Aquele era um osso difícil de roer, mais ainda de engolir. Tão difícil que lhe tinha ficado atravessado na garganta e de lá não saía. Nem para cima, nem para baixo. A humilhação e fúria que sentia, só comparável ao pânico de perder o emprego e, com ele, todo o mérito e proveito de anos de investimento na empresa, impediam que tomasse as decisões mais acertadas. Lembrava-se agora, de forma insistente e agoniante, das recomendações do pai, das quais se riu com paternalismo, ciente de que eram preocupações de outra geração, nascidas de uma outra moral, caduca e obsoleta e próprias de uma faixa social vários furos abaixo daquela que tinha conquistado para si.

– Cuidado, filho. Esse mundo não é o nosso. Não te esqueças de que quanto mais se sobe maior é a queda. Podem achar-te muita piada, mas jamais te considerarão um deles.

Um discurso com resquícios de Estado Novo, um tímido e subalterno elogio ao ‘pobres, mas honrados’ que o deixava doido. Isso, sim, o envergonhava. Não as suas raízes, o local de onde tinha vindo, nem as gentes que o tinham parido, amado e educado, mas essa entranhada subserviência, aquele joelho sempre a roçar o chão e a ideia pateta de que o lugar de cada um é determinado pela classe e não pelo indivíduo. Pelo berço e não pelo seu valor, inato e adquirido. Pelo apelido e não pelos atos e desempenhos. Pelo passado e não pelo futuro. Os seus horizontes eram outros, a sua inteligência e argúcia eram míticas e épico e meteórico o seu percurso, assente em nada mais do que pura meritocracia, competência e empenho. Nada daquilo que o pai dizia e pensava se adequava ao mundo em que vivia, ao universo de que se fazia rodear e que a sua acutilante ambição tinha conquistado com graciosidade e de forma, a bem da verdade, bastante fácil. A fé que depositava em si próprio e nas suas capacidades, onde adaptabilidade e competências sociais rivalizavam com três diplomas – uma licenciatura e dois bacharelatos –, era profunda e incomensurável. Mesmo quando as suas capacidades cognitivas falhavam – todos temos dias assim –, restava-lhe sempre o olho clínico, a mente analítica, a versatilidade e a diplomacia e, mais importante, um instinto primitivo, que previa riscos e arreganhava os dentes aos infortúnios. Somava-se a toda essa capacidade intelectual e de sobrevivência, uma resiliência e determinação ímpares, capazes de fazer valer a sua ideia ou opinião mesmo perante melhor concorrência. Alguém que fala com total convicção, apresenta-se como detendo a verdade, e isso contagia e acaba por influenciar os outros, mesmo quando a base científica seja mais deficitária do que a dos oponentes.

Era difícil de perceber se era a autoconfiança de Narciso a garantir a vitória, ou se eram os repetidos sucessos a edificar e promover a sua autoestima. Um pouco de cada um, seguramente. Por isso lhe era tão difícil e estranho o momento pelo qual passava. Por isso se recriminava cruelmente pelo modo como se tinha deixado apanhar por aquele nó na garganta que mal o deixava respirar ao ponto de sentir já o veneno a galopar-lhe, veloz e intrépido pelas veias. Aquilo não era um nó, antes sim um osso atravessado, cujo contorno era já visível e bastante palpável na garganta, a qual quase furava. A sua carne começaria, em breve, a gangrenar, se não agisse célere. Um osso protuberante, um nó grosso e rude. Um feto indesejado numa barriga alheia aos seus propósitos. Um bastardo. Agora parecia o pai a falar. Bastardia não existe. É uma invenção aristocrática e fedorenta. É-se sempre filho legítimo de alguém. Todos os seres são legítimos, ainda que possam ser indesejados ou até odiados. Era o caso. Odiava aquela possibilidade de filho. Aquele era exatamente o peso extra que não poderia carregar. Era o grama a mais numa bagagem de porão. E ele que sempre viajava light. Apenas bagagem de mão, para não se sentir preso a demoras e delongas, a esperas e passadeiras rolantes que nunca rolam à velocidade desejada ou necessária. Fora os tombos e as danificações em fechos e esquinas das malas rijas e semirrígidas.  Um inferno em qualquer situação, ainda mais penoso em caso de extravio ou troca. O seu único compromisso era com o seu sucesso e felicidade. Um plano bem oleado, onde não faltava a relação com uma bela mulher, figura pública, que quis o destino ser a filha do administrador e sócio maioritário – esmagadoramente maioritário de um império que muito tinha beneficiado com os préstimos do seu funcionário de ouro: Narciso, ele próprio. Sim, o mesmo é dizer que andava com a filha do patrão, se querem mesmo ir por aí, pelo discurso da vizinha coscuvilheira. Em abono da verdade, exige-se um breve esclarecimento, Narciso não sabia – ou fingira não saber? –, quando começou a sua relação com Carmo, que ela era filha do Big Boss. Uma feliz ‘coincidência’, uma ainda mais afortunada ‘ignorância’ e quase uma espécie de guião de telefilme canadiano.

