O Leão e o Asno ou Como, Por Vezes, Tudo se Baralha

Tinham o ‘serviço’ agendado há cerca de um mês. Era coisa para não demorar mais de meia hora, se tudo corresse como previsto. De acordo com os planos, feitos um pouco por alto, já que era difícil estacionar a concentração de Tino por mais de cinco minutos de cada vez, com necessários intervalos recreativos de, pelo menos, meia hora, o trabalho decorreria ‘sem espinhas’, e dividir-se-ia em duas importantes etapas: Entrar e Sair. No quadro improvisado, na parede daquele velho galpão – local de convívio de prostitutas e fãs incondicionais de estupefacientes a qualquer hora do dia –, Joca Leão havia, de forma abreviada, resumido a coisa assim mesmo: Entrar, escrito na metade esquerda do placard, e Sair, na metade direita. Era bom resumir, utilizar vocabulário simples e descrições visuais, para tornar tudo cristalino e isento de dúbias interpretações. Joca Leão sabia que pisava terreno movediço. Não apenas muita coisa poderia correr mal, se a teoria de um tal Murphy resolvesse participar, como era bastante literal a alcunha de Tino, por todos mais conhecido por Asno. Tino sempre achou que o ‘carinhoso’ apelido se devia ao Jacinto, burro que o avô teve durante mais de 40 anos – na verdade foram três, mas Tino, incapaz de distinguir animais entre si, sempre acreditou tratar-se do mesmo jumento –, e que muito serviu para ajudar o senhor a pôr o pão na mesa e a alimentar a boca de uma família eternamente faminta.

– O meu avô era um visionário. Antes da moda dos Tuk Tuk, já ele era ecológico. Só não era elétrico, ainda que o Jacinto estivesse sempre ligado à corrente – gostava de fugir, o sacana do burro –, só que nós não tínhamos eletricidade. Um dia…

Joca rugia meia dúzia de impropérios e Tino, de olhos arregalados, sem conseguir acompanhar o que era dito, mas respeitando o tom assustador, forçava o silêncio, que tanto odiava, e mantinha a narração da história para dentro. O que era um desperdício, já que ele a sabia de cor. Porém, era uma boa história, mais valia que não ficasse a meio.

– Recapitulando, Tino. Como é que entramos?

– Pela porta…

– Dizes isso mais uma vez e rebento-te os miolos com os teus próprios dentes, ouviste?!

– Não me faças rir. Dizes cada coisa.

Joca iniciou mentalmente uma singela contagem até ao infinito. A culpa era sua, mas também sabia bem porque tinha acabado com Tino como ‘sócio’. Porque seria fácil ficar com o lucro na totalidade e ainda incriminá-lo se preciso fosse, o que eram duas enormes vantagens naquela linha de negócio, além de que Tino era forte como um boi e só ele seria capaz de arrancar do chão o velho cofre de ferro do ‘Mimosa’. Momentos havia, porém, mais do que os que imaginou possíveis, e aquele era apenas mais um deles em menos de 20 minutos, em que nem mesmo essas mais-valias o convenciam. Algo lá dentro lhe dizia que se iria arrepender. Muito. Mas o aperto também era muito, a oportunidade única e tinham de ir em frente.

– Então, entramos pela porta das traseiras… desculpa, pela outra porta que não a das traseiras. Aliás, aquilo só tem uma porta, não ligues. Tocamos à campainha… Agora estava a brincar. Agora a sério, juro. Vamos separados. Chegamos lá às 3h da manhã. Entramos como clientes. Vamos diretos à casa de banho. Desligamos o quadro. Colocamos as máscaras e trazemos o cofre, a caixa e os sacos.

– E onde está tudo isso, o cofre, a caixa e os sacos?

– Os sacos estão debaixo das camas das meninas, a caixa está no bar e o cofre na sala de trás.

– Isso. E quem traz o quê?

Tino olhava sem compreender.

– Não vamos os dois a todo o lado, vamo-nos dividir, certo? Tu trazes…

– Ah, isso. Eu carrego o cofre e tu trazes o resto.

– Por fim, o que acontece?

– Saímos no meio da multidão aos gritos.

– Porque gritam eles, Tino?

– É verdade, esqueci-me. Volto a dizer tudo. Vamos separados. Chegamos lá às 3h da manhã. Entramos como clientes. Vamos diretos à casa de banho. Desligamos o quadro. Colocamos as máscaras. Disparamos tiros para o teto. Eu vou buscar o cofre e tua caixa e os sacos.

