Ali estavam. De novo, mas mais velhos. Sempre. Cada dia mais velhos. Tomavam os lugares de sempre, quase sempre pela mesma ordem de chegada. Os mais velhos chegavam mais cedo, invariavelmente a horas. Tomavam os cadeirões de sempre. Os respetivos, por assim dizer. Respetivos nesse turno. Os respetivos de outras pessoas nos turnos seguintes. Era sempre assim. Não valia a pena inventar. Dona Idalina já se tinha “posto à vontade”, como sempre diz. O mesmo é sinónimo de fato de treino roxo, ou amarelo ou turquesa. As três cores de que dispõe, nos três fatos de treino que veste antes de cada sessão – “comprados no chinês”, como repete invariavelmente, como se a audiência não fosse a mesma de sempre, desde há já quatro anos. Não gosta de apertos e como passa quatro horas naquele cadeirão três vezes por semana, o melhor é mesmo pôr-se à vontade. Confortável. Não há outra forma, senão o modo confortável, para melhor aceitar a necessidade vital de três metades de dia por semana, num total de dia e meio por semana, agarrada àquela cadeira. Uma cilada em que nem todos caem. Estar confortável perante uma situação desconfortável e imposta por urgência médica é normalizar o anormal. É tornar familiar o ‘infamiliar’. É abrir a porta ao Diabo. Trazer para dentro o que deveria ficar fora. O que nunca deveria ter entrado.

Dona Idalina já lá estava. Hoje era dia de fato de treino amarelo. Era quase sempre a primeira a chegar. Fazia uma certa gala nessa sua pontualidade, interpretada por todos os outros como uma desgraçada disponibilidade para o infortúnio. “Assim, também saio primeiro”, repetia. Mais um engano. Não saía primeiro. Nem queria sair primeiro. O que ficava, depois de tudo coado, era a evidência de que aquele compromisso hospitalar era a sua única atividade ‘social’. Um encontro a que não se podia dar ao luxo de faltar devido a uma outra condição de saúde a que não dava particular importância, mas que, aos olhos de todos, pessoal médico incluído, era a sua pior doença: solidão crónica. Ali, encontrava os seus pares. Gente de todos os quadrantes, idades e estratos sociais. Todos unidos num lugar que os tornava demasiado iguais. Que os uniformizava. Todos com a mesma farda, ou seria fardo? Todos doentiamente iguais. Parceiros de infortúnio. Independentemente do tipo, o sangue humano é todo igual. Ali, isso era calorosamente óbvio aos seus olhos. Lamentava apenas não poder usar esse tempo para fazer a sua malha. Com os carreiros de sangue que lhe conquistavam as veias, levando um breve fôlego de renovação ao seu corpo cansado, os braços, um deles pelo menos, imobilizava-se com prazer, como o de um heroinómano agradecido por mais aquela dose de falsa anestesia, impossibilitanto o seu terapêutico tricot. Naquela sala, as agulhas eram outras e a meada era de conversa.

By Lee Jeffries

Ao mesmo tempo, levantando obscenas suspeitas na mente desocupada de Idalina, chegaram Isidoro e Inês. Ele, um velho, cheio de idade e de ódios. Um homem intragável. Um homem impossível. Ela, uma miúda, cheia de coisas por viver e de vontade de as experimentar. Uma jovem mulher adorável. Uma jovem mulher encantadora. Décadas de intervalo e de diferenças que misturavam, de forma perversa, uma certa repulsa e outro tanto de inveja nas avaliações de Idalina. Ainda que mais velho do que ela própria, Isidoro era bem-apessoado. Tinha boa apresentação. Usava invariavelmente blazer, o que mexia com os padrões estéticos de Idalina – a mulher que se rendia a fatos de treino do chinês, não resistia, afinal, a um bom guarda-roupa –, que lá deixava fugir um breve suspiro sempre que Isidoro entrava na sala. Hoje, porém, o suspiro foi irónico. Sim, irónico. Desdenhoso. Tinha uma entoação amofinada, assim com quem diz: “Juntos? Os dois? De onde vieram juntos?” Ninguém pareceu reparar neste pequeno tumulto que se desenrolava no peito de Idalina, senão eu. Por seu turno, a atenta e intuitiva Idalina reparou que eu reparei. Erro meu. Antes de ficarmos presos às cadeiras com os nossos grilhões de sangue novo, chegou-se a mim, com tom de voz de confidências, sussurrando apenas o óbvio: “Juntos!” Acompanhou o segredado comentário com a obrigatória cotovelada no meu braço e ainda uma inclinação de cabeça na direção dos recém-chegados. Senti-me embaraçada. Aquilo incluía-me inadvertida e compulsivamente num assunto em que não queria participar. Tornava-me cúmplice num julgamento moral, que vestia a sala de hemodiálise com togas de tribunal e transformava aquele num processo sumário, já que se tratava de flagrante delito. Sem defesa, portanto.