Odiando tudo aquilo pelo que estava a passar, esmagado pelos sentimentos de inconformidade, revolta e culpa e ainda mais desgostoso e inquieto pela autocomiseração, decidiu que estava na hora de reagir. De sair daquele torpor pateta, deixar de se lamentar e agir de forma útil e proativa e em conformidade com as necessidades. Antes filha do Big Boss do que do Big Brother. Do que precisava? De fazer desaparecer aquela barriga. Não do mundo, apenas da sua vida. Como fazê-lo? Havia que analisar clinicamente os factos, elaborar uma lista de possíveis soluções que conduzissem ao desfecho pretendido. Eleger aquelas que melhor cumprissem o pretendido e colocá-las em prática. Simples. Narciso estava de volta ao que melhor sabia fazer na vida: sobreviver. Um segundo passo, mas não primordial perante as graves circunstâncias, seria tornar a decisão final graciosa e até, porque não, proveitosa à sua vida, ou apenas à sua imagem, já que a perceção alheia não passa da superficialidade daquilo que pensam sobre alguém. Pensar no assunto, fê-lo recordar como Cidália era linda e perceber por que razão tudo tinha acontecido. Ela era de se perder a cabeça e ele tinha-a de facto perdido, mais do que desejava. Mais do que supunha. Estava na hora de agir e deixar a braguilha em paz, que o assunto tinha de morrer desse por onde desse.

Hipótese 1

Dizer a verdade era sempre o mais simples e desconcertante. Uma medida corajosa que, podendo parecer desastrosa num primeiro momento, acaba sempre por favorecer o indivíduo. Esbatido o choque inicial, para memória futura fica a honestidade e coragem de quem não evita os factos tal como eles se lhe apresentam. Falar com Carmo, porém, seria dramático. Em privado, digerida a infidelidade – que seria embrulhada em dúvidas existenciais em véspera de casamento – ela até poderia achar a ideia boémia e perdoar a traição. Acontece que era uma figura pública, menina mimada nascida numa família tradicional, habituada a confortos emocionais e pouco acostumada a lidar com os descalabros da vida. Almofadas conservadoras amorteciam quedas maiores aos seus, mas esvaziavam-se facilmente perante deprimentes exposições públicas. Narciso já via as plumas do enchimento a esvoaçarem em seu redor. Ser atraiçoada era uma coisa, ser julgada publicamente era outra e isso condicionaria seguramente uma possível aceitação daquele projeto de criança.

Como, agora desgraçadamente, também era ‘filha do patrão’, o caso poderia colocar em risco muito mais do que um noivado e mesmo que tudo fosse mais ou menos amanteigado, perderia parte dos créditos humanos e profissionais que a sua postura sempre granjeou na companhia e no mundo empresarial em que se movimentava. Não, portanto.

Hipótese 2

Levar uma vida paralela. Indivíduos com o seu ardil e estatuto financeiro, facilmente conciliariam a existência de um filho na clandestinidade. Repugnou-o a ideia. Um filho nunca pode ser clandestino, a não ser que… Não.

Hipótese 3

Convencer Cidália a fazer o óbvio aborto. Havia tempo para isso, caso ela se deixasse convencer em dois meses. Todavia, tendo em conta o seu oscilante estado emocional e o facto de já ter começado a comprar roupa de bebé… Valia a pena tentar.

Hipótese 4

Comprar um bilhete de avião para a Nova Zelândia e edificar-lhe lá uma vida agradável, tão agradável que Cidália se permitisse experimentar a aventura. Seria a Nova Zelândia suficientemente distante para evitar o escândalo? O mundo cabe agora todo numa qualquer aplicação e descobrir o que quer que seja está na ponta de um cursor. Esta era a pior das hipóteses. Caso fosse descoberto, ou antes, logo que fosse descoberto, como poderia alguma vez reconciliar-se com o mundo um homem que chuta para longe o seu próprio filho, ainda que sendo fruto de uma fraqueza e não daquele tipo de amor que permite e deseja replicações de ADN? Não.

Antes de avançar na lista, que não tardava acabaria em atos criminosos, daqueles que se encostam ao código penal, agarrou-se à única hipótese com hipóteses. O aborto.

