Lamentava muito. Profunda e insanamente. Lamentava tanto e tão sofridamente, que todas as razões da sua existência se tornavam nulas, o que remetia para o seu próprio nascimento. Porquê ter nascido? Lamentava-o agora, já tudo perdido e sem retrocesso, mas, pior do que tudo, lamentara-o no momento em que poderia ter sido diferente. No segundo exato em que poderia ter mudado o curso das coisas e com isso o rumo da sua vida. Tinha tido a chave na mão, rodado o trinco, mas tinha sido incapaz de abrir a porta. Do lado de lá, a sua felicidade. Do lado de cá, este doloroso remorso. O estéril lamento. O puxador ainda na mão, mas já sem porta para abrir. Apenas vazio. Apenas lamento.

Na sua cabeça as palavras, no coração o sentimento e da sua boca nada saíra. Nada vezes nada vezes infinito. Silêncio absoluto. Silêncio apenas. Ela falava, adjetivando a alma com lágrimas, pontuando com soluços. Pedindo desculpa. Expondo-se à sua mercê. Ela a esventrar-se. Ele pregado ao chão. Todo ele pregado ao chão, com os pregos da cruz a atravessarem-lhe os ossos cuneiformes e todo ele absorvido naquela dor. Naquele bizarro acaso ortopédico. Bastava ter sido um pouco mais. Um pouco mais qualquer coisa e poderia ter invertido todo aquele rio de saudade e ausência.

Tinha pronta para lhe contar a mais bela história de amor de toda a história das histórias de amor, pois que nenhum outro se compara ao nosso amor. E só isso basta. Só isso bastaria. Só isso teria bastado. Uma mão a secar-lhe as lágrimas. Um sussurro ao ouvido – uma qualquer coisa ao ouvido, que quando ansiamos por socorro qualquer boia furada nos salva –, uma meia palavra de amor, um olhar perdido e apaixonado. Há muito que a tinha desculpado. Nem sequer aquilo era necessário. Mas o maldito tarso em agonia – seria o tarso ou o orgulho? Por vezes, os ossos fundem-se com outras coisas vivas – impedia que se movesse e a sua mão, perdida em cálculos de distância, assumia como certo que não chegaria ao rosto dela, e a sua língua em coma profundo.

Apenas ‘amo-te’, ou um ainda mais curto ‘não’ teriam sido suficientes. ‘Fica’ também teria sido adequado. Um tremor. Uma lágrima. Qualquer sinal de amor e de vida, que indicassem a sua dor, a sua vontade, a sua necessidade da presença dela. Do amor dela junto ao seu. O que ela dizia nada importava, mas o que ele calava tudo significava. Ela partiu. Ele parado. Olhou o tarso, todo ensanguentado, mas nem sinal de pregos ou de ferida. Todo aquele sangue escorria da sua tristeza. Da sua dor, agora em todo o lado, exceto naqueles pés paralisados.

Tentou, depois, dizer-lhe tudo o que calara. Mensagens, telefonemas, cartas, algumas atitudes loucas, daquelas que apenas os amantes ousam, perante a humilhação pública resultante de gestos bizarros. Mas ela sabia. Ele sabia. Tinha passado o momento. Para sempre ficara aquele coxear.

Partilhar