Recolheu-se em casa e só então percebeu o estado em que esta estava. Como tinha permitido que chegasse àquele ponto? Por onde tinha andado que não tinha nem reparado no desmazelo em que a sua casa estava? Vazia, empoeirada, com cheiro a mofo e solidão. Ao abandono. Quanta incúria! Paredes despidas, estores baixos. Uma escuridão bafienta e cega. Uma escuridão dolorosa. Como único elemento decorativo uns sinistros cortinados escuros. Castanhos, achava recordar. Já nem se recordava onde os tinha comprado, nem há quanto tempo. Quantas estações teriam presenciado já? O que mais a chocou, entre tantas outras coisas, foi não reconhecer o que quer que fosse. Uma casa ao abandono era o que a sua casa era. No pó escrevinhava-se a ausência, a falta de afeto e de uso. A falta de amor, que uma casa é caprichosa e precisa de mimo.

De tudo o que estava em falta, achou obscena a ausência de um canto de leitura. Um recanto de conforto. Onde andaria ele? Onde estaria o sofá fofo e confortável, com o braço gasto do encosto do seu cotovelo, onde se embrulhava a ler e a reler? E a secretária onde obrigatoriamente escrevia sem parar ideias, receitas, anotações, afazeres. Onde anotava contas de deve e de haver, quase sempre mais de dever. Onde estava o candeeiro que iluminava os seus sorrisos e a manta que aquecia as suas dores? Meu Deus!, exclamou. E o gato? Onde estava o gato e o cão? Nem sequer via pelos, mas, também, com tanto breu, quem veria o que quer que fosse? Quem descortinaria sinais de vida num sítio tão morto? Nem sequer recordações do passado, feliz ou nem por isso. Faltavam fotografias, tomadas para carregar o computador, computador para ver o mundo e mundo para ver. Não se viajava naquela casa? Ou, sim, viajava-se e muito. Demasiado ao ponto de a casa acabar abandonada. Entregue a si mesma e ao seu passado de alvenaria e estuque, de tinta já em falta e nudez. Era pele e osso naquela sua maneira (e madeira também) muito próprio de ser carne e osso. De ser vazio e abandono. De ser só.

Uma casa só é tão penosa de olhar como os olhos de uma pessoa só. Não se tratava de soberba e poderosa solitude, mas de negra solidão. Não estava obstinada ou voluntariamente sozinha. Estava fatidicamente só. Aquele negrume era negligência. Era ausência de algo que sempre lá deveria ter estado e não estava. De coisas que lá faziam falta e não havia. Era a ausência de presença e não o apreço à ausência. Não era uma estética minimal. Não era uma opção. Era imposição. Era tristeza apenas. Vazio. Um vazio magnético e fétido. Nem sequer um fogão, para o chá e tudo o resto. Mas sem resto e sem fogão, não haveria chá. Jamais. E a máquina de café? Queria lembrar-se de por onde teria andado e por quanto tempo para nem o frigorífico estar a trabalhar. Lá dentro, tudo igual a lá fora. Escuridão e aquele cheiro estranho de coisas que, estando preparadas para estar cheias, estão vazias. Podemos ignorar a natureza das coisas, mas não podemos contrariá-la. Poder, na verdade, até podemos, mas de nada adianta. Ela, a natureza, persiste no âmago das coisas e é esse desfasamento que causa dó. Lamentava tudo aquilo que encontrava na sua própria casa. Não era só ausência, era cegueira, falta de ânimo e de vontade. Falta de energia e de vida.

Estaria tão morta assim? Só um defunto habitaria tal casa. Sentou-se num pedaço de chão, de todos o mais sujo. Era o indicado para se lamentar. Para sentir a odiosa pena de si própria. Para se recriminar. Para, finalmente chorar. A gloriosa autocomiseração. Essa pedra que, à laia de pisa-papéis, colocamos sobre o coração, a fim de masoquistamente exercitar a sua musculatura, a sua capacidade de sobrevivência em situações severas. Não sabe quanto tempo depois, levantou-se, entorpecida. Sacudiu, mas não veementemente, o pó do vestido, que, àquela falta de luz, era apropriadamente preto. Correu as cortinas, abriu a janela. Inventou um fogão e um colo. Chamou o cão e o gato. Deixou que a lambuzassem. Preparou um chá de umas ervas que trazia no cabelo, leu de memória um livro, entoou uma canção que acabava de inventar. Doía-lhe o corpo todo. Tudo lhe era penosamente difícil. O seu vestido, afinal, parecia agora amarelo ou, pelo menos, de uma cor do espectro do outono. A sua estação mais querida. Ia bem com a sua nostalgia. Um sol baixo e tímido batia à janela. Ia abrir-lhe caminho.

Como tinha sido possível?

Como tinha deixado o seu peito chegar àquele estado? Há quanto tempo não ia lá? Era apenas um amor que morria. Outros se seguiriam, que o amor não tem fim nem princípio. Tinha de ter mais cuidado. Deixar de viver fora do seu peito. Deixar de se aninhar no peito dos outros. Dar largas ao seu coração, para que não mirrasse. Colocar-lhe umas flores. Umas cortinas novas, talvez. De linho translúcido, para não assustar a luz do sol e da lua. Tinha de aprender a dançar sozinha. Arejar vontades. Sacudir desejos. Oxigenar o espaço. Há coisas que devia levar mais a peito. Ar, acima de tudo.

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