+ Precisa de ajuda?
– Desculpe?
+ Pergunto se precisa de ajuda. Vi-o a cambalear antes de se sentar e, não leve a mal a sinceridade, mas está pálido, verde, diria mesmo, com má cara. Precisa de ajuda? Quer que chame alguém?
– Não.
+ Sente-se bem?
– Não.
+ Vê?! Talvez não seja assim tão má ideia pedir ajuda. Está com um tom cinza esverdeado…
– Não se preocupe. Já estou à espera.
+ À espera? Vem ajuda a caminho?
– Não lhe chamaria ajuda, mas também nem sei ainda que nome lhe dar. Disseram-me que ela não tardava. Para estar atento. Que seria avisado. Que perceberia a sua chegada. Que não demoraria. Aguardo.
+ Há muito?
– Há vários meses.
+ Compreendo. Diria que está atrasada?
– Não sei. Não sabendo a data exata da sua chegada, não lhe sei dizer se já deveria ter chegado ou se ainda tem tempo. Esperava um sinal. Uma carta. Qualquer mensagem clara. Isto, assim, causa muita ansiedade.
+ Imagino que sim, mas, uma carta?
– Uma carta, um postal. Quem diz isso, diz uma marca, um sinal, um zumbido nos ouvidos. Algo que nos informasse de que estava para breve. De que deveríamos abreviar assuntos e despedidas, caso delas houvesse necessidade ou nelas houvesse interesse. Percebe? Assim, sei, mas não sei. Mais valia não saber.
+ Sim. Como os restantes de nós. Sabemos que a safada virá, virá sempre, um dia qualquer. Pode até vir ter comigo antes de vir ao seu encontro, mas vivemos na tranquila segurança da ignorância. Mais vale, sem dúvida.
– Pois.
+ Tem medo?

By Taylor McCormic
Silêncio
– Já tive. Logo no início. Senti-me um animal ferido acossado na sua própria toca. Sem conseguir sair para lutar, sem poder ficar para descansar. O corpo não descansa, a cabeça não dorme… Sentia-me tão vivo e alerta, mas tão derrotado e sem forças. Depois, chorei também muito. Mas somos um bicho estranho, não acha? Não tardou e habituei-me a esta coisa nova. A esta ansiedade, a este estado de loucura. Agora, vivo esta nova normalidade, com as suas rotinas e sobressaltos. Passou a ser a minha vida. Levanto-me e venho para aqui, esperá-la. Quando chove, abrigo-me, quando faz sol aqueço estes ossos, este corpo mirrado, quando faz frio, agasalho-me, mas não posso deixar de vir. Aguardo. Quero conseguir vê-la ao longe. Pelo menos, um pouco antes de chegar mais perto. Quero perceber como é. Como será. Pelo menos perceber que chega, que é para mim que caminha, que é a mim quem olha. Quero ver como é, como anda, o que me dirá. Será que dirá alguma coisa?
+ Acho que compreendo. Sim, compreendo. Tem dores?
– Provavelmente. Não dou muito por elas.
+ Se calhar, são o sinal que espera.
– Não. Elas foram o sinal que a chamou. É a forma que ela usa para se lembrar das coisas. O seu alarme despertador. A vinda dela será outra coisa, a propósito sabe-se lá do quê? Saberá Deus? Será o próprio a vir? Como saberei?

By Oystein Aspelund
+ Seria incrível. E brutal. Ser o próprio. Mas seria de uma enorme dignidade. Dar com uma mão o que leva com a outra. Nunca tinha pensado nessa possibilidade.
– Apenas porque não a espera, como eu. Não a espera há meses, com a cabeça vazia para a vida, o espírito toldado com a ansiedade e todos os sentidos em busca de um maldito sinal. Uma carta. Um postal.
+ Não seria pior? Assim, quase sem saber, ainda que sabendo já, conseguiu, mesmo assim, uma rotina, uma ocupação. Espera-a.