Joca Leão teve um mau pressentimento. Mesmo antes de se morrer as coisas melhoram um pouco, não é isso que se diz dos moribundos? Pois aquilo parecia-lhe a melhoria inexplicável mesmo antes do derradeiro suspiro. Quando Joca voltou a olhar o quadro, Tino escrevia tudo aquilo que acabara de dizer no quadro, com uma ponta de giz, acrescentando o nome do prostíbulo – ao qual deu o ar da sua enorme ignorância ao escrever ‘Memoza’ –, a morada e os seus dois nomes, para não se esquecer “de pitada”.

– Não queres tomar nota dos nossos números de telefone também? Julgo que é só o que falta aí, a par de uma ou outra doença infantil.

– Sabes que pensei nisso, mas como o quadro fica aqui, caso não me recorde, não adiantava, tinha de regressar, não era?

Joca não conseguiu responder. Acredita mesmo que nem sequer expressou tudo aquilo que sentiu naquele instante. Atirou-lhe simplesmente com um penico de esmalte que por ali andava à cabeça e mandou-o lavar a ardósia imediatamente.

– Ui. És mesmo esperto – disse Tino, piscando o olho a Joca –, para que ninguém mais consiga fazer igual, não é, meu capitão?

– Sim, é isso. É isso mesmo. Despacha-te.

– Depois disto queres ir ver o jogo?

– Jogo?

– Sim! ‘Sbordine’ contra ‘Alverga’.

Joca, um fervoroso adepto do Porto, já tinha esgotado todas as maneiras de explicar a Tino que Leão era apelido, sobrenome, nome de família, seu nome de verdade e que nada tinha a ver com equipas de futebol. Por vezes, é-se mais inteligente quando se desiste, do que quando se morre por dentro a repor uma verdade que existe para toda a gente exceto para um cretino. Aquele era um dos casos.

– Hoje não posso. Só assisto a jogos em dias ímpares.

– Epá, eu respeito muito os ‘super-estiosos’. A gente não se deve meter com o azar, pá. Tudo menos isso.

– É isso mesmo, Asno. Agora, não te esqueças. Tu, toma atenção a isto que é importante. Nós não nos falamos até ao dia da golpada. Aparece e não te esqueças de levar máscara. Já tens máscara, certo?

– Sim. Não te preocupes. Já está tudo aqui.

Tino, apontava com o indicador a sua enorme cabeça. Joca ouviu um barulho de metal a chocalhar vindo de lá de dentro, mas deve ter sido só o pânico que, por vezes, o acometia ao olhar a cara de estúpido de Tino e aqueles seus olhos gigantes e vazios.

Na data combinada, um pouco antes das três da madrugada, como definido pelo genial plano que, num claro resumo, definia entrar e sair como grandes feitos da noite, Joca estaciona no baldio adjacente ao Mimosa, famosa casa de alterne que, pelas contas de Joca, faria mais de 20 mil euros por noite e cujas receitas só eram depositadas a cada quinze dias. Aquele era o 14º dia após o último depósito, pelo que estaria a rebentar de lucros, espalhados um pouco por todo o estabelecimento.

À porta, fuma um cigarro, longe do pequeno candeeiro de luz vermelha, como manda a velha sinalética da gasta cartilha do negócio da carne fresca, e aguarda por Tino. Este chega montado numa pasteleira ferrugenta, cuja corrente chiava mais do que uma panela de pressão em hora de aperto culinário.

 

– Estás doido? Isso ouve-se a milhas e como vais levar o cofre?

– Está tudo previsto. Olha, olha!

Nisto, Toni aponta para um atrelado com meia dúzia de garrafas de gás, que tem acoplado à bicicleta. Logo, basta esconder o cofre no meio das bilhas e lá vou eu.

No meio de tanto disparate, e com a adrenalina a dar sinais de exaltação, Joca quase acredita que a burrice pode dar certo. Afinal, quem imaginaria que um gigante balofo, a pedalar numa bicicleta enferrujada e carregando garrafas de gás, num esforço sobre-humano, era um lesto assaltante com um cofre a reboque? Ninguém, era a resposta que mais convinha a Joca e a única que se permitiu guardar.