Não o poderiam negar. Estavam a entrar juntos. O crime tinha sido cometido. Não queria ser testemunha. Não queria tomar parte. Nem ativa nem passiva naquele tipo de moralismos. Por mim, desejava que se tivessem esborrachado muito um no outro, a noite toda, a manhã toda, e que voltassem a fazê-lo a vida toda de aí em diante. Se era isso que queriam. Se nisso havia felicidade e não apenas desespero – ou mesmo em caso de desespero –, eles que se entendessem. Se Idalina invejava a situação, deveria tomar medidas para encontrar um Isidoro, provavelmente já não aquele, ocupado com Inês – se bem que eu mantenho gigantescas dúvidas quanto a isso –, com quem se esborrachar avidamente, enquanto o stock de sangue novo o permitisse. Mesmo querendo acreditar que o agora casal aos olhos de Idalina não se apercebeu de toda aquela mecânica, senti-me envergonhada e foi quase com embaraço e voz sumida que avancei com o mais simpático bom dia que me foi possível. Isidoro, o homem mais estúpido e execrável que me foi dado conhecer, não respondeu, obviamente. Inês correspondeu com uma jovialidade que tornava ainda mais absurdas as suas profundas e negras olheiras. Era o cansaço. Apenas a sua juventude lhe permitia a ilusão da energia, numa voz fresca e descontraída. Também eles tomaram os seus lugares, cumprindo as ordens de uma estranha obediência ao hábito. Inês, naquele semicírculo de cadeirões, ficava à minha direita, como Jesus, dissera-me um dia. Deus é masculino, alvitrei.

– Quem diz? A Bíblia? Esse repositório de machismos, violência, abuso sexual contra as mulheres, punições, vinganças, incesto, assassínios, e despropósitos escrito apenas por homens preconceituosos e cheios de ódio? Deus não tem género. Nem nós deveríamos ter. Deveríamos ter apenas a nossa biologia, a nossa individualidade. Todos pessoas. Uns homens. Outros mulheres. Todos pessoas. Aqui, tu és o meu Deus e eu estou à tua direita.

Respondeu-me assim, impetuosa. Agradada com a sua teoria. Acreditei que não era a primeira vez que se debruçava sobre o assunto. Ainda que sincero e espontâneo, pareceu ser um tema refletido. Algo em que pensava ou em que já tinha refletido com ponderação e algum escárnio. Provavelmente, nas infindas horas que por ali passávamos. Naqueles momentos em que Idalina e Isidoro dormitavam, em que eu lia ou fingia ler para evitar conversas e em que os outros dois se escapuliam para dentro dos seus telemóveis, ou escapavam pelos headphones, ajudados por playlists ou outras distrações. Os outros dois eram Francisco, um enigmático tímido absolutamente atraente, e Rodrigo, baterista numa banda punk rock e dono da maior coleção de t-shirts que jamais me foi dado conhecer. Frequentávamos aquele ‘clube’ há já quatro anos (pelo menos com esta composição de membros) e nunca lhe vi uma t-shirt repetida ou que não fosse gira. Dentro do estilo punk, claro, mas onde eram permitidas algumas cores, ainda assim. Francisco era charmoso e encantador, do tipo capaz de nos tirar o fôlego. Rodrigo era charmoso e encantador, do género de nos dar fôlego. Era ele quem nos brindava sempre com o mesmo cumprimento:

– Então, já temos a carga pronta e metida nos contentores?

Vistos de fora, não podíamos ser mais heterogéneos. Jamais as vidas de cada um permitiriam que nos cruzássemos em qualquer outro lugar ou, ainda que tal aberração acontecesse, dificilmente acabaríamos por nos conhecer ou falar. Nada nos relacionava. Éramos apenas todos humanos e todos doentes renais. Todos aguardávamos esperança. Injetável ou sob qualquer outra forma de administração, sob qualquer formato de contentor. Nesse aspeto, e esse era outro ponto de contacto, não éramos esquisitos. Talvez já o tivéssemos sido, ou, quem sabe, ainda o éramos noutras áreas, mas não na forma como poderíamos receber algum fôlego mais. Ele que viesse, de que forma viesse, viesse de onde viesse. Sim, isso também nos ligava.