– É bem verdade, isso que diz. Tenho o dia organizado. Uma espécie de vida, com certos horários. De dia aqui, à noite em casa. Há dias diferentes. O que sinto é tão estranho e insuportável que percebo que o melhor é ir aguardá-la no hospital. Mas algo me diz que ela virá quando estiver sozinho. Indefeso. Sem testemunhas. Sem alardes. Acredito que assim será.
+ Posso ajudá-lo de alguma forma?
– Não vejo como.
+ Porque acredita nisso? De que ela virá quando menos esperar?
– Não foi isso que eu disse, até porque isso não acontecerá, uma vez que eu não espero de menos. Eu apenas espero. Em absoluto. Sem distrações. Ou seja, espero na quantidade exata, necessária. O que digo é que, por exemplo, ela não virá consigo aqui. Acredito que ela me respeitará, sabe?! Sou aquele tipo de indivíduo que morreria simplesmente afogado numa praia, porque teria o maior pudor em incomodar quem quer que fosse. Alguém que estaria no seu dia de folga, a aproveitar o sol, a areia, o mar…
E, depois, um incompetente qualquer, por ter avaliado mal as distâncias, as marés, a corrente, as suas capacidades e forças a estragar-lhe o dia. A requerer o esforço alheio. A morrer-lhe nos braços, se a coisa desse para o torto e muitas vezes só dá para esse lado. Teria até vergonha. Nem sei se as palavras me sairiam da boca. O que diria? Socorro? Ajuda? Estou a afogar-me? Nunca estive nessa situação, pelo que certezas, certezinhas não são muitas, mas que acredito que as palavras não me obedeceriam se ousasse sequer abrir a boca e que engoliria a água suficiente antes da primeira letra, lá isso acredito. Pode crer! Sou um solitário. Não gosto que me incomodem. Não gosto de incomodar. Por isso, acredito que, por respeito, nesse último momento, ela respeitará isso. Ela compreenderá a reserva do momento. A minha necessidade de discrição. Por isso, também, a espero para que a possa olhar nos olhos com antecedência suficiente para que ela entenda o meu propósito, ou antes, o meu desejo, pois que não passa de uma vontade e não uma intenção, na medida em que dependerá exclusivamente dela. Talvez que, com alguns passos de intervalo, eu e ela, olhos nos olhos, possamos chegar a esse entendimento, a esse acordo, se os seus planos forem diferentes. Se, por exemplo, gostar de gritos, sirenes, ambulâncias, lágrimas e esperas hospitalares, sangrias e operações desesperadas. Remendos provisórios antes do fim. Isso não.
+ Pode chegar à noite.
– Pois pode. Seria bom. Estaria sozinho e ajuda, já sabe, dificilmente a pedirei.
+ E se não for ela? Se mandar um assaltante? Um camião?
– Seria o máximo! Quanta ironia. Avisa-me que vem, manda dizer que já estará a caminho, apenas não sabemos de onde, nem para quando será, e acaba por subcontratar o serviço. Que maravilha! Não tinha pensado nisso. Achei que o meu destino seria viver a doença até ela achar que é hora. Aquela hora. A certa para mim.
+ Posso esperar consigo.
– Não lho peço e…
+ Não mo pediu, mas eu gostaria.
– Mas porquê, homem? Parece sádico.
+ Pelo contrário. Se acredita mesmo que ela virá quando estiver sozinho, então, mantenha-se acompanhado. Eu serei a sua companhia. Por mim, está decidido. Além de que, confesso, tenho curiosidade. Quero saber como tudo acaba, no geral, e curioso em saber como será consigo, ou se, estando você certo…
– Mas você não tem vida?
+ Tenho. E a partir de agora passarei a ter uma vida diferente. Serei a sua companhia.
– Um anjo da guarda?
+ Isso é ainda mais bonito. Porque não?