Batem à porta. Abre-se um minúsculo postigo. Olham desnecessariamente para eles e abrem a porta. Todos entravam naquela casa, nem sabiam bem porque não tinham a porta aberta. Como se houvesse escrutínio, ou seleção de clientela. Desde que fosse homem, entrava, qual era a dúvida? O local era inclusive frequentado pelos guardas do único pequeno posto da GNR em mais de 100 quilómetros. Aquele pensamento elevou o ânimo de Joca, que já se compenetrava para o serviço.

Lentamente, enquanto olham em redor, como se procurassem uma presa, dirigem-se aos fundos, como se fossem aos lavabos. Mal viram no escuro corredor, Tino é agarrado por uma portentosa de Leste, ou uma mulata oxigenada, com a pouca luz, não percebeu bem. Nisto, Tino dá um grito. Ninguém lhe ligou importância.

– Carla Anabela, o que estás aqui a fazer? Já para casa, que estes ambientes não te fazem bem à bronquite.

Afinal, a mulher era local e aquela foi a primeira de muitas frases que Joca jamais imaginou ouvir momentos antes de dar início a mais um assalto. Aqueles dois eram irmãos e iniciaram uma troca de mimos digna do Mimosa, a bem da verdade. Havia crianças sozinhas em casa, mas havia também, felizmente, um marido militar da GNR que não apenas estava a par do bom dinheiro que a mulher ali fazia, como a acompanhava ao local de trabalho, a fim de manter o bom ambiente. Deus existe! Aquilo acalmou Tino. Mais tranquilo ficou ao ver Jaimão, o cunhado militar, a quem deu um sentido abraço.

– Ah, bom, achei que ela andava por aqui sozinha. Isto aqui, é preciso ter cuidado, que há muito homem que vem aqui só para lhe por as mãos em cima.

Joca não chegou a entender se Tino percebia que a irmã era prostituta e o marido o seu proxeneta e aceitava, por ser um entendimento amoroso e familiar, ou se considerou que a irmã e o cunhado eram apenas dois rebeldes doidivanas que gostavam de tomar uns copos sem ninguém saber e isso, naquele fim do mundo, só podia acontecer no escuro de uma casa daquela natureza. Não interessava. Estava tudo resolvido. Os irmãos abraçaram-se enquanto sussurravam desculpas. Nisto, o mulherão, uma autêntica versão feminina do gigante Tino, passa-lhe um boião para as mãos. Piscam-se olhos, e cada qual vai à sua vida.

Joca e Tino entram na casa de banho, onde está o quadro elétrico. Joca coloca a máscara e quando se prepara para cortar os cabos de alimentação, repara que Tino está frente ao espelho com o boião que a irmã lhe deu.

– No meio disto tudo, ainda bem que dei de caras com a Carla Anabela. Esqueci-me da máscara, mas ela tinha esta e diz que é ótima. É de carvão.

Joca ponderou cancelar o golpe, mas Tino estava completamente preto e quase ou nada reconhecível, a bem da verdade, além de que se o identificassem, ele nem seria capaz de repetir o plano. Estava por tudo.

– Siga!

Dizendo isto, Joca cortou os cabos e tudo ficou às escuras . Tateando paredes, deixou Tino à porta do escritório de onde tinha de retirar o cofre à bruta e colocou-lhe na cara óculos de visão noturna, que muito entusiasmaram o pateta. Joca deu três tiros para o ar e partiu à caça dos sacos espalhados pelos quartos das meninas, cujas portas nunca eram fechadas à chave por esmeradas questões de segurança da espelunca. A caixa do bar seria a última a ser saqueada. Habituada a imprevistos, a clientela às escuras ria, batia palmas, assobiava e cantava os parabéns, achando que os tiros eram celebrativos de uma qualquer efeméride. Tudo corria pelo melhor e sem dramas. Carregados com o saque, prestes a chegar à porta da rua, Joca e Tino não esperavam o que se seguiu. As luzes acendem-se. Parece que estavam a estrear o gerador que tinham adquirido na véspera, comprado, felizmente, em terceira mão a uns ciganos, pelo que nem 30 segundos durou o chapão de luz. Seria, ainda assim, suficiente para os identificar? Seguramente que sim.

Não podia haver hesitações. Não podiam parar. Seguiram em frente. Tino para o atrelado da bicicleta e Joca para o carro. Nisto, Joca repara que além do cofre, há uma mulher praticamente nua às costas de Tino.