By Shania

Alfredo entrou de rompante. Faltava o Alfredo, claro. Como esquecer o Alfredo, parceiro de fato de treino de Idalina e aquele que sempre surgiu como o par ideal da faladora viúva, não fosse ele casado. Seria mesmo? Todas as histórias ou falta delas levantavam, em mim, tantas suspeitas de que não havia mulher à espera de Alfredo em casa, que muitas vezes me esquecia desse casamento. Idalina tinha ficado viúva ia para mais de vinte anos, permitindo-se já certas libertinagens de linguagem e de ação, muito próprias das vidas bairristas, onde a única vida privada é a de cada um, havendo espaço e necessidade de opinar sobre todas as restantes vidas da vizinhança. Assim o exige o código de conduta em pequenas comunidades. Idalina, porém, nutria uma estranha atração pelo pedante e insuportável Isidoro, que declaradamente a desprezada, olhando-a como ser inferior, de uma qualquer casta rasteira já ao nível da subcave. Escandaloso é que a exaltada e pespinhenta Idalina amagava as orelhas aos impropérios de Isidoro, ao invés de distribuir os seus habituais palpites e insultos como quem dá cartas num jogo de bisca lambida. Uma posição de fraqueza que tácita e mudamente reconhecia a superioridade do inimigo. É certo que a estupidez de Isidoro era difícil de enfrentar. Mesmo em conjunto. Era tarefa ingrata e dolorosa a de tentar com que parte do seu negativismo e uma percentagem do seu ódio fizessem ricochete e, de alguma forma, o conseguissem atingir. Também era inglório. Ninguém estava para isso. Já bastava estar ali.

– Não ligue, D. Idalina, é um misantropo e um misógino também.

Disse-lhe isto um dia, mas Idalina não entendeu.

– Odeia genuinamente pessoas, tem aversão, sente repulsa, mais ainda de mulheres…

– O e-no-ja-di-nho! –, retorqui Idalina, muito devagar, espaçando ponderadamente cada sílaba para que cada uma delas tivesse mais significado, depois de entender. Teria verdadeiramente entendido ou achado apenas que Isidoro era gay? Talvez eu devesse ter ficado calada. Ou talvez devesse explicar-lhe tudo melhor já, enquanto fazia sentido, para evitar mal-entendidos futuros. Mas nisto, numa atitude inesperada, Idalina vira-se para Isidoro, que era alheio aos comentários que eu e ela trocáramos, e, como se finalmente tivesse compreendido que ele a maltratava não por estar apaixonado, mas sim porque genuinamente a odiava, e, quase do nada, atira à cara do estafermo:

– Além de maus rins também tens maus fígados, é isso, filho?! Já nem para iscas tens serventia. O melhor é ficares caladinho no teu canto.

Isidoro, que era estúpido, mas não desprovido de cérebro, percebeu de imediato que estava ali rival capaz de escandaleira, coisa que a sua imaginária condição social e cultural abominavam quase tanto quanto pessoas. Percebia-se nos seus olhos que procurava algo que a humilhasse e a fizesse calar, mas recuou, consciente de que, de ali em diante, Idalina seria imparável. Tudo isso foi percetível no seu olhar e expressão facial, que passou, num segundo, de lobo esfomeado a cordeiro receoso. Reerguia-se Alfama no peito da brava Idalina e as avenidas novas nada podiam contra séculos de história e vivência daquela mulher de fato de treino amarelo comprado no chinês, ali para os lados da Almirante Reis. Pareceu entristecer. Estaria, secreta e inconscientemente apaixonado por Idalina, como ela sempre suspeitara? Teria eu acabado com um possível romance? Mas Alfredo era tão mais adequado a Idalina. Alfredo tinha o coração na boca e parte da mente no Alzheimer, ao que parecia, mas todo ele era afetividade e empatia. Um chorão. Chorou quando Inês, depois de uma série de más decisões regressou de um festival de música com um braço engessado. O pobre homem reagiu como se Inês tivesse perdido o membro. Como se tivesse ficado mutilada para todo o sempre. Como, de entre todos, era dos mais velhos – talvez Isidoro fosse mais velho, mas ninguém estava interessado na idade ou qualquer outro dado da vida do estupor –, olhava para ela e só dizia, entre abundantes lágrimas:

– Pobre criança!