– E se fosse for ela, ou o mandatário dela e estiver apenas aqui a gozar com a minha má cara? A passar-se por amigo?
+ Achou mesmo que era eu, quando me viu chegar?
– Para ser sincero, não. Você estava deveras assustado e isso não se dissimula facilmente. Teria de ser alguém do teatro ou muito cara de pau, para conseguir o seu ar de aflição. Não penso maravilhas daquela de quem estou à espera, mas guiões mal-amanhados e atores de terceira também não me parecem ser estratagemas de que se sirva.
+ Como sabe que ela não é amiga? Pois se todos temos um fim, porque aceitamos que o fim é mau e que o princípio foi bom? Gostou de nascer? E se houver uma outra possibilidade? Um outro estado da matéria, o não-nascido? E, existindo, não poderá ser o melhor de todos? Uma espécie de paraíso eterno? Como sabe o que será morrer? Deixar de ser? Acabar? Conceptualmente, é até romântica a ideia de, num brevíssimo instante, tudo aquilo que foi deixar de o ser. Tudo aquilo que se era, já não se é. Ou é-se, mas de forma diferente. Com outros sentidos, outra pele.
– Sei que não é boa rés, por causa da carta que está em falta. A mensagem com detalhes mais específicos, mais detalhes e informação. Deveríamos ter esse direito, nós, aqueles a quem anunciam o fim, mas não fornecem mais dados.
+ Uma carta? Acho um pouco estapafúrdio, já que são planos distintos da matéria…
Um terceiro indivíduo mete conversa.
. Desculpem a intromissão. Estava demasiado perto para não ouvir toda a vossa conversa. Uma carta é possível. A minha mulher recebeu uma. Falava no tempo que lhe restava, de como seria mais ou menos, e do que a esperava ainda antes que tudo terminasse. Claro que, sentindo-se menos do que a totalidade dos seus 100%, a minha mulher resolveu o assunto quando entendeu que, abaixo daquele ponto, ela já não seria ela, pelo que não fazia sentido fazer de conta que era ela toda, quando, na verdade, só já lá estava uma parte de si. Como era baixa e magra, não tardou a sentir-se mínima e terminou com tudo, sem esperas ou ansiedades.

By Josef Koudelka
– Uma carta? Vê?! Não lhe disse que era a forma decente de se fazer a coisa? Talvez a minha ainda chegue.
+ E de que adiantaria? Já pensou? Aí, sim, estaria no corredor da morte, mas sem direito à última refeição de primeira, sem apetite e com o coração a explodir no peito enquanto fazia a sua contagem decrescente: 3, 2, nada.
– Talvez. Mas julgo que é um direito que me é devido. Ou mandam-me tudo numa carta, ou, então, não me avisem de que sou o próximo. A angústia ainda me mata.
+ Não me parece que isso deva ser uma preocupação, neste momento.
– Está a ser irónico? A tentar ter graça?
+ Claro que não. Estou a tentar manter a lógica da coisa. Não precisa de se preocupar com outros desfechos. Qualquer que seja o seu desfecho, é porque esse é, de facto, o seu desfecho.
– Tem razão. Compreendo.
+ Mantenho firme o meu propósito de o acompanhar diariamente na sua vigília. A que horas vem para aqui?
– Às cinco.
+ Da manhã?
– Sim. Assim, já não lhe apetece, não é?
+ Nada disso, apenas não me quero atrasar. Até que horas aqui fica?
– Até às 17h. Meio dia para ela, meio dia para mim.
+ À noite está sozinho?
– Não completamente. Alugo um dos quartos a um miúdo universitário que passa a noite ou fora ou a estudar.
+ Isso é mau. Quem cobre o outro turno?
– Nada disso. Sejamos justos. Meio tempo para mim, outro tanto para ela. Um dia será o dia.
+ Tem razão, mas vamos ver se a fintamos. Até amanhã, então?