Cidália sabia perfeitamente que ele estava noivo, que era uma simples funcionária descartável, que aquilo que ganhava num mês não lhe permitia pagar uma refeição nos locais frequentados por Narciso, que tudo não tinha passado de um ato sexual que não deveria ter consequências, mas que as teve. Cidália sabia ainda que os mais fracos não se devem colocar incautamente na boca do lobo, que se deve agir com cautela, preferencialmente fugir mesmo da sua presença e evitar convívios constrangedores. Cidália sabia antes de mais que não queria aquela criança. Não estava preparada para ser mãe. Não agora. Talvez nunca. Havia, porém, um coração a bater na sua barriga e isso era intrigante a inúmeros níveis e de formas que jamais havia suspeitado possíveis. Tinha, neste momento, dois corações e isso era… incrível! À falta de melhor palavra, ficou-se por incrível. Era também esmagador, potente e um motor capaz de a levar a fazer coisas estranhas à sua natureza dócil e aos seus modos suaves. Desgostava-a que assim tivesse acontecido. Culpava-se por isso. Experimentava momentos de pura raiva e outros de… encantamento perante a ideia de conceber vida dentro da sua vida. Não. Não queria aquilo. Não assim. Daquela forma. Fruto do acaso. Do mero sexo. Queria um pai para o seu filho, o seu primeiro filho, e sabia que isso não obteria de Narciso. Na verdade, imaginava que dele já tivesse tudo e esse tudo se resumia a uma dose de esperma fértil, cujo bom desempenho floria agora o seu ventre, decorando-o de esperança, tristeza e até amor. Sim, achava que já podia falar em amor. Mas era um amor imperfeito, deficitário. Nascido de um caso fortuito, resultado de um preservativo furado por um anel ou dente trapalhão e impaciente…

Ao recordar-se, revoltou-a a forma como tinha cedido ao desejo perante um homem que não desejava voltar a ver e que, obviamente, também não a queria na sua vida. Nisso estavam ambos de acordo. Aliás, esse, vendo bem as coisas, tinha sido o seu garante de liberdade naquele momento de pura luxúria. Aquilo ficaria seguramente apenas entre ambos. Nenhum deles estava interessado em dar seguimento àquilo, até porque aquilo não era para ter seguimento. Ela apostada em seguir os seus sonhos, onde uma carreira em televisão – não interessava em que área – era a grande aposta, ele, noivo de uma supertia super-rica… Não tinha pensado nisso antes, o que a revoltou ainda mais. Ainda poderiam pensar que tinha dado o golpe do baú, engravidado propositadamente de um rico para não ter de se preocupar com nada mais na vida. Repugnante. Não conseguiu conter um vómito. Agoniava-a mais esta ideia, do que a gravidez. Na plataforma do Metro olhavam-na num misto de medo e nojo, pensando, por certo, que era uma drogada, ou que tinha bebido de mais, ou era portadora de um qualquer novo vírus – o que era ainda pior –, que as pessoas são mais céleres a julgar e criticar do que a ter empatia ou a ajudar, principal em locais públicos, onde a pressão do olhar dos outros lhes tolhe a espontaneidade e genuinidade do gesto. Por outro lado, percebeu como instintivamente tinha levado a mão à barriga, para acalmar o feijão que por lá andava a crescer, afiançar-lhe que estava tudo bem, que os bebés não sabem pela boca. Apeteceu-lhe chorar. Chorou. Em silêncio, quase sem lágrimas. O metro ia vazio, àquela hora tardia. E se encontrasse quem quisesse ser pai do seu filho? Quem estivesse disposto a partilhar consigo a aventura da família mesmo não tendo contribuído com ADN? Mais um guião de filme. A não ser que fosse ao encontro de Américo. Gostava dela desalmadamente desde sempre. Era um jovem médico talentoso. Tinha um corpo desejável. Era atraente e lavadinho. Era vizinho dos seus pais… Não. O que dizia?!! Não e não.

Narciso e Cidália marcaram um encontro. Sem necessidade de grandes conversas, até porque o ambiente se revelou constrangedor para ambos. Ainda que a tensão sexual fosse a mesma que os levou àquela mesa de restaurante e à urgência de ter aquela conversa, perceberam que não estavam na mesma sintonia de onda. Cidália tinha acordado virada para a maternidade e Narciso só desejava um aborto, ao qual somaria uma brutal compensação, acompanhada de um acordo de confidencialidade. Ela ficou de pensar. Daria uma resposta em breve. Ela pensou. Ela aceitaria o acordo. Vieram discretos, mas assertivos advogados, conversas em tom intimidatório e a necessidade de prova médica no final do ato. Só então seria feito o pagamento. Ela entregou os documentos exigidos, as provas e os comprovativos e ia dizer-lhe que não queria pagamento algum. Ele não lhe deu tempo e mandou avisar que nada pagaria, que uma mulher que aceita tal negócio é obviamente uma oportunista…

Cidália virou costas aos mensageiros. Não iria ouvir aquilo que tinham para dizer. Colocou os headphones. Precisava de procurar uma música que a acalmasse e a tirasse daquele tempo e daquele lugar. Instintivamente levou a mão à barriga.

Moral da história:

O efeito dramático que tem a mão na barriga de uma jovem mulher! É capaz de mudar o rumo da história, o curso do planeta e alterar definitivamente um guião. Pode ser para pior, mas que muda tudo, muda.

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