Uma criança quase com 30 anos e ainda alguma dificuldade em aceitar a doença e a sua condição de hemofílica. Uma criança que abusava das bebidas brancas, desde que lhe tinham dito que essas não faziam mal aos rins. Uma criança que abraçava comportamentos de risco como quem vai avisando a doença de que morrerá, mas não serão os rins a matá-la. Alfredo só via a miúda baralhada e confusa, revoltada com a doença. A miúda de riso fácil que o abraçava à despedida, altura em que Alfredo aproveitava para permitir a evasão a mais algumas lágrimas que por ali andavam prisioneiras. Alfredo era o homem que sempre imaginei sentado num colorido sofá, cheio de almofadas tricotadas à mão, com gatos e flores, ao lado de Idalina, vibrando de emoção com os desfiles em noite de S. António. Um dia, se arranjar coragem, um dia em que Idalina consiga falar num tom de voz mais baixo do que o habitual e prometa escutar com alguma discrição, ainda lho digo. Talvez assim:

– D. Idalina, já reparou como o Sr. Alfredo olha para si? Como ele ficava bem no seu sofá colorido com almofadas de gatos e flores tricotadas por si? Como ele vibra pelo seu bairro nas noites de S. António?

O que me responderia ela se um dia eu me atrevesse? Falaria alto, seguramente. Para todos ouvirem. Em particular o doce Alfredo. Entoaria um dos seus falsamente enjoados “Ai, filha, mas que ideia do Diabo?!”, enquanto lançaria sobre o pobre homem olhos de desdém, como a Garça de La Fontaine, achando que tudo aquilo era por de menos para si. Temia isso, daí ainda nunca lho ter dito. Talvez hoje fosse o dia. Uma inesperada e dramática notícia parecia tornar possível e admissível esse comentário, ainda que correndo o risco de ser insensível, mas Alfama entende a crueza da vida, não necessita de tempo ou paninhos quentes.

By Jack Davison

Alfredo vinha a chorar. Só depois de sentado e artilhado com o seu kit sanguinário, “como os vampiros”, costumava brincar, é que percebemos a seriedade, pois não se continha. De uma silenciosa tristeza, Alfredo, percorrendo muitos estádios intermediários, acabou num sonoro e rijo pranto que já lhe molhava a camisa, sempre abotoada até ao último botão do colarinho. Um aperto que sufocava. O botão e o seu choro.

– A minha mulher morreu.

De voz embargada, soluçante, sumida e entrecortada ninguém entendeu logo o que dizia o sofredor Alfredo. Eu percebi. Ele percebeu que eu entendi. Não nos podíamos levantar. Para um abraço. Um consolo. Mas os meus olhos devem tê-lo aquecido por dentro. Chorou ainda mais por isso, suplicando com os olhos e as mãos que eu esclarecesse os demais.

– A mulher do Sr. Alfredo morreu.

Irritei-me comigo, por, no meio de tanta dor, ter tido amplo espaço no peito e na cabeça para avaliar e perceber se aquela não era uma jogada de mestre de Alfredo no tabuleiro das probabilidades românticas com Idalina. Primeiro, o homem inacessível, mas apaixonado, agora, o homem destroçado, mas livre. Muitas pessoas não resistem a acudir sentimentalmente a um ser necessitado. Gostam de se sentirem heróis, salvadores de almas em perigo. Poderia Idalina, com o seu fato de treino amarelo, ser essa pessoa? Julgo que sim. Poderia o simples Alfredo ser capaz de urdir tal melodramática trama? Provavelmente sim. Telenovelas não lhe faltavam no curriculum.

Logo que se acalmou, Alfredo contou como na segunda-feira anterior – as sessões juntam-nos às segundas, quartas e sextas – ao regressar a casa, a mulher, que nunca sai, não estava em casa, como de costume. Esperou a noite toda e ela não regressou. Na manhã do dia seguinte, uma vizinha perguntou-lhe pela mulher, se ela estava melhor. Ele não percebeu e ela explicou-lhe como a pobrezinha tinha sido levada pelos bombeiros. Colocando-lhe uma mão no ombro – a mão direita da vizinha, no ombro esquerdo de Alfredo, como especificou, um pouco radiante por ter toda a audiência presa ao seu relato –, ele percebeu tudo. A mulher não regressaria a casa. Ficámos consternados, exceto Isidoro, que continuava a ler a Bola, acabando toda a sua atenção e a totalidade do seu universo nos limites das páginas do jornal. Tudo o que lhe interessava estava impresso à sua frente. Tudo o resto era folclore humano. Miudezas. Distração barata. As quatro horas dessa sessão foram tristes e silenciosas. Por respeito, por amor.