– Não lhe posso pedir tal coisa…
+ Não mo pediu, lembra-se?
– Certo, mas pense numa coisa, com que ocupar o seu tempo, enquanto tem tempo. Eu estou aqui porque espero por ela. Você o que vem para aqui fazer? Qual o seu propósito? Não me poderá salvar. Você mesmo o disse: ninguém se salva. Pergunto-lhe mais uma vez. O que vem você para aqui fazer?
+ Enquanto você espera por ela, eu estou para aqui à espera que você morra. Ou não.
. Que história mais incrível! E que gesto nobre. Sempre que puder, hei de vir também. Fique, com o meu número. Se por algum motivo não poder vir, avise-me que eu substituo-o.
+ Obrigado.
Primeiro foi o jornal local. Uma notícia que logo se espalhou no universo paralelo da virtualidade. O Youtube e as redes, a televisão e as excursões. Instalou-se um reality show, com diretos e galas e as suas apresentadoras histriónicas com estúpidos e pirosos vestidos despropositados. Aquilo era bom demais. Do melhor que a televisão já havia visto. O homem cheirava a morte e tinha no andar o ritmo cancerígeno que captava a atenção. Que entusiasmava. Que excitava as hordas. Curvado como um ponto de interrogação, muito dramático, muito telegénico. Viessem de lá as pipocas. Pois elas vieram. Tudo era fascinante. O homem era já uma marioneta, manipulada de forma desastrada pelo resto das suas próprias forças. Pela largura da roupa, percebia-se o quanto dele já tinha desaparecido. Todo ele preso por alfinetes. Todo ele colado com cuspo.

By Diane Arbus
O arco das sobrancelhas cada vez mais arqueado, pois desse repuxão dependia a abertura dos olhos. Apenas a genica daquele sobrolho arqueado os mantinha abertos, ou quase. Ganharam-se e perderam-se apostas sobre o tempo restante, sobre qual o próximo órgão a falhar, sobre qual a sobrancelha que primeiro cederia, sobre quanto tempo o já cognominado ‘anjo da guarda’ aguentaria tão macabra vigília, sobre que tema abordariam os dois homens num determinado dia. Iniciaram-se e morreram discussões, filosóficas, religiosas e outras que nem por isso o eram. Vieram os arautos da ética e os abutres, os juristas, os legisladores e as leis sobre o direito à reserva e à privacidade, mas sem conclusões claras, público que era aquele espaço urbano. Vieram ainda os humoristas e os sponsors. Vieram as farmacêuticas e os milagreiros e alguém anunciou o fim do mundo. Mas o mundo já tinha acabado e as pipocas também. O tempo foi passando e esgotando-se, a compasso certo com o interesse das massas e as audiências cansando-se de tudo aquilo, morrendo de tédio sem que o homem morresse, não obstante o péssimo aspeto, a fragilidade, a morbidez dos traços e o corpo cadavérico.

By Eva Navarro
Mas cansaram-se até ao tutano de esperar com o futuro defunto. Cansaram-se de tudo. Do formato. Dos protagonistas. Dos apresentadores desenxabidos com as suas perguntas idiotas e a sua roupa patrocinada. Passou o tempo, outros interesses se instalaram e todos se foram embora. Havia outros moribundos a suscitar novos interesses. Todos desistiram. Exceto os dois homens mais o terceiro. Respiraram de alívio. Longe da fibra ótica, pôde regressar a filosofia, a metafísica, a rotina, a espera e um aprazível silêncio. Findo todo aquele espetáculo de misérias televisionadas, podia até vir a morte. A própria. Enquanto isso, mantiveram-se para ali, fingindo normalidades, firmes no seu propósito, à espera que ele morresse. Apenas isso.
bom dia, muito bom o seu artigo. nao deixe de os
publicar.
De um leal leitor frequente.
Helio
Muito obrigada Hélio Pereira. Ainda bem que está aí desse lado.