– Está presa à porta do cofre. Tive medo de a aleijar, trouxe-a também. Ela diz que não se importa.

Joca tentava imaginar, quase com horror, o que estaria a prender aquela mulher à porta do cofre. Desistiu. Sentia que tudo colapsava, que estavam feitos. Já havia pessoas a sair do Mimosa, em fúria. Tinham sido assaltados, gritava a velha Gina, enfiada num vestido de lantejoulas prateado, infinitos números abaixo do necessário para aconchegar todas as suas carnes, dando ao cenário o derradeiro toque de decadência.

– Que horror! Então devem ter sido aqueles fulanos que saíram daqui a alta velocidade, Bebé! Tu aí, vai atrás deles, talvez ainda os apanhes.

A mulher presa na porta do cofre dava ordens a Joca, que as acatava com a felicidade de quem foi acolhido no coração de Cristo.

– Tens razão. Vou já. Só podem ter sido eles.

– Jaimão, vai com o meu amigo, afinal, és um agente da autoridade, um herói local.

Agora, era o já não tão idiota do Tino a manobrar aquela triste comédia. Joca estava incrédulo. Incrédulo e tão feliz!

Gina, desconfiada, olhava para a sua discípula, desnuda, agarrada de forma pornográfica a umas bilhas de gás, no miserável atrelado de um enorme brutamontes enlameado.

A mulher desnuda, vai encolhendo os ombros e franzindo a boca. Roda discretamente o indicador perto da têmpora e responde à patroa, enquanto acrescenta um encolher de ombros:

– Ele gosta assim, Gina. Tem fascínio por ferro velho e lutas de terra.

A seminua era viva, esperta, célere e tinha mais sangue frio que a morgue do hospital mais próximo, que era longe dali, claro!

– Não é aquilo de que ele gosta que me preocupa. Isso é lá convosco. Mas o que fazias aqui com dois gaviões? Andas a cobrar dois e a dar-me apenas o dinheiro de um, minha vadia?

– Ó Gina, o outro, coitado, só gosta de ver, que mal tem?

Com a perseguição dos bandidos em curso, aqueles dois montados num triste número de circo que incluía uma pasteleira, um bisonte de cara preta, bilhas de gás e uma mulher nua e os bêbedos e carentes doidos para voltar ao aconchego do interior, Gina dá o caso por encerrado. Aquela receita era a correspondente à parte do marido, pelo que ela nada perdia. O palerma que se entendesse com assaltantes e polícias. Desde que Gina apanhara Aniki, o marido, com um embarcadiço, que tudo era dividido irmãmente e quinzenalmente, incluindo com o do barco. Esta era a quinzena deles. Paciência. Logo que todos entraram, Tino explicou à mulher desnuda que tinha de ir tirar a máscara. A irmã disse-lhe que tinha de a remover ao cabo, no máximo, de 20 minutos e onde é que eles não iam já. Ainda lhe estragava a pele, que, de resto, já sentia a repuxar.

Joca tornou-se crente e jura a pés juntos que aquilo teve mão divina. Acha também que Tino não lhe agradeceu convenientemente o genial plano gizado por si e que tirou ambos da miséria, mas nunca lho disse. Tino também nunca lhe confessou que aquela foi a maneira de libertar a sua amada de uma dívida ‘astromónica’. Se Joca ali estivesse, talvez o tivesse corrigido, ao que Tino lhe diria que Mónica era o nome da mulher má a quem a sua amada devia a liberdade e o regresso a Portugal, após ter sido raptada e iniciada no exigente mundo do sexo. Daí o astro-Mónica.

Moral da história:

Só é burro se zurrar e só é leão se houver selva. Ter juba, ajuda, mas não é tudo.

 

 

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4 Comments

  1. Maria De Fátima Precatado Simões

    Gostei bastante.

    • Marina Rocha Ribeiro

      Muito obrigada, Maria de Fátima.

  2. isabel soares

    Quem és tu miúda que escreve sobre estes universos que me deliciam?
    Assim em 2 segundos acho que tinhamos 50 mil coisas interessantes com que falar.
    Não tenho o livro das caras e é a primeira vez que faço um comentário.
    You Rock between a hard and magical place!

    • Marina Rocha Ribeiro

      Muito obrigada, Isabel. O seu comentário deu um fenomenal upgrade ao meu dia!

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