Era sexta-feira. A última sessão da semana. Hoje era dia de fato de treino roxo. Reparei num pendente de ouro com um coração de Viana que balançava sobre o peito farto de Idalina. Talvez não seja preciso falar-lhe do Alfredo. Idalina já deve saber tudo aquilo que precisa de saber. Senti-me secretamente feliz e aliviada. Era uma daquelas conversas difíceis. Isidoro entra triunfante. Gabardina apenas presa pelos ombros. O indiscutível blazer, hoje castanho. Um riso sarcástico que se desfaz quando Idalina se levanta e vai direita a ele. Ele desvia-se e ela passa, como se ele nunca ali tivesse estado. Dirige-se à máquina da água, regressa com o copo cheio, tropeça e toda a água cai em cima da zona pélvica de Isidoro, que começa aos gritos. Era água quente, para o chá, que Idalina nunca bebe, mas que lhe apeteceu muito naquele dia. Palavra que tanto o tropeção, nos pés de uma enfermeira, como a queda pareceram absolutamente genuínos, tanto ou mais como as dores de Isidoro, agarrado ainda à braguilha, mas que deu que pensar a todos deu. A enfermeira socorreu Isidoro, enquanto com soberba e requintes de quem não domina o requinte, Idalina se vai desculpando: “que maçada” para aqui, “Nosso Senhor Jesus Cristo” para acolá e o remate final de que também não era caso para tanto, que a água não estava a ferver e que ele também não devia fazer grande uso daquilo, pois se ninguém o suportava para chegar à fala quanto mais para chegar ali. Sentimo-nos todos vingados e eu jurei que na próxima sessão usaria um fato de treino roxo comprado no chinês, em sinal de irmandade para com Santa Idalina.

Como sempre, em último lugar, ladeado por Rodrigo e Francisco os mais recentes no grupo, surge Alfredo. O trio formava uma curiosa sanduiche. Francisco muito elegante e ‘lavadinho’, sempre ‘apetitoso’, Rodrigo com o seu habitual despenteado e num registo permanentemente blasé, e o aprumado Alfredo no meio. Vinha todo rosado, choroso, claro, mas surpreendentemente calmo e bem-disposto. Galhofeiro, ria e segredava coisas aos rapazes – que já deviam ter 40 anos, mas que aos seus olhos eram apenas uns garotos ainda.

– Como está, Sr. Alfredo? Já sabe o que se passou com a sua mulher?

Era, obviamente, este o tópico da conversa quando os três entraram na sala.

– Ah. Está boa!

Ninguém soube bem o que dizer. Inesperadamente, um dos rapazes, Rodrigo – que acumulava o histrionismo do punk com a direção de IT numa empresa de telecomunicações –, sentindo-se ultrajado com o sofrimento por que tinha passado em vão, chorando as mágoas de Alfredo à sua maneira, foi o primeiro a querer explicações.

– Como está boa? Não morreu? Estava morta na segunda-feira. Não se recorda?

– Afinal, não estava. Estava na casa da filha. A minha filha tinha estado lá em casa com ela, depois a mãe sentiu-se mal, a miúda chamou a ambulância, foram para o hospital, mas estava tudo bem e mandaram-na para casa. Disseram à minha filha que a mãe não devia ficar sozinha, que precisava de ser vigiada, e ela levou-a para casa dela. Foi isso.

– E ninguém o avisou? – escandalizou-se Inês.

– Acho que sim. Havia um bilhete, mas eu não vi. Também não ouvi o telefone. Estava muito triste.

– Não ligou à sua filha ou para o hospital?

– Não. A minha vizinha já me tinha dito tudo. E o dia de ligar à minha filha é às quintas à noite e aos sábados de manhã.

– Então, como soube?

– Ontem, à hora de almoço, a minha mulher regressou, com a filha. Estão as duas bem, obrigada. Foi uma grande alegria.

Idalina, reparei, colocou o seu coração de ouro para dentro do casaco do fato de treino roxo e correu o fecho até acima. Isidoro ria desdenhoso, mas ninguém o acompanhava. Inês e os rapazes continuaram a puxar por Alfredo e a sua caricata história de ressurreição. Olhei com atenção e pela primeira vez, como um dos rapazes, o Francisco, tímido e muito giro – nunca me canso de o dizer –, olhava a medo para Inês. Aquilo entusiasmou-me. Agora que Idalina não poderia arranjar marido naquele grupo, pelo menos para já, quem sabe Inês…

Não me podia esquecer de procurar um fato de treino roxo, amarelo ou turquesa. Talvez numa loja de chineses. Talvez ali para os lados do Martim Moniz.

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