossem despir inadvertidamente o papel e cair-lhes a máscara. Se um risse tudo aquilo ruiria, pois todos estavam a rebentar de regozijo e de vontade de rir e galhofar com a situação. De regresso à mesa, os ataques de Maria são cada vez mais persistentes e arrasadores para o desgraçado do Ricardo, que acaba com as pernas cruzadas e para fora da mesa.

– Estás todo torto, Ricardo. Olha a postura. Põe as pernas debaixo da mesa, pá. Estás parvo?! – Diz-lhe, Carlos entredentes.

– Depois te explico – Sussurra o ingénuo Ricardo – Depois te explico.

Já quase ignorando a presença dos restantes, Maria insiste para que Ricardo a acompanhe ao hotel, onde tinha deixado um esboço em power point daquilo que pretendia para a campanha ibérica.

– Não seria melhor toda a equipa acompanhar esse briefing?

– Eu expresso-me melhor em privado, Ricardo. – Atirou a já descarada Maria.

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A coisa desenrolou-se de tal maneira que Ricardo se encontrou sem saída. Já se estava a convencer de que acabaria por ter de sair dali para se ir ‘prostituir’ com aquela executiva e percebeu na pele os constrangimentos do assédio. Ela era de se morrer, é certo, mas a sua liberdade também o era. Sentiu-se desagradavelmente encurralado. Depois, passou a agradavelmente atado e, no final da refeição, já se estava nas tintas. Iria com ela. Porque não? Se fechassem negócio, tanto melhor. Se não, teria, na mesma, feito um ótimo negócio. Ela era avassaladoramente atraente e sensual. Ganhava sempre. Levantam-se, prontos para sair, Maria vai à casa de banho, desta vez sozinha, e Jaime, a quem já tinham ligado, basicamente ordena que não saiam sem ele chegar. Queria estar presente quando contassem a partida a Ricardo. Eram os mínimos olímpicos. Todos acederam. Maria, entretanto, pede licença para ir fumar lá fora e fazer alguns telefonemas. Ninguém se atreveu a acompanhá-la. Ricardo não fumava e estava ainda sem saber muito bem o que fazer e tentava, entredentes, perceber se os amigos percebiam a cilada em que se sentia. Os restantes, imaginaram que Maria estaria já a tratar do trabalho que se seguia. Tinha uma tarde inteira pela frente e, caso Ricardo acabasse por não ir com ela para o hotel, teria de tratar de preencher a sua agenda, como é compreensível. Nisto, da entrada principal do restaurante, surgem dois vultos em contraluz. Parecem silhuetas familiares mas, de tão distorcidas, nenhum deles os reconhece. Temem que sejam clientes da agência ou conhecidos do foro pessoal, o que seria ainda mais incómodo e embaraçoso, e que acabem por perceber a constrangedora situação que ali se passava, a qual apenas o crédulo Ricardo, agora a tratar do pagamento da conta, engolia sem desconfianças.

– Olhem só a coincidência. Aproveito para lhes apresentar a minha mulher. Depois dos exames no hospital, acabei por trazê-la comigo.

Era a voz de Jaime que, já mais junto deles, piscava o olho enquanto dizia isto.

Que alívio. Era apenas o ‘encenador’. Todos sorriram, descomprimindo do aperto.

Pálida, Maria, parecia estar à beira do colapso. Jaime prontificou-se a ampará-la enquanto dizia algo que a todos confundiu:

– Esta é a Júlia, a minha mulher. Que ocasião rara para se conhecerem, certo? Então? O Ricardo e a fulana, já seguiram para o hotel?

Sem descortinarem bem o que se passava, chega Ricardo, cheio de pica. Já tinha decidido. Sem reparar na presença de Jaime, ou apenas nem se dando conta de que ele não os acompanhou desde o início, agarra na Miss Coca-Cola pelo cotovelo e diz:

– Vamos, então, Maria?

Jamais esquecerão a expressão do Jaime.

 

 

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